Cerca de 600 jovens já passaram pelos apartamentos de autonomização da Misericórdia de Lisboa desde que este projeto começou há quase 20 anos, caminhos “talhados à medida” para evitar a institucionalização e cuja procura ultrapassa o número de vagas existentes.
Assim que pôs os pés no apartamento onde vive, num prédio da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML), na zona de Alvalade, em Lisboa, Carina Melo diz que passou a conseguir “dormir tranquilamente”, algo que não acontecia em casa dos pais.
“Eu precisava de tomar comprimidos para dormir porque tinha muitas insónias e não conseguia dormir. A partir do momento que vim para este apartamento, sentia-me tão leve que consegui parar de tomar esses comprimidos e consegui dormir tranquilamente”, conta à Lusa.
Carina não tem dúvidas de que quando aceitou, há um ano e meio, ir viver para um dos 18 apartamentos de autonomização da SCML fez uma “escolha muito boa”, que lhe mudou a vida.
“Se tivesse recusado, acho que teria perdido uma grande oportunidade e ainda bem que não o fiz”, admite a jovem de 18 anos, que estuda arquitetura.
O caso de Carina chegou à Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) quando a avó, com quem vivia, juntamente com os pais e o irmão, lhes “deu um prazo para sair”. A circunstância de viverem com a avó surgiu depois de os pais terem perdido a casa por causa de dívidas e de os problemas do pai com o álcool se terem agravado.
Nessa altura, foram-lhe apresentados os apartamentos de autonomização como uma solução, mas, num primeiro momento, achou que estava a trair e a abandonar os pais. Depois percebeu que eles também concordavam “porque sabiam que as oportunidades que [Carina] ia ter não teria com eles”.
A diretora da equipa técnica de apoio aos apartamentos de autonomização explicou que estas casas funcionam no âmbito da lei de proteção de crianças e jovens em perigo, como resposta para apoio à autonomia de vida.
“São jovens que estão no âmbito do sistema de proteção e que, chegados a uma determinada idade, faz todo o sentido que estejam em contextos residenciais que os preparem para a vida adulta”, disse Margarida Cruz.
Nos 18 apartamentos espalhados pela cidade de Lisboa vivem 55 jovens, “integrados em prédios onde reside outro tipo de população“.
Cada apartamento tem três ou quatro moradores, todos a estudar ou a trabalhar, havendo atualmente 22 jovens a tirar curso superior, motivo de “grande orgulho” para as equipas de apoio.
As equipas servem para isso mesmo, dar apoio, já que os jovens moram sozinhos e são totalmente responsáveis pela gestão do apartamento, cabendo aos técnicos ajudar “a fazer caminho”, explorar alternativas, fazê-los compreender que “cada decisão traz consequências”, sempre com a certeza de que os “apartamentos são um espaço seguro”.
A lei define que para estes apartamentos podem ir jovens entre os 15 e os 25 anos, mas a maioria dos casos acompanhados pela SCML têm idades a partir dos 18 anos, havendo apenas um caso com 16 anos, uma vez que a instituição considera que pode ser demasiado precoce e exigente a experiência de viver sozinho e conseguir fazer toda a gestão do dia-a-dia.
Segundo Margarida Cruz, os jovens que vão para estes apartamentos podem vir de casas de acolhimento, de instituições, ou das próprias famílias, como no caso de Carina, mas também de Pedro Fernandes, 25 anos, que cresceu “numa casa um bocadinho problemática”, com uma mãe que “trabalhava muito e recebia pouco” e “não tinha tempo para dar atenção a crianças rebeldes”.
“Deixava de ir à escola, também sofria de bullying na escola e por isso evitava por completo por lá os pés. A minha mãe cansou-se e acionou-me na CPCJ e aí começou a pequena bola de neve até à Santa Casa”, recordou.
Pedro foi sinalizado “por volta dos 14 anos” e “demorou uns seis, sete anos” até entrar nos apartamentos, onde chegou “deveria ter uns 20 anos”.
Lá, passou a dividir tarefas e despesas com os dois companheiros de casa e, passados já quase dois anos da sua saída, lembra que os “conflitos eram mínimos”, às vezes “por causa da loiça que se acumulava durante muito tempo na pia”.
Aprendeu sobretudo a pagar contas e a gerir dinheiro — os jovens recebem um valor fixo mensalmente com o qual pagam, por exemplo, a renda da casa — “e não gastar em coisas supérfluas a toda a hora”, algo que, admite, “era um grande problema”.
“Se eu não tivesse passado por estes apartamentos, não sei onde é que estaria”, salienta, acrescentando que o tempo passado no apartamento de autonomização da SCML serviu também para melhorar as relações interpessoais, nomeadamente nos empregos.
“Tudo o que eu obtive da Santa Casa tenho usado na minha vida”, afirmou.
A diretora da equipa técnica de apoio aos apartamentos de autonomização disse também que, além do pagamento das despesas correntes, está definido “um valor obrigatório de poupança” para que tenham “um pé-de-meia”, valor que “só poderão utilizar quando saírem dos apartamentos”.
Para Flávio Tavares, 20 anos, esta é uma fase de aprendizagem para a vida que há de vir a seguir: “Sermos pelo menos adultos funcionais, conseguir viver na sociedade e fazermos as nossas coisas sozinhos, sem depender de ninguém”.
Estudante de Análise Política, mora no apartamento há três anos, depois de viver cerca de 16 anos numa instituição.
“A resposta na instituição onde eu estava já não era a mais adequada para uma pessoa da minha idade e como já era o primeiro ano em que estava no ensino superior, eu e a equipa achámos que a melhor resposta para mim seria uma casa de autonomia, em vez de uma instituição”, explicou, acrescentando que “queria ter mais responsabilidade, autonomia e privacidade”.
Admite que não se sentiu logo em casa, mas recorda que a fase de adaptação foi curta.
“Os jovens com quem vivo são jovens bons, dou-me muito bem com eles, às vezes estamos juntos fora de casa ou vamos sair. Foi uma fase de adaptação curta e foi boa”, contou.
Explica que as tarefas domésticas, como limpezas da casa, cozinhar ou lavar loiça, são definidas entre os três moradores e vão rodando e garante que até agora não houve quaisquer conflitos.
Para Margarida Cruz, esta é uma resposta “talhada à medida”, na qual a intervenção é feita de forma personalizada, com cada jovem, com o objetivo de “promover pessoas”, e tendo em conta as suas necessidades.
Segundo a responsável, estes jovens podem permanecer nos apartamentos até aos 25 anos, sendo que entre os 21 e os 25 “têm que estar em processo formativo”, não havendo um período médio de permanência porque isso depende do percurso de cada jovem e do momento em que entram para a casa.
Disse ainda que, apesar de esta ser uma resposta que tem vindo a “aumentar exponencialmente”, a SCML continua “a ter muitas candidaturas”, o que faz com quem seja “difícil responder a todas as solicitações”.
Vagas para apartamentos de autonomização são “preciosas” e há “urgência grande”
A Misericórdia de Lisboa tem mais apartamentos de autonomização do que as outras instituições juntas, o que torna as “vagas preciosas”, defendeu o responsável da Direção de Infância e Juventude, segundo o qual “há uma urgência grande” nesta resposta.
Em entrevista à agência Lusa, António Santinha adiantou que a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) gere atualmente 18 apartamentos, com sete tipologias de autonomia diferentes, graças aos quais é possível dar resposta a cerca de 360 jovens.
“Temos apartamentos que vão desde apartamentos para miúdos com algumas limitações cognitivas ou mesmo na área da deficiência, até depois para miúdos que já são mais autónomos e praticamente vivem sozinhos, têm acesso ao seu dinheiro, fazem a gestão diária do seu dia-a-dia”, adiantou.
O responsável explicou que a aposta nos apartamentos de autonomização começou em 2016 e que, desde essa altura, terão passado cerca de 600 jovens por este tipo de resposta.
António Santinha explicou o número com o facto de haver uma “rotatividade grande” nos apartamentos, uma vez que são projetos “talhados à medida” de cada jovem, nos quais é trabalhada a autonomia e cuja evolução depende das capacidades de cada um.
Exemplificou que se em causa estiver um jovem com menos capacidades ou algumas limitações, o tempo de permanência pode ser superior ao de outro com maior capacidade de autonomia.
“O tempo de permanência está associado ao tempo em que eles conseguem terminar os seus estudos e, portanto, a nossa medida pode ir até aos 25 anos”, adiantou.
Salientou que os apartamentos são uma resposta para retirar os jovens das instituições e, por isso, “têm muito poucas características institucionais”, já que, apesar de haver uma equipa de apoio às habitações, os jovens vivem sozinhos e são responsáveis pela gestão dos apartamentos.
Defendeu, por isso, que “quanto mais jovens conseguirem chegar aqui, à zona de autonomia, menor será o apoio a dar em termos de acolhimento residencial e melhores serão as respostas para os jovens”.
De acordo com António Santinha, há lista de espera para conseguir vaga num destes apartamentos e “há uma urgência grande” neste tipo de resposta exatamente pelo facto de haver cada vez mais aposta na desinstitucionalização, adicionado ao facto de a SCML dar resposta a todo o distrito.
“O número de apartamentos que nós temos é superior ao somatório das outras instituições todas e, portanto, as vagas são preciosas e há muitas requisições. Há muitas candidaturas de outras instituições e nós vamos gerindo tendo em conta a urgência, a capacidade do jovem e tendo em conta, também, este mosaico entre os diferentes apartamentos”, adiantou, afirmando não conseguir quantificar o tempo de espera.
O responsável detalhou que a SCML tem um apartamento com capacidade para sete jovens “com grande comprometimento cognitivo”, que é caso “único no país”, além de cinco apartamentos para jovens que são funcionais, mas não prosseguiram os estudos e têm algumas limitações.
Depois, há um conjunto de apartamentos que funcionam através de protocolo com a Direção-geral de Reinserção e Serviços Prisionais, para jovens que passaram pelos centro educativos e que cumprem ali a parte final da sua medida tutelar educativa.
Além destes, a SCML tem também uma estrutura residencial, de integração comunitária, onde residem cerca de 150 jovens, de 28 nacionalidades diferentes.
De acordo com os dados mais recentes, disponibilizados no Relatório de Caracterização Anual da Situação de Acolhimento das Crianças e Jovens (CASA 2023), nesse ano 200 jovens passaram por um apartamento de autonomização, o que representa 3,1% do total de 6.446 crianças ou jovens em situação de acolhimento.
Esse número, representa um aumento de 22% face a 2022, mas significa um crescimento de 92% comparativamente com 2013, tratando-se de uma resposta para jovens com mais de 15 anos.
António Santinha recordou que o primeiro apartamento de autonomização nasceu há 20 anos, na altura sob gestão do Instituto da Segurança Social, tendo sido encarado como “uma coisa muito fora da caixa” exatamente porque “havia um sistema muito institucional”.
Disse acreditar que venham a ser criados mais apartamentos, dando sequência ao movimento “pioneiro” da SCML, de reestruturar o acolhimento residencial em respostas de autonomia ou de acolhimento familiar.