O vencedor do Prémio Literário José Saramago deste ano é Francisco Mota Saraiva, com o livro Morramos ao Menos no Porto. O anúncio foi feito ao início da tarde desta terça-feira, num evento organizado no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém (CCB), em Lisboa, como já vem sendo tradição. Foi nesta sala que o escritor José Saramago foi homenageado pelo Estado português após ter sido distinguido com o Prémio Nobel da Literatura em 1998.

Francisco Mota Saraiva é jurista. Nasceu em Coimbra em 1988 e vive em Lisboa, onde se licenciou em Direito pela Universidade Nova de Lisboa, com um mestrado em Direito e Gestão, pela Nova School of Business and Economics. “Em 2021 foi-lhe concedida uma bolsa de criação literária, pela Direcção-Geral do Livro, Arquivos e Bibliotecas, e, em 2023, uma residência literária pela Fundação Eça de Queiroz”, explica a informação disponibilizada pela organização do prémio. Aqui onde canto e ardo é o título do primeiro romance do autor, editado pela Gradiva e que no ano passado foi distinguido com o Prémio Literário Revelação Agustina Bessa-Luís. Este Morramos ao menos no porto será publicado em 2025.

No ano em que este prémio literário celebra 25 anos de existência, o júri do Prémio Saramago voltou a mudar, sendo composto pelo vencedor inaugural do galardão, Paulo José Miranda (Prémio Literário José Saramago 1999), pela escritora brasileira Adriana Lisboa (Prémio Literário José Saramago 2003) e pelo escritor angolano Ondjaki (Prémio Literário José Saramago 2013). Outra mudança recai na escolha de Lídia Jorge para membro honorário do júri, substituindo Nélida Piñon, que morreu em 2022.

A estas personalidades juntam-se os membros fixos, Guilhermina Gomes, presidente do júri e Pilar del Río, em representação da Fundação José Saramago. Destes membros do júri, apenas Ondjaki não pode comparecer à cerimónia, que também contou com a presença do escritor brasileiro Rafael Gallo, vencedor de 2022.

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No seu elogio a Morramos ao menos no porto, Adriana Lisboa apontou-lhe uma “qualidade quase musical” e “um estilo muito próprio, quase um idioma particular”, que constroem “um romance impiedoso” e “corajoso”. “Nós, leitores, não queremos saber de piedade. Não queremos que nos carreguem no colo. Queremos livros que respeitem a nossa inteligência e que nos ajudem a lembrar o quão problemática é esta nossa breve passagem pelo mundo”, defendeu.

Sendo um “livro de sombras”, a escritora diz que esta obra foge a maniqueísmos numa era em que “deixamos de fazer perguntas e procuramos apenas respostas prontas – e de preferência fáceis”. Em Morramos ao menos no porto, “estamos diante de um mundo em que paira uma espécie de neblina. O sentido ora se vislumbra e ora escapa, o leitor se perde e se reencontra o tempo todo, como se estivéssemos andando numa floresta, à noite. Ou como se estivéssemos numa nau, em alto mar. Esse jogo entre o que se esconde e o que se revela mantém a nossa curiosidade viva: estamos sempre prestes a capturar alguma coisa e sempre vendo as coisas escapulirem das nossas mãos”, apontou a autora de Azul – Corvo.

No seu discurso, Adriana Lisboa destacou ainda que o mundo representado neste romance, em “desintegração”, espelha o nosso bem real, “em que vemos num mesmo ano ondas de calor interrompendo as aulas nas escolas na Índia, nas Filipinas e na Tailândia, o fogo devastando os principais biomas brasileiros, entre os quais a Amazónia, e o fumo atingindo 80% do país, enchentes assolando a Espanha, o sul do Brasil, Cuba, Quénia, ciclones e tornados causando devastação nos Estados Unidos, no Bangladesh. Dado o caos à nossa porta, a membro do júri afirmou que “a nossa perplexidade diante desses factos, dessa realidade que é consequência da própria atividade humana no planeta, faz-nos compreender que a modernidade não era tão segura quanto prometia”. “Não deixo de ver, no romance Morramos ao menos no porto, uma outra escala de incerteza e de perplexidade, e nesse sentido ele é um inquestionável fruto dos nossos tempos, mas que não precisa de rezar pela cartilha dos modismos contemporâneos”, afirmou.

Um autor contra o medo, mas com o peso da responsabilidade

Já no seu discurso vitorioso, Francisco Mota Saraiva destacou a forma como o medo afeta o mundo contemporâneo e como os livros oferecem um bálsamo, quando não mesmo salvação, perante esse flagelo.

“Hoje temos um certo sentimento relativamente comum. Há mais medo. São mais as luzes que se apagam. E esta penumbra que é o nosso mundo enche-se do ruído próprio do escuro e do silêncio. Como podemos ler debaixo das bombas de Gaza? Ou fechados nas burkas negras das mulheres afegãs? Entre os estreitos corredores das tendas de Rafah? Ou nos cascos naufragados no Mediterrâneo? Como podemos ler, sob o julgo impassível de todos esses homens de olhos vermelhos e vorazes, esses férreos que não querem ler e que, com eles, nos arrastam para o fanatismo e para a ignorância”, indagou a partir do palco do grande auditório do CCB.

Ao mesmo tempo, perante quem vive sob carestia ou devastação, é difícil encarar que sejam os livros a solução perante tais problemas. No entanto, Francisco Mota Saraiva defende que se os livros “não salvam”, ao menos “ajudam a salvar”. “O livro e o ato de leitura têm em si a generosidade e a nobreza de um grito que vem em nosso socorro. A força benigna e delicada de uma mão que cala o medo. Por isso, peço-vos, não tenham medo. Leiam, leiam sempre. E se tiverem medo, se acharem nas vagas o desconsolo da vida, não se esqueçam que para o bem e para o mal, sempre acabarão por morrer ao menos no porto”, afirmou, referindo que o título do seu livro premiado é retirado das Cartas a Lucílio, de Séneca.

Em conversa com os jornalistas, o autor explicaria de forma mais direta o que pretendeu transmitir. “O nosso mundo é muito incerto e longe de mim querer fazer com isto política, mas a verdade é que há menos luzes. Todas as notícias que nos chegam — mais recentemente dos Estados Unidos —, tudo isso me deixa com grande preocupação e apreensão e se calhar o nosso problema é não lermos. E como a Lídia Jorge há pouco referia, quando não lemos, não vemos o outro e se não vemos o outro não podemos ir mais longe, não podemos combater esse medo e esse mal”, defendeu.

Sem querer revelar muito deste Morramos ao menos no porto, Francisco Mota Saraiva fala numa “história de um grande amor e que tem subjacente uma descoberta relativamente macabra, quase tétrica”. “A minha intenção foi construir personagens que se embrenham nesse mundo, muito marcado pelo medo, pela dor e pela violência e a forma como essas personagens reagem nesse mundo, adiantou. Algumas destas personagens, acrescenta, são “figuras representativas, seja do aborto, seja do fingimento, seja de soldados embarcados”. “Vamos encontrar uma multiplicidade de personagens que vão compondo e criando pequenas histórias para esse efeito” numa “distopia que poderia encaixar-se perfeitamente no nosso mundo atual”.

Tendo como referências literárias Ferreira de Castro, Carlos de Oliveira, Maria Velho da Costa, António Lobo Antunes, assim como os incontornáveis nomes de José Saramago e Agustina Bessa-Luís, o escritor confessou um outro medo, o da responsabilidade de ter ganho os prémios que carregam o nome destes dois vultos das letras nacionais.

No entanto, Francisco Mota Saraiva, sendo já um autor publicado pela Gradiva, assume ter concorrido ao Prémio Literário José Saramago pelo sonho de ombrear com a “galeria de autores muito exclusiva” que o venceu. “São nomes incontornáveis da literatura, e acho que, num mundo literário tão difícil, com todos os obstáculos que isso possa implicar, entrar com o prémio Saramago é entrar com um nome maior e com a possibilidade de se poder fazer o que se quer. No meu caso é escrever”, diz.

Acumulando a escrita ao seu trabalho como juristas e consultor, o autor não esconde a vontade de um dia dedicar-se apenas à produção literária, apesar de conceder o quão difícil é viver apenas da arte. Enquanto tal não acontece, aproveita o tempo livro para contar histórias. “Tento ocupar todos os meus fins de semana, feriados, férias, qualquer bocadinho que eu tenha para poder escrever. Tenho de tentar sempre encontrar um pequeno espaço, um pequeno tempo, e onde eu conseguir encontrar esse pequeno espaço e esse pequeno tempo, escrevo”, conta.

É também dada essa labuta constante que Francisco Mota Saraiva deixa como recomendação “trabalhar muito”. “Eu estou a escrever há muitos anos, comecei por escrever muitas coisas más, coisas que foram tornando-se um bocadinho melhores. Isso parte muito de trabalho e dedicação, nunca é só sentarmo-nos a escrever, não funciona assim. Isso representa muitos sacrifícios, se as pessoas tiverem dispostas a fazê-los, podem de alguma forma ser recompensados. E acima de tudo, perceberem se também têm alguma voz dentro delas que possam expressar e trabalhá-la”, concluiu.

De recordar que o prémio passou a ter um novo modelo em 2021, sendo organizado de dois em dois anos para distinguir obras de ficção inéditas de autores de língua portuguesa até aos 40 anos. Além do mais, o valor pecuniário do prémio foi também elevado, de 25 mil euros para 40 mil euros.

O vencedor da distinção tem também direito a ver a sua obra vencedora a ser “publicada e distribuída em todos os países da lusofonia”, como aponta a organização. Se no Brasil, essa responsabilidade fica a cargo da Globo Livros, em Portugal é o Grupo Porto Editora que tratará da publicação, sendo a edição portuguesa distribuída e comercializada em todos os países da lusofonia em que não seja publicada localmente.

Esta é a lista de vencedores do Prémio José Saramago:

  • 1999 – Paulo José Miranda (Portugal)
  • 2001 – José Luís Peixoto (Portugal)
  • 2003 – Adriana Lisboa (Brasil)
  • 2005 – Gonçalo M. Tavares (Portugal)
  • 2007 – Valter Hugo Mãe (Portugal)
  • 2009 – João Tordo (Portugal)
  • 2011 – Andréa del Fuego (Brasil)
  • 2013 – Ondjaki (Angola)
  • 2015 – Bruno Vieira Amaral (Portugal)
  • 2017 – Julián Fuks (Brasil)
  • 2019 – Afonso Reis Cabral (Portugal)
  • 2022 – Rafael Gallo (Brasil)