Miguel Esteves Cardoso disse que ele não era um Woody Allen. Era “o Woody Allen, mas nascido no Rio”. Dirão agora vocês, “O que é que esta indivídua tem para acrescentar depois disto?”. Pois esta indivídua vai exercer o seu lugar de fala e sem necessidade de se pôr em bicos de pés, coisa que faz amiúde dado o seu frugal metro e cinquenta e sete. O facto é que quando a dogmática escrita de MEC fez saber, sem apelo nem agravo, que Gregório Duvivier é genial-ponto-parágrafo, a peça O Céu da Língua ainda não tinha estreado. Logo, ainda não tinha tido oportunidade de ver o que eu vi, esta sexta-feira.
No Teatro Aberto, em Lisboa, fui feliz e tanto e, em simultâneo, deprimi violentamente. Porquê? Fácil: feliz porque efetivamente Gregório Duvivier é genial-ponto-parágrafo e esta peça só o reforça e não é muito, nem é pouco, é bastante. Deprimi, porque me senti criativamente ainda mais diminuta do que sou em altura, a ponto de considerar mudar de ofício e dedicar-me à marcenaria, quem sabe. Afinal, de que vale andar nisto da escrita, quando este farfalhudo trombonista (farfalhudo a tempo inteiro, o sopro é que é em regime de part-time) leva um texto tão bom a palco, que saí de lá capaz de tatuar a folha de sala?
Mas que espetáculo é este, afinal? Na dita folha de sala, Gregório descreve O Céu da Língua como um “anfíbio”, o que não é um bom princípio para mim, uma vez que me remete para o bicho-sapo e embora eu tenha medo de quase tudo o que é bicheza, este está no pódio olímpico das minhas cagunfas. Mas aos génios tudo se perdoa. “Um filho do stand up comedy com o circo pobre (…) pitadas de Ted Talk e meia-xícara de teatro musical.” Parece não fazer sentido nenhum, mas vai-se a ver e faz tanto sentido, que passa a ser de sentido obrigatório repor este espectáculo em breve, cujas sessões já estão, naturalmente, esgotadas. Não sou de intrigas, nem quero arranjar problemas a ninguém, mas sugiro que entupam o Instagram da H2N Culture Connectors, produtora cá do burgo responsável por este bonito objeto, com apelos inflamados por mais datas.
O Céu da Língua é uma ode à língua portuguesa, obsessão confessa do autor, que acredita ser partilhada com o povo português. Gregório vai desenrolando um novelo sobre a língua portuguesa, o PT-PT e o PT-BR, o poder da palavra, o que ela nos dá e nos tira. Origem e metáfora, palavras moribundas e palavras renascidas. Palavras bonitas e feias, palavras que dão medo e outras que dão tesão, palavras… É comédia da boa, como seria de esperar, apesar de por vezes ser difícil rir, estando tão assoberbados com tudo o que acontece em palco. É um canhão da Nazaré de informação, que nos vai levando entre o sorriso rasgado, o “tá bem visto!”, o queixo no chão, o “viste o que o gajo fez ali?”, a gargalhada desbragada e o “Só queria passar 24 horas na cabeça deste gajo para perceber como é que aquilo funciona”. Se calhar, esta última sou mais eu, mas acredito que não estou sozinha.
Uma peça que é um monólogo, mas não há solidão em palco. As palavras escritas por Duvivier têm-no como mensageiro exclusivo, mas faz-se acompanhar pelo contrabaixista Pedro Aune “parceiro de Carnaval”, que a tempos e no tempo sublinha o texto, coloca-o a bold, ou dá-lhe uma inclinação a itálico. Na outra extrema do palco (as únicas que têm lugar no mundo do Gregório, ao contrário do que alguns querem fazer crer), encontramos a irmã Theodora Duvivier, responsável pela criação visual e pela projeção e deixem-me que vos diga: que bonito é! Fora do palco, um nome que Gregório não deixa cair no esquecimento: Luciana Paes, a sua “atriz preferida no Brasil e no mundo” dirige a peça. O figurino é, também, digno de nota: o ator apresenta-se tão anfíbio como o formato. Parece uma versão 2024 de Luís Vaz de Camões, meio guna de Valongo, meio fashionista na Moda Lisboa. Com ténis Sanjo e peúga branca. Como não amar?
Ah! E temos Duvivier a cantar. Sim, o demónio também canta bem. E enche o palco e deita-se nele e faz dele gato sapato. Ah! E tem poesia, como anunciado. Muita e boa e desejada e desejável. A determinada altura, Gregório diz que “poesia é como nude, só é bom com consentimento”. Apesar de estar em crer que ninguém assinou nenhuma autorização para a escuta poética antes do espectáculo, diria que ninguém naquela plateia queria dar block à lírica. Gregório usa a gola do poeta, mas não se fica pela epopeia camoniana e vai muito além da Taprobana, usando a poesia como argumento e deleite. O espectáculo é em si mesmo um poema, dos de amor, à língua mais bonita do mundo (chamem-me imparcial, desafio-vos!), com tudo a que tem direito. Tem Luís Vaz de Camões e tem Fernando Pessoa. E Tem Alexandre O’Neill e tem Caetano Veloso. Tem as palavras de Eugénio de Andrade e as palavras de Marieta, a filha mais nova do ator. E tem panturrilha e tem pachacha.
O Céu da Língua é o sonho molhado desta que vos fala. E sim, estou bem ciente do risco que corro ao usar a expressão “sonho molhado” na mesma oração em que refiro o vocábulo “língua”, já para não falar da forma como terminei o parágrafo anterior. Mas as palavras existem para ser usadas e acredito que a cara audiência não é literal, mas sim literata, pelo que farei uso das ditas sem medo de desditas. Este espectáculo é uma ode à língua, um jogo de palavras com 80 minutos, em que só se lamenta não haver lugar para descontos e prolongamento.
Ora, sendo a palavra o meu brinquedo favorito, o meu martelo e escopro, o meu xodó, como se diria do outro lado do Atlântico, os meus olhos brilharam do minuto zero ao apito final. A peça de Duvivier é um parque de diversões com carrosséis. montanhas russas, carrinhos de choque e afins. O autor e intérprete carrega no botão para mais uma voltinha, mais uma viagem. E as palavras andam à roda, sobem e descem, chocam entre elas. E nós assistimos de camarote. A folha de sala, escrita por Gregório Duvivier, começa assim “Todo um texto é um pretexto”. Espero que nunca lhos faltem para voltar a Portugal. Não só não nos pediu reparação histórica, como ao invés de nos pedir a devolução, entregou-nos um texto que é ouro.