O salário não é o fator mais valorizado pelos médicos nem a principal razão para estes abandonarem o Serviço Nacional de Saúde. À frente da remuneração estão questões como a autonomia, a diferenciação, as condições de trabalho e a qualidade das lideranças. É o que conclui um trabalho de investigação levado a cabo pelo administrador hospitalar Daniel Ferro, ex-presidente do Hospital de Santa Maria.
“Há três questões essenciais que o médico valoriza. A autonomia (poder escolher uma área de interesse); a diferenciação (poder tornar-se em alguém de referência nessa área); bom relacionamento e bom ambiente de trabalho. Estes três fatores são necessidades psicológicas básicas”, diz Daniel Ferro ao Observador. No trabalho, que envolveu entrevistas a 28 médicos que saíram do SNS, estes fatores foram referidos por 89% dos clínicos como determinantes para abandonarem o sistema público de saúde, mais do que qualquer outra variável.
“Quando estas necessidades básicas não são asseguradas, pode existir uma rutura institucional ou rutura do contrato psicológico com a instituição. São fatores determinantes para a [não] continuidade dos médicos”, salienta Daniel Ferro. A falta de condições de trabalho foi a segunda causa que mais contribuiu para a decisão dos médicos de deixarem o SNS, com 79% dos profissionais a referirem este fator. Neste âmbito, incluem-se o excesso de trabalho de urgência e o excesso de trabalho programado, genericamente associados à falta de recursos.
Remuneração surge apenas como quarto fator mais relevante
Em terceiro lugar nas causas mais referidas pelos médicos entrevistados (e que abandonaram o SNS entre 2018 e 2023), está a liderança, apontada por 64% dos clínicos. “Nomeadamente, a não atribuição de horários reduzidos, a falta de participação na decisão e a falta de autonomia para poderem resolver problemas”, explica Daniel Ferro. A questão da qualidade das lideranças (já abordada publicamente pela ministra da Saúde, Ana Paula Martins, que considerou “fracas” as lideranças nos hospitais do SNS) é um aspeto que o administrador hospitalar considera que deve ser melhorado.
Ministra da Saúde diz que foi mal-interpretada na declaração que fez sobre “lideranças fracas”
“As lideranças podem fazer a diferença e devem fazer melhor. Devem estar mais atentas, mais sensíveis, serem mais psicólogas dos seus médicos. Não temos muitas opções de lideranças com perfil transformacional”, admite, acrescentando que “é preciso que as lideranças estejam bem habilitadas para lidarem com questões complexas”, o que não acontece. Para o trabalho, feito no âmbito de um mestrado no ISCTE, Daniel Ferro ouviu também 13 chefias intermédias dos três centros hospitalares onde foi feita a investigação (São José, Amadora-Sintra e Barreiro-Montijo — todos na zona de Lisboa e Vale do Tejo, a mais carenciada e com maior dificuldade na retenção de profissionais).
Ao contrário do que se poderia pensar, as condições remuneratórias surgem apenas como a quarta causa mais referida pelos 28 médicos que deixaram o SNS, tendo sido apontada por 61% dos clínicos. Daniel Ferro admite que, neste campo, as chefias intermédias têm recursos limitados para fazer face ao problema, uma vez que a autonomia dos serviços para alterarem a remuneração dos médicos é baixa.
Apoio institucional, planos de promoção e alívio da carga de trabalho para reter mais médicos no SNS
“Os líderes intermédios, confrontados com a cessação de contratos devido aos baixos salários, tentam mitigar a dificuldade de retenção através de programas de cirurgia adicional e/ou atribuição de incentivos através de modelos de organização dos serviços em CRI’s [Centros de Responsabilidade Integrados]”, pode ler-se no trabalho. Em quinto lugar na lista de fatores que mais pesaram na decisão deste grupo de médicos para deixar o SNS está a dificuldade em conciliar os horários de trabalho nos hospitais públicos com a atividade privada e também com a vida pessoal (um aspeto referido por 43% dos médicos).
Para aumentar a taxa de retenção de médicos no SNS e melhorar o papel que os líderes intermédios podem ter, Daniel Ferro faz várias recomendações — que, espera, possam vir a ser aplicadas no terreno numa segunda fase. Uma deles é reforçar o perfil da liderança transformacional das lideranças. “Os recursos humanos têm de ser capazes de oferecer maior apoio institucional à diferenciação dos médicos, têm de conseguir melhores planos de promoção dos médicos”, salienta o ex-presidente dos Conselhos de Administração dos hospitais Garcia de Orta e Santa Maria. Outra recomendação é melhorar o processo de recrutamento, seleção e socialização dos médicos.
Intervir na carga de carga de trabalho a que estes profissionais estão sujeitos deve também ser uma prioridade, defende Daniel Ferro. “É preciso reorganizar trabalho de forma a aliviar as pessoas da carga de trabalho excessiva ou muitas horas de urgência — as novas gerações têm valores que não se compatibilizam com isso e as escalas estão muito dependentes disso”, salienta o administrador hospitalar da Unidade Local de Saúde de São José. Embora não seja determinante, Daniel Ferro vinca também a necessidade de acelerar a progressão salarial e melhorar a avaliação de desempenho dos médicos.