Título: Mercado do Bolhão / Bolhão Market de Nuno Valentim
Autores: Joana Couceiro, Luís Soares Carneiro, Nuno Miguel Borges
Fotografia: André Cepeda
Design: Macedo Cannatá
Editor: Nuno Miguel Borges Books
Apoios: Câmara Municipal do Porto e outros
Páginas: 223, edição bilíngue
Preço: 40 €

O Mercado do Bolhão ocupou um baldio pantanoso que em 1836-37 o Município do Porto dirigido por Luciano Simões de Carvalho decidiu tornar, pelo risco do arquitecto da cidade Joaquim da Costa Lima Júnior, uma praça — e «magnífica praça», no dizer do próprio — que sugeria «uma praça-jardim, um espaço híbrido, comercial e de lazer» (p. 17): um jardim público mas também um mercado organizado em quatro quarteirões para os diferentes géneros, concentrando ali mercados avulsos espalhados pela cidade. Passariam, porém, quase trinta anos — entre hesitações estratégicas municipais, impasses técnicos, diferentes projectos e a lentidão dos trabalhos de terraplanagem, construção e instalação — até que um guia histórico do viajante o descreva como «mercado elegante, gradeado, formado interiormente por dois renques de lojas de venda e […] sombreado de muitas árvores. Vendem-se aqui, como na praça do Anjo, hortaliças, frutas, flores, aves, carnes, etc.» (p. 18).

António Correia da Silva (1880-1963), arquitecto municipal desde 1911, é o autor do projecto do Mercado do Bolhão tal como o conhecemos, construído entre 1914 e 1917, com claras afinidades com o estilo Beaux-Arts que já tanto haviam influenciado outras obras predominantes na cidade, desenhadas por José Marques da Silva (1868-1947). «As ferramentas de composição que Correia da Silva trazia da sua formação em Paris, bem como os seus modelos, revelam-se da maior importância na obra finalmente construída» (Couceiro, p. 22). Contra a concepção original, uma passagem coberta à cota alta entre as galerias nascente e poente foi acrescentada em 1939 (ou será anos 50?; v. p. 133), mas Nuno Valentim (1971-) soube ser fiel às ideias originais de Correia Silva (sem cobertura total, mesmo que de vidro, que Domingos Tavares, autor duma monografia sobre Correia da Silva, diz ter sido prevista: v. nota p. 73) e optou pelo «desenho cuidado de uma [nova] estrutura mais leve e sem cobertura». Estamos então, jubila a arquitecta e investigadora da FAUP, diante dum «Bolhão novo, e avassaladoramente o mesmo» (p. 21).

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© André Cepeda

A maioria dos livros de Nuno Miguel Borges dedicam-se a obras de restauro e renovação, em que há um ou dois estudos iniciais, de carácter histórico ou afim, e depois uma longa entrevista do próprio editor ao arquitecto, a título de balanço da obra feita e das questões que ela suscitou. Antes disso, neste caso, uma nova série de fotografias de André Cepeda exibe a mais decrépita degradação do Mercado (não há outra maneira de o dizer), um portefólio que é, afinal, pelo menos duas décadas posterior ao primeiro concurso (1990-92) para a reabilitação do Bolhão, mas que não foi adiante, era o socialista Fernando Gomes presidente da Câmara. Só no primeiro mandato de Rui Moreira (2013-17), «com Paulo Cunha e Silva na vereação da cultura e Correia Fernandes no urbanismo», diz Joana Couceiro, «os projectos de shoppinguização são abandonados» (p. 24). Todavia, os projectos não realizados — a tal «arquitectura de papel» (p. 72) — também são abordados num capítulo assinado por Luís Soares Carneiro, que fazendo a diacronia dos projectos e das suas vocações acaba por concluir que a obra de modernização actual foi uma rara «conjugação virtuosa e positiva», «um momento onde méritos diversos, circunstâncias e oportunidades convergiram», e o projecto de Valentim «soube ler o tempo certo e estar no tempo certo» — o tempo em que o turismo é um pilar da vida da cidade: «novas realidades, novos protagonistas e nova cidade, que entretanto emergiu em função das novas circunstâncias» (p. 78). Em todo o caso, o Bolhão do Porto não é e não será a Ribeira de Lisboa.

© André Cepeda

Nuno Valentim admite na entrevista que a substituição das barracas de venda — «ainda por cima algumas desenhadas pelo Teixeira Lopes», conceituado artista da cidade —, tidas como «muito disfuncionais, quanto à geometria, à implantação, ao desenho e à materialidade» (p. 135), foi uma decisão «muito exigente», mas a única possível para um mercado de frescos municipal dos dias de hoje. As ruas laterais foram libertadas da «muita autoconstrução» (sic) dos vendedores, permitindo realçar a colunata periférica de ferro fundido, foram repostas a cobertura em ardósia e as montras de ferro fundido. Ainda que muito degradado e adulterado, o edifício mantinha vestígios da sua «grande transparência» primordial, coerência na sua relação com a rua, a grande praça descoberta (p. 132). O arquitecto sublinha a sua vontade de fidelidade à «matéria preexistente», ao «desenho notável de Correia da Silva» (p. 136), de «aproximação à cor original, uma argamassa pigmentada com um tom saibroso» (p. 137), de restauro dos marmoreados, muitos deles pintados por cima, algumas portas de madeira de talhos e de restaurantes, avançando sempre numa avaliação caso a caso («um princípio adaptativo», p. 144), entre o restauro e a transformação. As antigas cortinas dos vendedores foram mantidas, distinguindo-se as do interior e as do exterior do mercado. Uma extraordinária atenção foi dada ao transporte dos víveres, aos resíduos de todo o tipo e aos ditos back-office, sem esquecer o conforto acústico, a luminária e a protecção da chuva. Tratou-se, «no fundo, de decidir pelo bem maior ou pelo mal menor, sabendo que as questões humanas e de habitabilidade num mercado de frescos não podem falhar enquanto desígnio da cidade» (pp. 134-35). Mas sabendo também dos constrangimentos em campanhas de restauro, impostos pela carência de mão-de-obra qualificada e de indústria vocacionada (dificuldades nos soletos de ardósia e no ferro forjado, entre outras).

© André Cepeda

Quatro anos de obra depois, «continuamos a resolver questões pontuais que surgem de quando a quando», diz Nuno Valentim, mas a satisfação do arquitecto com a obra feita é inegável: «É melhor do que eu alguma vez imaginei» (p. 146). E este histórico livro — não hesito em classificá-lo assim — aqui está para o comprovar. Que venham mais intervenções como esta. Bem precisamos delas.