De dois em dois anos, a pacata localidade de Idanha-a-Nova transforma-se. Junto à barragem Marechal Carmona, surgem estruturas estranhas, coloridas, instalações de arte. Uma terra dentro de outra. Mais do que um festival de música, o Boom é uma experiência cultural, uma celebração do que é diferente e alternativo. Quem o visita, dificilmente o esquece e quer sempre, sempre voltar.
Criado em 1997 como um pequeno evento musical, o Boom foi crescendo até se tornar num dos mais importantes festivais do género na Europa. Foi acumulando prémios, distinções, e todos os anos em que é realizado atrai milhares de pessoas para as margens de uma barragem em Alcafozes, uma pequena povoação do concelho de Idanha-a-Nova. Cerca de 90% do público é estrangeiro (este ano esperam-se visitantes de 162 país diferentes), mas há também portugueses pelo meio.
Ir ao Boom, porém, pode não ser tarefa fácil. Os bilhetes para os sete dias do festival voam. Os deste ano estão esgotados desde dezembro, apesar de custarem acima de 100 euros (entre 130 e 150 euros). Mas, para quem vai, o valor até é pouco. As condições não podiam ser as melhores e a paisagem fala por si. E o ambiente? Inesquecível.
Os bilhetes para a edição deste ano esgotaram em apenas 34 dias. Ao todo, foram postos à venda 33.333 entradas.
“Adorei o ambiente, a infraestrutura, organização, staff, espaço. Foram sem dúvida os melhores que já usei e vi em festivais (e já fui a uns quantos)”, admitiu ao Observador João Meira, que foi pela primeira vez ao Boom em 2012. Na altura, foi mais pela curiosidade de experimentar um evento diferente, mas gostou tanto que não hesita em dizer que gostava de lá voltar.
Boom, uma experiência inesquecível
Apesar de ser muitas vezes descrito como um festival de música, o Boom é muito mais do que isso. A programação, extensa, inclui workshops, palestras, exposições e instalações de arte, dança e música. Há concertos, mas não só. É um evento multidisciplinar, transgeracional e intercultural, sem barreiras ou preconceitos, capaz de apelar a públicos diferentes, com interesses diferentes. É por isso que é tão popular e é capaz de vender todos os bilhetes em apenas 34 dias. Um feito que muitos outros festivais gostariam de atingir.
“Acho que qualquer pessoa que tenha uma mente aberta e que goste de estilos de vida alternativos, irá apreciar o Boom. É um ambiente muito diferente daquele que se costuma encontrar na maior parte dos festivais”, confessou ao Observador Sara Pires, que foi pela primeira vez ao Boom Festival também em 2012. Gostou tanto que decidiu voltar dois anos depois, em 2014.
Apesar de querer repetir a experiência, este ano não conseguiu ir porque os bilhetes “literalmente voaram”. Diz que não gosta de caracterizar o evento como apenas um festival de música, porque é também “uma experiência social, espiritual e cultural”. “É muito mais do que as pistas de danças, o trance, os estereótipos de hippies e rastafaris“, garantiu.
O Boom Festival realiza-se de dois em dois anos, durante a lua cheia de agosto. Foi criado há 19 anos.
“Existem tantas coisas que se podem fazer!”, frisou. “Posso acordar e começar por frequentar um workshop de ioga ou outra atividade de que nunca ouvi falar e, antes do almoço, assistir a uma palestra que me tenha despertado o interesse, dar um mergulho na barragem para me refrescar, almoçar na zona do Sacred Fire (onde existem imensas sombras, esculturas feitas de terra, pequenas construções de madeira entre tantos outros pormenores inesperados no terreno, árvores) e relaxar um bocadinho. À tarde posso ir às pistas de dança, onde o ambiente é genuinamente positivo e são distribuídos sorrisos e abraços grátis, mesmo sem os pedires.”
Há ainda a tenda Chill Out, um local ideal para relaxar e para fugir do sol quente, diferentes zonas dedicadas exclusivamente à música, uma tenda de arte psicadélica (onde se podem comprar algumas das obras expostas) e palestras “onde também são projetados filmes temáticos que se relacionam com ideologia do festival”. “A rotina nunca é a mesma”, garante Sara. Existem sempre formas diferentes de passar o dia — “palestras novas, workshops novos, concertos novos, animações de rua”.
Apesar de o Boom ser sempre associado à questão das drogas, Sara Pires desvaloriza. “É natural, como em qualquer festival, encontrares pessoas sob o efeito de drogas, muitas delas às vezes fora de si, mas a verdade é que não te perturbam, não te chateiam. Só tens que continuar na tua, assim como eles estão na deles”, afirmou. “Cada um aproveita o festival como bem entender, ninguém tem de julgar ninguém.”
O Boom conta com uma tenda para aqueles que têm uma má experiência com drogas, onde existe acompanhamento médico.
João Meira parece ter a mesma opinião. Em 2012, quando visitou o festival pela primeira vez, foi o ambiente que mais o atraiu. Admite que “há muita droga”, “mas simultaneamente muita segurança”. “Nunca senti que estava numa rave, sequer. No geral, as pessoas são irritantemente tranquilas, de uma forma paradoxalmente positiva.”
O Burning Man português
O Boom Festival já é falado um pouco por todo o mundo e não só pelo número de boomers estrangeiros. Em 2011, Jeet-Kei Lung deu uma conferência no TEDx Canadá sobre festivais transformacionais — transformational festival é o conceito original. O mapa-mundo que apresentou tinha um ponto assinalado em Idanha-a-Nova. O Boom Festival entrava na categoria.
Não era difícil, o evento português apresentava um conjunto de características que o colocavam, lado a lado com outros festivais, como o Burning Man, nos Estados Unidos da América, e o Fusion Festival, na Alemanha. Hoje, Jeet-Kei Lung continua a integrar o Boom no conceito. “São um género emergente de festivais em todo o mundo, que através da programação, da produção e dos participantes promovem experiências poderosas, estimulam o crescimento pessoal, a descoberta espiritual e o fortalecimento social”, explicou.
Nos festivais transformacionais não faltam os concertos de música eletrónica, as instalações de arte visionária, as galerias e os workshops. Têm uma linha comum que os aproxima, mas tantos outros factos que os separam. Quando em 2014, Jeet-Kei Lung viajou até Alcafozes para participar no Boom não esperava encontrar “um programa ambiental com tanta qualidade e tão bem pensado”, que já valeu ao festival vários prémios na área.
Ao Observador, afirmou que até as próprias casas de banho do Boom tentam não ser prejudiciais para o meio ambiente: “A organização eliminou qualquer tipo de químicos nas casas de banho, o material pode ser todo reaproveitado. Os resíduos do festival servem para fertilizar os campos e os jardins em redor”.
Uma das grandes preocupações da organização é a sustentabilidade, o que levou à adoção de práticas mais amigas do meio ambiente. Desde 2004 que o festival tem procurado desenvolver projetos nessa área, como o tratamento das águas através de biotecnologias e o uso de energias renováveis, solar e eólica. Um gesto que recebe todo o apoio por parte da autarquia. “Idanha-a-Nova revê-se em tudo o que sejam práticas de sustentabilidade e amigas do ambiente”, frisou o presidente da câmara. “Somos um concelho que se assume do mundo rural, um mundo rural que se pretende ancorado na inovação tecnológica, na competitividade e na sustentabilidade.”
O cuidado com o meio ambiente já fez com que o Boom fosse considerado, por diversas vezes, como o mais “verde” da Europa. Entre os galardões que recebeu, contam-se o European Festival Award, na categoria “Green’n’Clean Festival of the Year”, e o Greener Festival Award Outstanding, prémio que obteve nesse ano e também em 2008. Em 2010, foi ainda convidado para fazer parte do projeto United Nations Environmental and Music Stakeholder Initiative, da ONU, que visa promover uma maior consciência ambiental junto do público.
Além das práticas ecológicas e da independência dos eventos face às marcas — o Boom Festival não foge a estas “regras” — os festivais transformacionais tendem a ser uma revelação para todos. “O efeito transformador não ocorre através da ideologia, é antes uma imersão do indivíduo numa experiência que cria ativamente com os outros”, diz Jeet-Kei Lung. A forma de estar e viver estes festivais verifica-se igualmente nos bastidores: forma-se “uma grande colaboração entre artistas e também na tecnologia, na engenharia e na construção destes eventos”.
Quando visitou o festival, Lung, diretor e apresentador da The Bloom Series on Transformational Festivals (uma série de web-documentários que explora todas as vertentes de eventos como o Boom), ficou encantado quando reparou que em pleno solo português estavam representados 152 países. “Durante o festival, ouvi imensas línguas (a maioria era da Europa, claro) e mais importante, estavam todos a celebrar e a viver em harmonia. Não havia bandeiras, lutas, discussões ou rivalidades”, afirmou.
Uma das particularidades do Boom é os festivaleiros não utilizarem as bandeiras dos seus países, como adereço ou durante os concertos como acontece muitas vezes noutros festivais de música.
Jeet-Kei Lung acredita que apenas os espíritos livres poderão usufruir de um evento como o Boom: quem arriscar pode ter “experiências memoráveis para contar” e se tudo correr bem, “as pessoas poderão não voltar a ser mesmas (para melhor)”. E aquela ideia habitual de ser um evento para hippies é descartada, porque “há muitos participantes que estão envolvidos de uma maneira mais criativa e alternativa, mas também há muitos profissionais com carreiras ‘normais’.”
Uma mais valia para a região
Criado em Idanha-a-Nova, local onde se estabeleceu há 14 anos, o Boom Festival é um evento que já faz parte da vida da região. Os habitantes acabam sempre por estar envolvidos de alguma forma na sua organização, quer seja através dos organismos públicos, do comércio local ou do fornecimento de bens alimentares. E a organização faz questão de retribuir, como explicou ao Observador o presidente da câmara municipal, Armindo Jacinto.
“O envolvimento e o entusiasmo da população acabam por ser retribuídos pela própria organização, que dá prioridade aos produtores locais, sempre que possível. Mais, desde a última edição, em 2014, parte das receitas do Boom Festival revertem para o apoio a projetos sociais da região.” Além disso, este ano o evento criou cerca de 1.500 postos de trabalho, sendo que 200 foram ocupados por pessoas que residem no concelho, onde a taxa de desemprego ronda os 15,9%.
“A empatia com a população e as entidades locais, a beleza natural e o património de Idanha-a-Nova levaram-nos a sediar a empresa neste concelho em 2009″, esclareceu Artur Mendes, da organização, em comunicado. “Com isso, trouxemos recursos humanos altamente qualificados para o Interior, contribuindo não só para a economia local, como para o próprio combate à desertificação.”
“O impacto na comunidade local é, por isso, muito positivo”, garantiu Armindo Jacinto. “Trata-se de um evento-modelo, com uma organização de excelência, criador de riqueza e emprego diretos, e com efeitos não só no concelho de Idanha-a-Nova, como nos concelhos vizinhos”, salientou, acrescentando que o “impacto positivo não se cinge” apenas à região, uma vez que se trata de um evento “com repercussões na projeção, quer do município de Idanha-a-Nova, quer do nosso país“.
“Traz mais-valias muito substanciais para setores como a hotelaria, a restauração, o comércio e os serviços, que acabam por tocar a esmagadora maioria da população que, de dois em dois anos, recebe os boomers com grande entusiasmo e expectativa”, disse ainda.
O Observador tentou contactar a organização do festival, mas esta mostrou-se indisponível para falar devido à proximidade do evento.