Da Jamaica é de esperar tudo. E com amor. Um amor sui generis, claro. Ora vejamos: nos arredores de Kingston, capital do país, lá pela década de 50, surgia um movimento que juntava grupos rivais que tratavam de dar rosto ao dancehall e ao reggae. Rádio ao ombro para montar um frente-a-frente que colocava em combate (saudável) diferentes souns systems.

É certo que à época aquilo a que se passou a chamar de sound clash era bastante menos civilizado, era desculpa para esfolar adversários e roubar-lhes o equipamento. Agora é um evento que significa casa cheia a cada vez que invade um clube em Londres, Toronto ou Nova Iorque, apenas algumas das cidades onde já se manifestou este de que falamos. Chegou o dia da Culture Clash agitar Lisboa, esta quinta-feira.

A importadora do conceito foi a Red Bull Music Academy, que – e muito bem, se nos permitem – idealizou uma culture clash à portuguesa, com certeza. Se lá fora – sobretudo no Reino Unido, onde já está enraizado – a noção de battle, de elevação de um MC com um DJ nas costas, é o grande fruto da quinta, aqui, no Coliseu dos Recreios, a festa vai com a água do cozido.

Quatro crews, ou equipas, lideradas por quatro capitães, têm como missão idealizar e defender a sua camisola, ou melhor, a música que fazem. Branko é o crew leader do Club Atlas, Moullinex da Moullinex Live Machine, DJ Ride da Matilha e Pedro Coquenão orienta a Batida + Kambas e o próprio Kota!, cada uma no seu palco, numa disposição em círculo algo raro nesta sala.

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Qualidade não falta, já se percebeu. Só que todo o virtuoso precisa de estabelecer compromissos, regras para não fugir pela cancela entreaberta. Por isso aqui vão elas: cada crew tem que criar música original para o evento e vão ter que o fazer em apenas quatro rounds de dez minutos. Na última destas rondas as crews podem chamar ao palco convidados especiais que lhes garantam mais barulho. Sim, porque são os decibéis da audiência a definir a crew vencedora no final das contas. Segurem-se bem.

Club Atlas

Há lá alguém mais global do que Branko. É, por isso, natural que o produtor e fundador dos Buraka Som Sistema esteja à vontade. “Era um evento que já tinha visto algumas vezes, assim que me convidaram quis logo participar, conseguir ter um olhar sobre todo o tipo de música que se fez até ao momento e transpô-lo para quatro rounds de dez minutos, isso pareceu-me interessante”, explica.

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Daqui espera-se trabalho de ancas, evidentemente. Até porque se pensarmos bem, foi muito por culpa de Branko e dos seus companheiros que, a meio da década 2000, (re)aprendemos a dançar. O produtor lisboeta achou na Red Bull Culture Clash um formato proveitoso para medir a dimensão da música que tem vindo a fazer: “É um conceito interessante para mim enquanto artista, acho uma forma objetiva de expor a tua música em competição direta com outros sons e com outro tipo de performers. Hoje que é tudo tão virtual teres algo tão imediato parece-me muito bem”.

A turma é composta pelo próprio Branko, DJ Riot, Pongolove, Kalaf, Carlão e Fred Ferreira. E se Branko é o capataz, o mestre de obras, procurámos saber aquilo que fará o Club Atlas singrar:

O Club Atlas vai ganhar porque tem peso, falamos de música que marcou gerações. O ganhar aqui acontece quando consegues ir buscar pessoas que compraram o bilhete para ir apoiar outra crew e acabam a fazer mais barulho por ti”, garante.

Batida + Kambas e o próprio Kota!

Já se conhece esse lado contracorrente de Pedro Coquenão. Ele que assegura que não fosse já ter trabalhado com as pessoas da Red Bull Music Academy e talvez não estivesse aqui “porque não vejo nada que seja manifestação artística com uma componente competitiva, mas quis ouvir a proposta”.

O artista ficou convencido. Fazer a coisa de forma saudável, sem atirar pedras aos oponentes, que para Coquenão são mais companheiros. E os seus, aqueles que traz para palco, mais ainda. E que não podiam ser poucos. “A bela tradição africana, naquela em que fui criado, dita que cabe sempre mais um à mesa”, atira. Tratemos de ir buscar a mesa de apoio. À cabeceira, e nem precisa de pagar a conta, está Bonga. Quem tem Bonga tem tudo. A disposição completa-se com DJ Satélite nos pratos, Karlon, dos Nigga Poison, na voz e três bailarinos — sim, que na crew de Batida “a dança está ao lado da música”. André e Gonçalo Cabral, bem como Bernardino Tavares, ficarão encarregues da coreografia.

Batida_(Hight)_0009

Na hora de o inquirirmos sobre aquilo que o fará sair em braços como capitão vencedor, Pedro Coquenão responde assim: “Já ganhei. Tendo conseguido estas pessoas está feito, não consigo desejar mais, não vou tanto à disputa dos pontos, do campeonato, mas sei que neste desporto, que é o meu desporto, de ter pessoas de quem gosto à volta, sinto-me vencedor”. A preocupação maior, e talvez única, são as questões técnicas, que podem sempre acontecer. Mesmo para isso, Batida está bem preparado: “Tenho o Kota [Bonga] do meu lado e isso faz-me sentir o gajo com as costas mais quentes do mundo, se alguma coisa falhar nós conversamos um bocado e aquilo aguenta-se”.

[o teaser de Batida + Kambas e o próprio Kota]

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Matilha

Apertem-se as coleiras que a Matilha está a querer soltura. A crew de DJ Ride é, provavelmente, aquela que melhor representa o conceito mais básico de um sound clash, a união perfeita de um DJ e de um MC. Conceito pelo qual a Ride já ansiava: “Segui algumas clashes internacionais, sim. Lá fora tem estado muito ligado ao hip-hop e a artistas de quem gosto, como A$AP Rocky, até já vi um com a crew do Skepta… tinha noção que este conceito, mais tarde ou mais cedo, iria chegar a Portugal. Fiquei contente por fazer parte da primeira experiência”.

Na hora de escolher a equipa titular, o DJ português mais premiado não teve grandes dúvidas. “Foi fácil convidar os restantes elementos, são amigos e artistas que encaixam perfeitamente aqui. Os MGDRV, para além da energia em palco, têm um passado ligado ao à bass music e ao grime. O Jimmy P é um gajo que está numa cena mais crossover, é rapper mas também canta… tinha que ser”.

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A humildade assenta-lhes bem, a mesma que Ride utiliza para dizer que isto não vai ser nada fácil de vencer, sobretudo porque sabem que não têm “a popularidade do Carlão ou do Branko mas obviamente que é para dar o melhor”, antes de acrescentar que o trabalho de casa foi feito, portanto vencer é sempre uma possibilidade: “O set que preparámos é sempre a abrir, transições rápidas, muitos mashups, edits, uma série de brincadeiras. No fundo: muito hip-hop e bass music, esperemos que as outras equipas invistam noutras sonoridades”, afirma.

Moullinex Live Machine

Aqui o requinte começa no nome escolhido para a crew. Moullinex Live Machine não surge ao acaso, é que esta é a única crew que se apresentará em modo banda, numa formação composta por Xinobi, Da Chick e The Legendary Tigerman, mais Moullinex, claro. “Ninguém vai tocar tudo ao vivo, sabendo que este Culture Clash é uma ideia retirada dos sound clashes jamaicanos agrada-me subverter o conceito de battles de DJs através de uma banda completa. É uma energia distinta do DJ set, é isso que iremos explorar”, adianta.

Luís Clara Gomes, nome que consta no seu bilhete de identidade, já estava familiarizado com a iniciativa e afirma que é a “componente de criação” que mais lhe importa. “Aceitei imediatamente porque me começaram logo a fervilhar ideias, o conceito agrada-me porque aquilo que está a ser criado no concurso é tudo original, algo que talvez não acontecesse num formato menos intenso. Tem que ser tudo no máximo, não há grande espaço para subtilezas, isso agrada-me”.

Moullinex_(Hight)_0017

Se nos outros palcos se aguardam quebras, joelhos a dobrar, kuduro a querer ser semba e a desejar ser funk, hip-hop com laivos mais comerciais, de hit de rádio, na Moullinex Live Machine nada disso. Soltem-se as guitarras e os teclados que aqui não há DJ set.

Entende-se tanto aqui como nas outras formações que as rivalidades que se irão criar são ferramentas de amizade, sem necessidade para feridas. Para Moullinex, o cartaz deste Red Bull Culture Clash é sinónimo de maravilhas para a música feita em Portugal: “É um sinal do quão bem estamos no que à música eletrónica, ou de cariz mais dançável, diz respeito. Neste evento estão representados quatro grupos de pessoas muito diferentes mas que acabam por beber das mesmas influências, acabamos por ser alvo de uma contaminação comum e isso é bonito”. Tréguas, sim, mas só no fim: guerra é guerra.

[teaser da Moullinex Live Machine]

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Culture Clash esta quinta-feira no Coliseu dos Recreios em Lisboa às 21h30. Bilhetes entre os 20 e os 30 euros.