É tudo uma questão de tradição consoante o ponto do mundo onde estivermos. Se estivermos na Noruega (ou na Áustria, ou no Liechtenstein), estamos em êxtase; se estivermos na Argentina (ou em quase todos os países sul-americanos), estamos quase a passar ao lado; se estivermos na Coreia do Sul, estamos ansiosos; se estivermos em Portugal… bom, o resto da resposta depende muito de cada um dos leitores mas fica uma deixa: aqui é provável que estejamos mais próximos dos sul-americanos do que dos escandinavos, por exemplo, apesar de termos dois atletas. Uma coisa é certa: arrancam esta sexta-feira os Jogos Olímpicos de inverno em PyeongChang, com a cerimónia de abertura marcada para as 11 horas portuguesas.

Uma ponte feita pelo desporto: Coreia do Norte vai aos Jogos Olímpicos de Inverno na Coreia do Sul

E esta tem sido uma edição muito falada, que mais não seja por aspetos políticos: o desporto, e a participação nos Jogos Olímpicos de inverno, acabou por servir de ponto para Coreia do Norte e Coreia do Sul restabelecerem ligação dois anos depois, ao mesmo tempo que a Rússia voltou a estar no epicentro da polémica na sequência da suspensão do país desta edição devido ao caso de doping nacional que não passou ao lado do Comité Olímpico Internacional (nem se sabe ao certo quantos atletas russos estarão presentes no evento, nem em que condição). Mas há mais do que isso. Muito mais do que isso. E, como lançamento antes do início deste baú de histórias de força, vontade e superação, deixamos sete exemplos que ficaram para sempre gravados naquele que é um dos maiores eventos desportivos mundiais.

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Ole Einar Bjørndalen, o Michael Phelps no meio do frio

Com apenas 21 anos, Larisa Latynina foi a grande figura dos Jogos Olímpicos de verão de Melbourne em 1956, conquistando quatro medalhas de ouro (incluindo por equipas e o all-around), uma de prata e outra de bronze na ginástica. Mas, para a atleta soviética, esse não foi o fim mas sim um início: em Roma, quatro anos depois, conseguiu mais três ouros, duas pratas e um bronze; e em Tóquio, em 1964, alcançou dois ouros, duas pratas e dois bronzes. 18 medalhas, um recorde. Provavelmente, único. Até que, em 2004, Michael Phelps apresentou-se ao mundo em Atenas com seis medalhas de ouro e duas de bronze na natação. Seguiram-se mais oito ouros em Pequim, quatro anos depois. E mais quatro ouros e duas pratas em Londres (2012). E mais cinco ouros e uma prata no Rio de Janeiro, em 2016. A Bala de Baltimore disparou o recorde para 28 pódios.

Quem é o Michael Phelps dos Jogos de inverno? Até à edição de Sochi, em 2014, o recorde pertencia a Bjørn Dæhlie, uma das figuras mais icónicas do desporto norueguês hoje empresário (com 50 anos) que ganhou oito ouros e quatro pratas no cross-country entre Albertville (1992), Lillehammer (1994) e Nagano (1998) após um início de carreia onde se destacava na caça, na pesca, na escalada e no futebol (aquele que foi sempre o seu grande sonho) antes de fixar-se no esqui; a partir daí, passou para o compatriota Ole Einar Bjørndalen, biatleta de 43 anos que vai em oito ouros, quatro pratas e um bronze em seis participações: além de Lillehammer e Nagano, esteve em Salt Lake City (2002), Torino (2006), Vancouver (2010) e Sochi (2014).

Ole Einar Bjørndalen conseguiu em Sochi tornar-se o mais medalhado em Jogos de inverno (ALEXANDER NEMENOV/AFP/Getty Images)

A história de um pugilista que ainda foi campeão no bobsled

Existem vários exemplos de atletas que participaram nos Jogos Olímpicos de verão e de inverno (com tendência para aumentar cada vez mais, dada a passagem cada vez mais comum de velocistas de pista para provas no gelo). Existem seis atletas que ganharam medalhas nos Jogos Olímpicos de verão e de inverno (o que é mais complicado): o norueguês Jacob Tullin Thams, a alemã Christa Luding-Rothenburger, a canadiana Clara Hughes, a americana Lauryn Williams, o sueco Gillis Grafström e o americano Eddie Eagan. Existem apenas dois atletas que conquistaram o ouro nos Jogos Olímpicos de verão e de inverno: Gillis Grafström e Eddie Eagan. Mas existe apenas um atleta a ganhar a medalha de ouro em modalidades distintas nos Jogos Olímpicos de verão e inverno: Eddie Eagan, provavelmente um dos atletas com melhor história nas grandes provas.

Ao contrário de Grafström, que depois do triunfo na patinagem dos Jogos de verão de 1920, em Antuérpia, somou mais dois ouros (Chamonix, 1924; St. Moritz, 1928) e uma prata (Lake Placid, 1932) em Jogos de inverno, Eddie Eagan vestiu duas peles bem distintas: subiu ao lugar mais alto do pódio nos Jogos de verão de 1920 em pesos leves no boxe e, 12 anos depois, foi ganhar o primeiro lugar na equipa de quatro de bobsled dos Estados Unidos (com Billy Fiske Clifford Grey e Jay O’Brien). Estudante de Direito em Harvard, Eagan passou depois pela Universidade de Oxford, onde tirou um bacharelato em Artes. Entraria depois no serviço militar, tendo combatido em várias frentes durante a Segunda Guerra Mundial.

Eddie Eagan, à esquerda, foi comissário de boxe: aqui fecha contrato para um combate entre Joe Louis e Tami Mauriello (Keystone/Getty Images)

A edição onde havia neve a menos e o exército teve de ser chamado

Os Jogos de inverno de 1964, em Innsbruck, foram marcados pela fatalidade na sua antecâmara, com a morte em treino do australiano Ross Milne e do polaco naturalizado britânico Kazimierz Kay-Skrzypeski a cerca de duas semanas do início do evento e já depois da chocante queda do avião que transportava toda a equipa de patinagem artística americana (e respetivas famílias) três anos antes. Mas, homenagens à parte, não foi por isso que a prova esteve para não arrancar: faltava gelo. E sem gelo, é complicado. Como contornar a questão? Chamar as forças militares para dar uma mãozinha, neste caso muitas: foram transportados do topo de uma montanha 20 mil blocos de gelo para as pistas de bobsled e luge, além de 40 mil metros cúbicos de neve que foram embalados e levados para a zona dos percursos do esqui alpino.

De referir, em paralelo, que entre as várias figuras que se destacaram nessa edição (como as irmãs francesas Christine e Marielle Goitschel, que ganharam um ouro e uma prata cada no slalom e no slalom gigante, ou o italiano Eugenio Monti, que ganhou a primeira medalha Pierre de Coubertin para o desportivismo depois de ter emprestado um parafuso de eixo aos rivais britânicos Tony Nash e Robin Dixon, que ganhariam o ouro no bobsled), houve um dado político ainda hoje recordado: foi a terceira e última vez que a RFA e a RDA participaram numa equipa conjunta em grandes competições deste género.

Uma imagem de soldados a descarregar a neve em falta de um camião para Innsbruck poder receber Jogos de 1964 (STAFF/AFP/Getty Images)

Uma medalha cinco décadas depois, um reconhecimento após 82 anos

Quanto tempo costuma demorar entre ganhar uma prova e receber uma medalha? Depende: se for na maratona do último dia dos Jogos de verão, algumas horas; na natação, ou menos de uma hora ou um dia (por isso é que às vezes víamos Phelps a acabar uma meia-final, a subir ao pódio, a tirar fotografias, a agradecer aos fãs, a despir o fato de treino e a entrar de novo na piscina). Mas nem sempre foi assim e os Jogos Olímpicos de inverno têm dois exemplos que se tornaram históricos.

Nascido em Telemark, na Noruega, em 1888, Anders Haugen emigrou para os Estados Unidos com o irmão em 1909 e, aos 25 anos, estreou-se em Jogos Olímpicos de inverno, na edição de Chamonix. E brilhou: campeão nacional nos saltos, terminou no terceiro lugar a prova mas, devido a um problema técnico no resultado, acabou por ver a medalha ser entregue ao norueguês Thorleif Haug. Cinco décadas depois, num encontro comemorativo da seleção escandinava, o historiador Jacob Vaage detetou o erro e, em setembro de 1974, com 86 anos, Haugen recebeu o bronze das mãos da filha mais nova de Haug. No outro caso, a Grã-Bretanha venceu também em 1924 no curling mas não houve entrega de medalhas porque foi assumido que era apenas uma modalidade de demonstração, que nem entrou logo no calendário de provas. Todavia, em 2006, o Comité Olímpico Internacional oficializou essa prova, com os britânicos a vencerem o ouro, a Suécia a prata e a França o bronze.

Grã-Bretanha venceu no curling em 1924 mas só viu reconhecimento ser prestado 82 anos depois pelo COI (Topical Press Agency/Getty Images)

Dos verões de todos os boicotes aos invernos com um só caso político

Os Jogos Olímpicos de verão de 1956, em Melbourne, ficaram conhecidos por aquilo que se denominou do jogo da Água Sangrenta: a meia-final do polo aquático masculino entre a União Soviética e a Hungria, por causa das tensões políticas entre ambos os países, foi marcada por inúmeras agressões entre jogadores e só mesmo a polícia conseguiu evitar que os adeptos húngaros invadissem a piscina. Nessa edição, sete países ficaram de fora por razões distintas: Egito, Iraque e Líbano pela Crise no Suez; Holanda, Espanha e Suíça em protesto com a presença dos soviéticos após a invasão à Hungria; e a China, após saber que a organização permitiria a participação de Taipé com o nome de Formosa.

Mais tarde, em 1976, nos Jogos de Montreal, foram 34 os países que fizeram boicote; em 1980, em Moscovo, os intérpretes mudaram mas o número subiu para 66. Uma coisa é certa: os Jogos Olímpicos de verão estiveram muitas vezes envolvidos em polémicas por razões políticas, ao contrário do que se passa com os Jogos de inverno. Aliás, houve apenas um boicote em tantos anos: em 1980, na edição de Lake Placid (Nova Iorque), Taipé não marcou presença por não ter sido autorizado a atuar como República da China, perdendo a “guerra” com a República Popular da China, que regressou após ausência desde 1952.

Imagem da equipa de bobsled de Taipé (Sun Kuang-Ming e Chen Chin-Sen) nos Jogos de inverno de 1988, em Calgary

Os Jogos que verdadeiramente contam para o Liechtenstein

Pelo maior número de edições, pelo maior número de provas ou pelo muito maior número de medalhas distribuídas, é normal que quase todos os países tenham mais medalhas em Jogos Olímpicos de verão do que de inverno (um exemplo que nos é próximo: Portugal conquistou quatro ouros, oito pratas e 12 bronzes nos Jogos de verão e nunca ganhou sequer uma medalha nos Jogos de inverno). Ainda assim, dentro dessa normalidade, existem três exceções.

A Noruega é, de longe, o país que mais consegue vincar essa distinção: em 25 participações nos Jogos Olímpicos de verão, somou um total de 152 medalhas (56 de ouro, 49 de prata e 47 de bronze, grande parte delas em modalidades como tiro, atletismo, vela, canoagem ou remo); em 22 presenças nos Jogos Olímpicos de inverno, mais que duplica esse número: 329, naquele que é o recorde de sempre à frente das 282 dos Estados Unidos, com 118 de ouro, 111 de prata e 100 de bronze. Outro caso? A Áustria: em 27 presenças nos Jogos de verão somou 87 medalhas (18 de ouro, 33 de prata e 36 de bronze, sobretudo no tiro, na vela, na natação, na canoagem e no halterofilismo); em 22 participações nos Jogos de inverno alcançou quase o triplo, 218 (59 de ouro, 78 de prata e 81 de bronze). Por fim, o Liechtenstein, o pequeno país que é um exemplo único dentro da exceção: nunca ganhou nada nos Jogos de verão mas soma nove pódios (dois ouros, duas pratas e cinco bronzes) em Jogos de inverno. Os irmãos Wenzel, Hanni e Andreas, ganharam seis medalhas entre 1976 e 1984.

Hanni Wenzel conseguiu as únicas duas medalhas de ouro para o Liechtenstein nos Jogos de inverno de 1980 (Tony Duffy /Allsport)

O que em 2018 vai ser a menos acabou por ser a mais em 1948

Uma das grandes “notícias” em PyeongChang este ano está relacionada com a ausência de jogadores da NHL (Liga Profissional Americana de hóquei em gelo) da prova, por terem vetado a ideia de fazer uma interrupção na sua prova nacional, além da presença de uma equipa unificada da Coreia na vertente feminina. No entanto, as opções que existirão a menos em 2018 contrastam com as que existiram a mais há 60 anos, em St. Moritz, na Suíça. E que, mesmo assim, não foram suficientes.

O campeonato de hóquei em gelo de 1948 correu o sério risco de ser cancelado a poucos dias do arranque e tudo porque, na hora da receção às equipas, os Estados Unidos tinham… duas formações. Motivo? O Comité Olímpico dos Estados Unidos apoiava a Amateur Athletic Union (AAU), ao passo que a Liga Internacional de Hóquei em Gelo reconhecia a Amateur Hockey Association (AHA). No final, acabaram por perder os dois: o Comité Olímpico Internacional proibiu os dois conjuntos de competir, embora a organização suíça tivesse depois dado a possibilidade à AAU para desfilar na cerimónia de abertura e à AHA de disputar o torneio mas de forma oficiosa, não podendo ser elegível para medalhas.

Estados Unidos apresentaram duas equipas para competir em 1948 mas COI acabou por vetar ambas do torneio (Hulton Archive/Getty Images)