A culpa é de Neymar – se não fosse ele Mbappé já estaria, aos 19 anos, imortalizado na história dos mundiais. Mas quando Neymar desatou a rebolar pelo chão simulando lesões, em todos os jogos, a internet respondeu criando GIFs em que colocava Neymar a rebolar nas situações mais absurdas. É a forma que o mundo tem de assinalar a falta de bom senso, a falta de noção.

Devem conhecer o GIF: Mbappé arranca do meio-campo, transportando, junto ao pé, um Neymar que rebola e rebola enquanto o avançado francês vai deixando adversários para trás, atrás ser derrubado na área por Rojo: é, provavelmente, o melhor momento de internet do Mundial.

O GIF teve o condão de tornar Mbappé conhecido até das pessoas que não ligam a futebol; mas de certa maneira reduz o feito do adolescente francês – o que aquele GIF eterniza não é o talento do jogador do PSG, é a personalidade fiteira de Neymar.

E é pena, porque, visto em direto na televisão, foi um daqueles momentos em que os adeptos de futebol tiveram a certeza de estar perante um eleito, um novo Pelé, um novo Ronaldo, pouco importa se o brasileiro ou o português: ao percorrer 50 metros deixando adversários para trás com a bola colada ao pé Mbappé mostrou uma técnica, velocidade e capacidade de explosão que só estão ao alcance dos eleitos.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Mais: mostrou personalidade. Não foi um jogo qualquer, foi um França-Argentina nos oitavos de final de um Mundial que, por sinal, deve ser o último em que Messi chega no topo da forma – no próximo terá 34 anos. Foi esse o jogo que Mbappé escolheu para destruir meia equipa da Argentina numa jogada individual que esperamos apenas e só daqueles jogadores que vão marcar uma época.

Foi a forma de Mbappé dizer: “Estou aqui”. Não contente, ainda marcou mais dois golos, um deles, descaído na direita, demonstrativo de uma frieza incomum num rapaz de 19 anos. Vale a pena repetir? Vale, vale mesmo a pena repetir: 19 anos.

É estupidamente arriscado fazer este tipo de prognósticos mas aqui fica: Mbappé vai ser, para a próxima década, o que Messi e Ronaldo foram para a última. Irá marcar dezenas de golos por época, alguns míticos, vencer a Champions mais que uma vez, acumular Bolas de Ouro, ser a estrela de milhares de vídeos de compilações de golos feitos por aspirantes a editores de vídeo por este mundo fora.

E dá para ter esta certeza toda porque já o vimos fazer isto várias vezes e não apenas contra equipas do fundo da tabela na Liga Francesa. Foi a 21 de fevereiro no ano passado que o mundo futebolístico acordou para este adolescente geneticamente abençoado  e logo nuns oitavos de final de Champions contra o City de Pep Guardiola. Funcionando nas costas de Falcao, e com aquele espaço que tipicamente as equipas de Pep deixam nas costas todo ali à sua espera para percorrer, Mbappé deixou a defesa do City em água com a sua velocidade, a sua força, a sua técnica – e o seu remate, que aos 40 minutos acabou no fundo da baliza. O Mónaco perderia esse jogo (5-3, em Manchester) mas, quinze dias depois, daria a volta em casa, com uma vitória por 3-1 e um golo de Mbappé, logo aos 8 minutos.

A equipa monegasca acabaria por sucumbir na ronda seguinte mas Mbappé já havia distribuído o seu cartão de visita por milhões de adeptos – mais ainda quando, no final da época, o Mónaco conquistou a Ligue 1, destronando o todo poderoso Paris Saint-Germain, para o qual se transferiu no final da época.

Ao todo fez 44 jogos para 26 golos em toda a época – números absurdos para um adolescente e que lhe valeram comparações com Thierry Henry, por ser francês, claro, mas pela forma como vem da ala para o meio com a bola controlada, tornando difícil a marcação. Esta época deu por si encostado à direita na frente de ataque do Paris Saint-Germain – no meio, onde é explosivo, tem Cavani à sua frente, enquanto a direita, onde é explosivo, está ocupada por Neymar.

A direita não é o lugar ideal para Mbappé: a sua velocidade, técnica e capacidade de finalização pedem que acabe os lances em frente à baliza, a rematar, e não junto à linha a cruzar. Mas será apenas uma questão de tempo: mais dia menos dia vai ser ele o número um da linha ofensiva do Real Madrid – ou do Barcelona, que parece ter entrado na corrida, um sinal de que os tempos de Messi como melhor do mundo estarão a chegar inevitavelmente ao fim.

Em parte o talento deste rapaz deve-se à genética: nasceu em Paris mas a mãe, de origem argelina, foi andebolista; o pai, dos Camarões, jogou futebol – Mbappé não é muito alto (tem apenas 1,78m) mas o seu corpo é claramente de um deus atlético (e a sua velocidade mais ainda).

Mas o senhor Wilfried não foi apenas um jogador de futebol – foi (é) treinador de camadas jovens e o primeiro treinador do filho. E é talvez isso que mais impressiona em Mbappé: a maturidade de cada gesto. Mesmo sendo um jogador que gosta de espaço, sabe jogar de costas, como impedir que os centrais se lhe antecipem, como tabelar. Sabe descair nas alas para fugir à marcação, funcionar como extremo puro, como e quando vir para o meio, sabe esconder-se atrás do lateral e surgir do nada para empurrar para golo – sabe quase tudo da profissão de avançado.

Claro que ainda tem defeitos: desaparece dos jogos por vezes, tem falhas de concentração e, nesta época, teve pequenos momentos de arrogância típicos de quem joga numa equipa imensamente superior – e de quem partilha o balneário com Neymar.

Tudo isso, estou em crer, desaparecerá e um dia veremos Mbappé fazer pelo real o que Cristiano fez. Para já, nesta seleção francesa, ele é o golpe de magia, o garoto quase sem barba capaz de, estando de costas para a baliza, receber uma bola com o pé esquerdo, passá-la para o pé direito, e dar de calcanhar para Giroud, que cortava nas suas costas. Um lance ao alcance apenas dos prodígios.

Mas talvez ele seja a centelha de magia numa seleção que vive, acima de tudo, da consistência e talvez a consistência seja mais importante na França atual – a espinha da equipa é o guarda-redes Lloris, aquela dupla de centrais absurda de tão boa (Varane e Umtiti), Kanté a destruir à frente da defesa e, nos dias em que está concentrado, a força física e capacidade de passe de Pogba – que se arrisca a passar ao lado de uma carreira extraordinária e o mesmo pode ser dito de Griezmann.

Com todos os defeitos que a França tem – nomeadamente produzir um futebol semelhante ao de Portugal no Euro – é provavelmente a seleção mais coriácea dos últimos anos, derrotada apenas por um golpe de caos de Éder. Talvez a França tenha encontrado o equilíbrio entre acumulado de talento e cautela defensiva – a Bélgica tem mais jogadores talentosos e produz um futebol mais vistoso, mas não conseguiu derrubar aquela muralha.

A Croácia é outra coisa: mais caótica, propensa ao sofrimento, esteve sempre a perder nos jogos a eliminar. Numa final, mais ainda contra a França, isso custar-lhes-á muito caro – mas se o merecimento conta para alguma coisa, se o talento e a magia merecem ser recompensados, esta devia ser a final de Modric e Rakitic. Porque Pogba e Griezmann estão abaixo deles e porque Mbappé tem tempo e ainda não merece.