Apesar de muitos ainda a considerarem um símbolo de frivolidade feminina ou desejo de viver sob uma máscara, a verdade é que pintar o rosto com pigmentos coloridos é tão antigo como a humanidade: dos rituais sagrado em homenagem aos deuses, aos ritos de tomada de poder ou de passagem da puberdade, das pinturas de guerra ao rosto maquilhado dos cortesãos do século XVIII e às instagramers do século XXI há toda uma história cultural, religiosa e económica que se torna cada vez mais determinante neste mundo globalizado e virtualmente interligado. Quando, esta semana, a revista Forbes voltou a eleger Kylie Jenner, de 21 anos, a bilionária mais jovem de sempre isso deveu-se à criação de um império feito de batons, delineadores de lábios, paletas de sombras e iluminadores  ou resumindo a coisa: pigmentos de cor e óleos embalados de forma criativa.

Na semana que passou, Kylie Jenner voltou a revalidar o titulo de bilionária mais jovem de sempre. Em agosto de 2018, a mesma Forbes concedia-lhe já honras de capa.

Kylie é apenas a face mais visível de uma época em que o feminismo encontrou na maquilhagem e na moda uma forma de afirmação do poder das mulheres, ao contrário do que aconteceu anos 60 quando o repto era queimar soutiens e não fazer a depilação. Esta mudança de paradigma em relação à maquilhagem não pode também ser dissociada do poder das redes sociais, em especial do Instagram, como plataforma de um comércio feito a reboque da exposição pessoal dos empresários. Atualmente, ter milhões de seguidores nesta rede social é o primeiro passo para criar uma marca de sucesso, porque nenhuma forma de publicidade tinha conseguido criar laços tão profundos com os consumidores.

O grande triunfo de Kylie Jenner? Parecer tão próxima de nós como se fossemos mais um elemento da sua grande e complicada família. Quando lançou os seus kits de maquilhagem, em 2016, já todos sabíamos como é que era o seu rosto desmaquilhado, sardento e infantil, como ela recorria ao lápis  delineador para simular uns lábios mais cheios, usava e abusava de perucas, extensões e tintas de cabelo. Ela era tão imperfeita como nós. Como não ficar apaixonado por isto?

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

O plástico e a cosmética: pode a beleza ser eco-friendly?

Filha da socialite Kris Kardashian e do campeão olímpico americano Bruce Jenner, Kylie começou a viver em frente aos ecrãs de televisão com apenas 10 anos, quando a família se tornou um reality show (Keeping up with the Kardashians, do canal E). Sendo a mais nova, teve alguma margem para se esconder sob os escândalos das irmãs mais velhas, apesar de trabalhar como modelo desde os 14 anos. Depois do anúncio da Forbes e das críticas ao facto de ela estar a ser considerada uma “self-made woman”, a mãe e as irmãs já vieram em sua defesa contar que Kylie sempre teve olho para negócios e poupava cada cêntimo para investir depois em algo de que gostava. O seu primeiro negócio a solo foi revender as suas roupas no ebay, doando parte dos lucros a instituições de caridade. Paralelamente, lançou, com a irmã Kendall, a linha de roupa Kendall+Kylie que teve coleções exclusivas na Topshop e, mais recentemente, na Forever 21. Escreveu uma novela distópica que foi um flop de vendas, teve coleções de joalharia, roupa desportiva, extensões de cabelo, vernizes OPI. O seu nome tornou-se uma marca a tal ponto poderosa que dispensava sobrenome. Mas Kylies há muitas e a Minogue colocou uma ação em tribunal para a impedir de tornar o nome uma coisa só sua. A cantora australiana ganhou, e Kylie terá de continuar a ser Jenner.

Esta não é, contudo, uma história passível de ter estes desenvolvimentos tão rápidos (apenas três anos passaram entre o lançamento da Kylie Cosmetics e a sua ascensão a bilionária) se não estivéssemos no tempo das redes sociais que geram ondas de impacto muito superiores àquilo que estávamos habituados: KJ, tem 170 milhões de seguidores no Instagram e não se limita a vender os seus produtos. Ela publicita produtos de outras marcas pelos quais ganha cerca de 1 milhão de dólares por post, o que lhe tem permitido alavancar seriamente os seus ganhos.

Os kits de batons e lápis delineador que lançaram a Kyle Cosmetics para a ascensão meteórica

A empresa que começou a vender kits de baton e lápis por 29 dólares (26 euros) vale hoje 900 milhões, segundo a Forbes. KJ detém 100% da corporação, emprega menos de 20 pessoas e é a mãe, Kris, que lhe trata da contabilidade e das relações públicas. O salto decisivo aconteceu em novembro de 2018 quando a marca começou a ser distribuída pela Ulta e arrecadou cerca de 55 milhões de dólares em apenas seis semanas.

As novas milionárias do universo explosivo da maquilhagem

Depois de anos estagnado, o negócio da maquilhagem tem-se assumido como um dos mais explosivos da segunda década do século XXI. Pequenas companhias tornam-se negócios de milhões, não cessam de surgir novas e aguerridas marcas, com marketing agressivo, lojas próprias, celebridades a dar a cara. A maquilhagem masculina está a entrar cada vez mais em linha de conta e o mundo dos make up junkies (viciados em maquilhagem) não pára de fazer vítimas.

Depois do sucesso dos batons matte eis os gloss ultra brilhantes de miss Kylie Jenner

Se, ainda há poucos anos, o mundo da maquilhagem acessível era dominado pelos gigantes Maybeline, L’Oreal, Revlon — e com associações à imagem masculina, como podemos ver pelos antigos anúncios publicitários onde as mulheres surgem a maquilhar-se guiadas pela voz off de um homem, que lhe dá conselhos sobre como ficarem mais bonitas para os maridos — hoje não só as mulheres tomaram o leme do negócio da cosmética como estão a mostrar que colorir o rosto não é sinónimo de frivolidade mas de afirmação de uma individualidade. As grandes marcas de outrora andam quase sempre a reboque das novidades que estas mulheres colocam no mercado. E em muitos casos falamos de mulheres cujo background familiar, a herança cultural, ou a etnia, as colocariam sempre em desvantagem e as confinariam provavelmente ao anonimato se não fossem as redes sociais. A romena Anastasia Soare, a grega Zoe Baikou (Zoeva) a muçulmana Huda Kattan (Huda Beauty) ou a afro-americana Rihanna (Fenty) são as grandes revolucionárias do universo da maquilhagem do século XXI, mas também são, simultaneamente, produto e produtoras de uma nova mentalidade mais disponível para integrar novas formas de beleza, novos desafios e uma nova ética.

Anatasia Beverly Hills, criadora das sobrancelhas de arco perfeito

Anastasia Soare, exilada romena que criou um método de delinear sobrancelhas

Quando, em 1989, desembarcou em Los Angeles com a filha pequena fugindo das casas geladas da Roménia comunista governada pelo ditador Nicolae Ceauşescu, chamava-se Anastasia Soare, não falava uma palavra de inglês e o diploma em arquitetura e arte que trazia consigo pareciam não lhe valer de nada. Empregou-se num salão de estética em Beverly Hills onde reparou que as mulheres americanas não cuidavam das suas sobrancelhas, como as mulheres romenas faziam. Começou a tentar convencer as clientes do salão a redesenharem as sobrancelhas aplicando o método usado na arte grega e renascentista a que Leonardo Da Vinci chamaria a divina proporção.  Este golden ratio é na verdade um número que determina a simetria perfeita entre dois lados. Anastasia passou a aplicar este método para esculpir arcos perfeitos a encimar os olhos e as maçãs do rosto. Como a dona do salão não se deixou convencer, em 1992 a artista alugou um salão próprio cujo foco eram as sobrancelhas e acabou por ter como clientes algumas das super modelos dos anos 90 como Cindy Crawford e Naomi Campbell, a cantora Jennifer Lopez ou a actriz Faye Dunaway. Anastásia Soare passou a ser Anastasia Beverly Hills, a maga do salão de beleza com mais celebridades em lista de espera. Tudo isto aconteceu antes de haver Youtube,  Instagram e antes de Kim Kardashian ter colocado na moda a hiperdefinição de todas as linhas do rosto. Hoje com 62 anos, Anastasia é sinónimo de maquilhagem de alta qualidade e glamour. A antiga exilada comunista de um dos países mais pobres da Europa tem uma linha de maquilhagem com dezenas de produtos e, desde o final de 2018 é vendida também em Portugal na lojas Sephora.

Rihanna, 40 cores para uma nova ética

Rihanna, a cantora que democratizou a maquilhagem com a coleção Fenty Beauty

Nasceu nos Barbados com uma magnífica pele castanho dourada e uns fabulosos olhos verdes. Ainda por cima canta e dança e com pouco mais de 20 anos já era um mega sucesso na cena pop. Apesar disto a @badgilriri (seu avatar nas redes sociais) queria mais de si e do mundo. Por isso, em conjunto com a LVMH, a empresa que detêm a marca Louis Vuitton, criou a linha de maquilhagem mais vanguardista das últimas décadas: a Fenty Beauty.

O produto ícone foi a “Pro Filter Soft Matte”, uma base de longa duração e efeito mate com 40 tonalidades diferentes que prometem adequar-se à cor de pele de todas as etnias. Em 2017, a coleção foi lançada simultaneamente em 17 países e 1600 lojas físicas e virtuais, rendeu 72 milhões de dólares em apenas um mês ultrapassando as gamas de Kyle Jenner, a Urban Decay ou a Benefit. Os tons de base mais escuros foram os mais procurados, o que mostra, como concluíram algumas revistas de moda, de economia e marketing, que Rihanna aproveitou o preconceito ou falta de visão das outras empresas de cosméticos, que nunca tiveram uma verdadeira oferta a pensar nas mulheres de peles mais escuras, preenchendo um vazio no mercado e criando uma relação emocional com as consumidoras. Ao contrário das outras coleções criadas por celebridades, a cantora não se dirigiu a milionários nem a socialites mas às pessoas reais. Como escreveu a Marie Claire francesa “a Fenty toca em dois valores determinantes do nosso tempo: a alteridade e a inovação”.

A marca Fenty Beauty reflete  também um tempo em que os produtos de cosmética já não são pensados  para esconder defeitos, mas antes uma forma de exprimir criatividade, estados de espírito; são leves e alegres
como uma brincadeira. O nome de cada produto é também deliciosamente provocador como a caneta de eyeliner que se chama “Cuz i’m black” (porque sou negra) ou o baton obscenamente vermelho, mate e cinematográfico, de seu nome “Uncensored” (incensurável), que os media americanos classificaram como “assertivo e confrontacional”.

Zoeva, dos pincéis rosa gold ao triunfo sobre a violência doméstica

Zoe Boikou, a grega que criou os pincéis Zoeva e superou um passado de violência familiar

Talvez o público menos atento ao mundo da cosmética ainda não conheça o nome da grega Zoe Boikou, mas na constelação das estrelas da cosmética os pincéis da marca Zoeva são a varinha mágica que faz nascer os melhores esfumados, as misturas de sombras mais ousadas e perfeitas. Tal como Anastasia, Zoe percebeu que a maquilhagem do rosto exige as mesmas ferramentas exigentes e precisas que o mundo da arte e, quase por acaso, descobriu que estas ferramentas eram raras, caras e circunscritas aos maquilhadores de luxo. A menina grega de Salónica, que emigrou para a Alemanha aos 10 anos e vivia com um pai que brutalizava a família, que não conseguiu ir para a universidade porque aos 15 anos já estava a tirar um curso de administrativa, tornou-se uma milionária graças aos pincéis ultra leves, com o cabo em rosa gold e cerdas acetinadas que agarram na perfeição o pigmento, seja em pó ou creme.

Em 2018, Zoe declarava numa entrevista o orgulho de ter podido dar à irmã mais nova a possibilidade de fazer um curso superior, como o corolário dos seus anos de trabalho árduo a revender pincéis de uma empresa canadiana no Ebay. Nesses anos vendia dois ou três dígitos por mês, hoje chega a vender 5 milhões de pincéis, seja individualmente, seja em conjunto nas bolsas cor de rosa ou castanho que também se tornaram emblemáticos para o movimento dos MUA (Make Up Artists). O boom  aconteceu em 2010, quando um dos seus pincéis foi recomendado por um youtuber — o vídeo foi visto por 200 mil pessoas e os seus pincéis (ainda feitos no Canadá) estiveram esgotados várias semanas. Nesse momento, Zoe percebeu que tinha que dar mais um passo e começou a fabricar os seus próprios pincéis. Desenvolveu ainda uma linha de iluminadores e sombras, que não sendo muito baratas se apresentam como um investimento pois são materiais de alta durabilidade.

Zoeva funde os substantivos “Zoe” que significa Vida e “Eva” a primeira mulher segundo o Antigo Testamento. Um nome que esconde sob objetos sofisticados e maquilhagem perfumada uma história de vida resiliente e nem sempre fácil, que Boikou quer que seja exemplar. Por isso, a marca está ligada a organizações de defesa de mulheres e crianças vítimas de violência doméstica e luta contra o cancro. A empresária gosta de recordar os princípios da ancestral sabedoria grega da importância de “cuidar de si” e da celebração da individualidade como forma de empoderamento e afirmação das mulheres.

Huda Kattan, a beleza muçulmana a pestanejar ao Ocidente

Huda Kattan começou por fabricar pestanas sintéticas e hoje tem uma marca milionária  com 140 produtos

Não deixa de ser curioso como, nas franjas da política internacional, tem sido o universo da moda e da beleza a lançar pontes entre Ocidente e Oriente, aplacando guerras e conflitos. Desde logo com as irmãs Gigi e Bella Hadid, de origem palestiniana, e agora com a make up artist e empresária Huda Kattan, nascida em Oklahoma, filha de pais iraquianos emigrados nos EUA.

Kattan é o rosto por detrás da marca de pestanas falsas e batons mate mais famosa do mundo. E se Anastasia Soares impôs as sobrancelhas delineadas e cheias, Huda impôs olhos pestanudos onde o “fake” é assumido e valorizado como nos tempos da Nouvelle Vague e da Swinging London. Quem não se lembra de Twiggy com os cílios falsos na parte superior e inferior dos olhos?

Os famosos kits de pestanas sintéticas que se tornaram uma obsessão global

Huda Kattan começou por fabricar pestanas falsas para aplicar em si mesma, pois gostava de acentuar a sua beleza mediterrânica, de pele morena, olhos e cabelos escuros e corpo curvy. Já lhe chamaram a “Kim Kardashian da maquilhagem” mas Huda  que se define como “uma nerd” parece partilhar com esta uma apetência para se mostrar em frente às câmaras a protagonizar insanidades como passar lâminas de barbear no rosto para tornar a pele mais macia. No entanto, a sua história e o seu meio familiar exigiram dela um conjunto de ruturas que em muito a demarcam da socialite.

O pai emigrou para os EUA para dar aulas de engenharia e a família orgulha-se das suas gerações de trabalho intelectual, por isso Huda estudou finanças na Universidade do Michigan e começou cedo a trabalhar em empresas onde se sentia infeliz. Sabia que não estava no sítio certo mas não tinha coragem de romper com a tradição familiar, ainda por cima para enveredar por um mundo tido como pouco dignificante. A família mudou-se para o Dubai onde, instigada pela irmã, Huda criou o blogue de maquilhagem que daria identidade à marca e se tornaria quase o nome próprio daquela que, em 2017, a revista Time considerou uma das 25 pessoas mais influentes da internet.

Huda Beauty saltou dos blogues para a realidade, criou uma linha de pestanas sintéticas e voltou a instalar-se confortavelmente no instagram, onde conta com milhões de seguidores. A sua personalidade fulgurante, a forma simples como se apresentava nas redes sociais, e ter as irmãs Kardashian a usarem as suas pestanas, tornaram-na uma das mais icónicas maquilhadoras/ influencer dos últimos anos. A sua linha de maquilhagem sai do deserto do Dubai para lojas de todo o mundo e é uma das mais copiadas pelas marcas baratas. A empresa é gerida pelas irmãs Kattan, Huda, Mona e Alya e não pára de introduzir no mercado novos objetos de desejo. Depois da pestanas vieram os batons com delineador, para criarem o efeitos de lábios mais cheios, as paletes de sombras inspiradas nas cores quentes do Sahara, os perfumes que se usam em várias camadas como é tradição no médio Oriente.

Huda abandonou o trabalho na área financeira, foi estudar maquilhagem para Los Angeles, empregou-se como maquilhadora numa loja da Revlon mas sobretudo afirmou a beleza muçulmana contra décadas de império das loiras de olhos azuis como protótipo da perfeição. A sua marca, que fala sobretudo para as mulheres de origem árabe, tornou-se uma língua franca que esbateu fronteiras entre culturas.