No cinema e na televisão, e falando só de actores franceses, o Comissário Jules Maigret criado por Georges Simenon, já foi personificado por nomes como Pierre Renoir, Michel Simon, Jean Gabin, Jean Richard ou Bruno Cremer. Há 60 anos, desde “A Fúria de Maigret” (1963), de Gilles Grangier e com Gabin, que não havia um filme francês com um actor francês a fazer de Maigret. É, agora, Gérard Depardieu que lhe dá corpo em “Maigret e a Rapariga Morta”, de Patrice Leconte. Ao vê-lo, vem-nos à cabeça a descrição dele feita por Simenon: “Era enorme e ossudo. Os seus músculos duros desenhavam-se sob o sobretudo, deformando depressa as calças, mesmo as mais novas”. Acreditamos que Depardieu é Maigret logo desde as primeiras imagens da fita.

[Veja o “trailer” de “Maigret e a Rapariga Morta”:]

Em “Maigret e a Rapariga Morta”, o Comissário Maigret tem duas preocupações: até nova ordem, está proibido pelo médico de fumar o seu inseparável cachimbo, o que o deixa enervado; e deve resolver o caso da rapariga de ar modesto, sem identificação e que ninguém conhece, que apareceu assassinada uma noite numa praça de Paris, usando um vestido de cerimónia de marca, muito caro. O género de rapariga que chega a esta Paris de 1949 cheia de sonhos e ambições, e como Maigret diz a certa altura, “acaba a servir numa casa particular, ou num tipo de casa muito pior”.

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Este Maigret de Patrice Leconte não é – felizmente! – uma releitura, uma reinterpretação ou, pior do que tudo, uma “reimaginação” da personagem. É o Maigret de Georges Simenon por uma palha. No físico e na psicologia, na parcimónia das palavras e dos gestos, na maneira de ver o mundo e as pessoas, na atitude perante o crime e os criminosos, no conhecimento da natureza humana, nos métodos de investigação, no calcorrear os quatro cantos de Paris a pensar nos casos, no observar e ouvir em vez de julgar, “para chegar à verdade”. E é precisamente assim que Gérard Depardieu habita Maigret, sem esquecer a reserva emocional da personagem nem a sua profunda mas nunca ostentada humanidade.

[Veja uma entrevista com Patrice Leconte:]

Assim como é Depardieu a interpretar, é Leconte a filmar: austero, parcimonioso, rigoroso e atento ao pormenor aparentemente mais banal. “Maigret e a Rapariga Morta” é um filme de subtilezas e subentendidos, e tão melancólico e soturno como as ruas e ruelas da Paris invernosa e anódina do pós-guerra em que se passa. Nele é revelado um facto dramático da vida de Maigret e da mulher: a filha que perderam. A rapariga assassinada tinha a idade da filha deles se esta fosse viva, diz ele à Sra. Maigret a dado momento, e é sob a memória dela que o Comissário conduz a investigação. E repare-se como Maigret sorri de satisfação ao ouvir a mulher conversar alegremente com a jovem que acolheram em casa. Como se estivesse a ouvir mãe e filha a falar.

Esta intimidade de Maigret, a dor sempre presente mas sempre elidida da perda que sofreu, o seu olhar sobre as fraquezas, as disformidades e os  abismos da alma humana, que volta a confrontar neste caso que averigua pacientemente e resolve sem espalhafato, não são acessórias do enredo. “Maigret e a Rapariga Morta” é um filme sobre uma investigação policial do Comissário Maigret. Mas também sobre o íntimo da personagem, as suas mágoas ocultas e perplexidades irreveladas, o recato da sua compaixão, tal como as circunstâncias e as características deste crime proporcionam que se manifestem, e na medida do possível para alguém tão reservado como ele. E Gérard Depardieu transmite-as num sábio conta-gotas de sugestão.

Patrice Leconte conhece a importância dos papéis secundários, dos “petits rôles”, sobretudo em filmes como este, para dar consistência e credibilidade ao friso humano em fundo, e ao quadro geral da história. E em “Maigret e a Rapariga Morta” encontramos Aurore Clément na abastada e monstruosa mãe-galinha do suspeito, o recentemente falecido André Wilms no velho antiquário ao qual a memória já falha, ou ainda Hervé Pierre no médico que proibiu Maigret de fumar as suas cachimbadas e que o convida para irem a um restaurante que conhece almoçar um “gordo pato cuidadosamente sangrado”.

Finalmente, “Maigret e a Rapariga Morta” dura pouco menos de hora e meia. Também por isto é bem-vindo, nestes tempos em que são cada vez menos os realizadores que conseguem dizer ao que vêm em muito menos de duas ou três horas. Caso resolvido.