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100 anos de Eugénio de Andrade: um poeta a pairar acima do mundo

Nasceu José Fontinhas a 19 de janeiro de 1923. O mundo em que se fez célebre já não existe, mas a poesia que "ama exalta as coisas absolutamente necessárias" permanece intocável na sua preciosidade.

Eugénio de Andrade não teve em vida o destino tradicional dos poetas. Não foi esquecido, teve honras, reconhecimento, louvores da crítica e dos pares, discípulos, fundações e o estatuto oficioso, mas bem consolidado, de “maior poeta vivo”. Organizou antologias, traduziu poetas de primeira água, como se encarnasse ele próprio todo o movimento da poesia, e viu os seus versos interpretados com minúcia por algumas das cabeças críticas mais avalizadas.

Hoje, no entanto, o seu estatuto é um pouco diferente. A morte tirou-lhe o título de “maior poeta vivo” e atirou-o para a galeria anónima dos antigos medalhados dessa honra. A sua fundação aluiu, os novos poetas mais depressa se impressionam com a aspereza de um Herberto Helder do que com a suavidade lírica de Eugénio e mesmo a crítica prefere poetas de formulações mais crípticas, que permitam ao hermeneuta brilhar com mais fulgor.

Ora, Eugénio de Andrade, que nasceu José Fontinhas na Póvoa da Atalaia, no Fundão, é um caso interessante de um poeta que, até por aquilo que já não representa, merece ser recordado. O mundo em que foi célebre, um mundo que ainda olhava para os poetas e para os homens de letras como detentores de um capital social importante, deixou de existir. É também um mundo em que a atividade editorial permitia que os poetas mais famosos publicassem os seus livros em edições de autor – como acontecia com Torga – ou que os seus maiores poetas vivessem afastados do maior centro urbano do país.

A beleza, no caso de Eugénio de Andrade, tempera os motivos mais trágicos ou excessivos, permite que nos escapemos deles

Acervo Museu da Cidade | Coleção Casa Eugénio de Andrade

A importância cultural do Porto (que no Museu da Cidade tem uma programação especial para comemorar o centenário), do Porto a que Eugénio foi parar por vicissitudes de trabalho — ou do Porto de Agustina — só pode ser entendida num mundo editorial muito diferente, em que os autores estão acima dos “consumidores”, em que faz parte da experiência do leitor procurar aquilo que quer ler, saber em que livrarias e em que cidades se vende o quê, em vez de depender de uma repetição ad eternum dos mesmos expositores por cidades e livrarias diferentes.

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A poesia e a figura de Eugénio de Andrade são, assim, de outro tempo, e esse tempo reflete-se na sua própria poesia. Eduardo Lourenço quis fazer de Eugénio de Andrade uma espécie de excisão evolutiva de Pessoa; enquanto o Pessoa estudado foi sobretudo o ortónimo, a grande tese sobre a sua poesia era a de que esta era uma poesia do pensamento, do intelecto. Lourenço dizia, então, que Eugénio de Andrade era o poeta que devolvia o sentimento ao lugar central. Para contrariar o intelecto não era preciso pervertê-lo, à maneira surrealista, bastava eliminá-lo. A poesia de Eugénio de Andrade seria então uma poesia sem tese, ancorada no gosto, no sentimento, uma poesia sobretudo de exterior, moldada a partir das sugestões que o que vem de fora oferece à sensação.

Os limites da linguagem, a intromissão do intelecto ou um sensualismo consciente, nada disto tem em Eugénio uma dimensão profunda. O que é interessante em Eugénio de Andrade é que é um poeta que nos permite respirar destes problemas.

Esta ideia, por mais interessante que seja, parece-nos ter alguns limites. Em primeiro lugar, se há algo que a poesia romântica nos mostra é que falar de “sentimento” é bastante vago. Basta ir pegar em Álvaro de Campos como discípulo de Caeiro: é possível ter uma poesia não-intelectual nos antípodas uma da outra. O “sentimento” tanto pode significar raiva como entusiasmo; dizer que uma poesia devolve o sentimento ao seu lugar poético não nos esclarece sobre a poesia de Eugénio de Andrade porque há nele um tipo mais claro de sentimento.

Além do mais, fazer de Eugénio de Andrade uma espécie de anti-Pessoa neste sentido implicaria enrodilhá-lo na armadilha que Pessoa identificou. O problema do Pessoa ortónimo passa precisamente pela consciência de que o intelecto não é uma escolha. Isto é, a sua angústia vem do facto de qualquer experiência ser intelectualizada, tornando assim artificial qualquer sensualismo ou poesia do “sentimento”.

A transformação de Eugénio num poeta da tradição de Pessoa, seja por síntese ou antítese do poeta, parece-nos assim falhar o essencial do seu interesse. Eugénio de Andrade não é um poeta que responda com eficácia aos problemas da literatura contemporânea. Os limites da linguagem, a intromissão do intelecto ou um sensualismo consciente, nada disto tem em Eugénio uma dimensão profunda. O que é interessante em Eugénio de Andrade é que é um poeta que nos permite respirar destes problemas. É uma espécie de interlúdio, que olha para tudo isto com uma certa distância.

O mundo em que Eugénio de Andrade foi célebre, um mundo que ainda olhava para os poetas e para os homens de letras como detentores de um capital social importante, deixou de existir

Acervo Museu da Cidade | Coleção Casa Eugénio de Andrade

Ora, esta “distância” parece-nos um dos artifícios que Eugénio de Andrade sabe manejar melhor e um dos aspetos centrais da sua poesia. A subtileza dos sentimentos, a pausa, até o lirismo, tudo isso são, de uma maneira ou de outra, formas de distância. Pensamentos muito matizados, versos que pedem que nos detenhamos neles, o cuidado com a palavra de quem parece estar, de algum modo, a pairar acima do mundo. Há sentimento em Eugénio de Andrade, é claro que sim; no entanto, este sentimento tem uma distância que não é estoica – no sentido em que não há uma declaração filosófica que anule o sentido das paixões – mas parece temporal. Há sensação, mas não imediata, como é próprio do sensacionalismo barato. A poesia de Eugénio de Andrade parece toda ela escolhida, antológica, epicurista naquele sentido mais original da palavra, em que os prazeres parecem controlado a ponto de nunca se excederem.

O ânimo poético de Eugénio de Andrade, em certo sentido, ganha com a velhice, o que talvez ajude a explicar também a sua crescente fama. O seu temperamento é o de um poeta que gosta de aproveitar o mundo a partir de um degrau de distância, como se o cheirasse apenas, mas não precisasse de o tocar.

Num exercício sobre a relação da sua vida com a poesia, Eugénio de Andrade escreveu certa vez: “Sou filho de camponeses (…), desde pequeno, de abundante só conheci o sol e a água. Nesse tempo, que só não foi de pobreza por estar cheio do amor vigilante e sem fadiga de minha mãe, aprendi que poucas coisas há absolutamente necessárias. São essas coisas que os meus versos amam e exaltam. A terra e a água, a luz e o vento consubstanciaram-se para dar corpo a todo o amor de que a minha poesia é capaz”.

Eugénio dá a este corpo, a esta matéria, uma aura quase sagrada. A força da palavra em Eugénio de Andrade vem de as coisas nunca serem exatamente aquilo que são, mas também não serem outra coisa.

Esta pequena declaração é quase uma súmula dos grandes motivos da poesia de Eugénio de Andrade. Basta percorrer alguns dos títulos principais da sua obra para nos apercebermos desta ligação à terra (É um pássaro, é uma rosa/ é o mar que me acorda?/ Pássaro ou rosa ou mar/ tudo é ardor, tudo é amor./ Acordar é ser rosa na rosa/ canto na ave, água no mar), à natureza e aos elementos.

As mãos e os frutos, o seu primeiro livro importante, A escrita da Terra, Véspera da Água, Matéria Solar, entre tantos outros que remetem não apenas para a natureza ou para um bucolismo, mas para uma ligação entre o poeta e a matéria que é mais interessante do que uma simples reinvenção de uma poesia pastoril. A ideia de natureza de Eugénio de Andrade – em que a água, seja pelo orvalho, pelos rios, pelo mar, tem um papel tão importante, contribuindo para a ideia de pureza que sempre se associou à poesia do poeta – contamina o próprio homem (Tu eras neve/ Branca neve acariciada/ Lágrima e jasmim/ no limiar da madrugada), a ponto de os grandes momentos da poesia que falam sobre o humano se concentrarem no corpo, na beleza do corpo, nos seus detalhes e na sua força.

Eugénio de Andrade no Porto em 1964 (Impressão fotográfica sobre papel, 7,1 x 9,5 cm, Museu da Cidade | Coleção Casa Eugénio de Andrade)

Os exemplos são mais do que muitos: “Respira. Um corpo horizontal/ tangível, respira/ Um corpo nu, divino/ respira, ondula, infatigável” ou “Eu dizia ‘nenhuma brisa é triste’/ e procurava água, lábios/ luz, um corpo/ onde a solidão fosse impossível”; acontece, contudo, que esta atenção é de tal maneira sacralizada que, sem que haja grandes voos metafísicos, Eugénio dá a este corpo, a esta matéria, uma aura quase sagrada. A força da palavra em Eugénio de Andrade vem de as coisas nunca serem exatamente aquilo que são, mas também não serem outra coisa. A água é tão límpida, tão pura, tão leve, que se torna mais do que água.

Até as famosas traduções de Eugénio de Andrade – que traduziu Safo, Lorca, as Cartas da Freira Portuguesa – concorrem para esta ideia. É certo que traduz grandes paixões, excessos e escândalos; mas todos eles temperados por um lirismo que nos permite, a certo ponto, afastarmo-nos dos sentimentos mais trágicos e concentrarmo-nos na beleza de uma palavra ou de uma formulação.

A beleza, no caso de Eugénio de Andrade, tempera os motivos mais trágicos ou excessivos, permite que nos escapemos deles. Pode ser que, se estivermos embrenhados nos problemas da literatura contemporânea e no esforço em redor do problema da “transparência literária”, Eugénio pareça estar fora-do-jogo. No entanto, é também isso que faz dele um poeta que vale a pena ler. De vez em quando, é bom erguer a cabeça e ver que não há apenas ratos a correr dentro da roda.

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