O termo Excepcionalismo é um dos mais presentes no vocabulário da política externa dos Estados Unidos, tendo vindo a acompanhá-la praticamente desde o início do seu processo de formação, para o qual, de uma maneira ou de outra, foi contribuindo. O conceito de Excepcionalismo Americano surge associado a uma ideia de singularidade segundo a qual, de acordo com Martin Lipset, “a América é um caso único, diferente em aspetos cruciais da maioria dos outros países”. Trata-se de um conceito que começa por fazer a distinção da identidade americana num conjunto de variáveis internas — políticas, sociológicas, religiosas e geográficas — que conduziram a um credo ideológico próprio impregnado na Constituição e no sistema político. Porém, estendeu-se para a política externa, tendo-se tornado essencial para compreender a visão e a ação dos EUA no plano internacional.
O Excepcionalismo Americano nasce de uma tensão entre duas dimensões que sustentaram a sua criação. Arthur Schlesinger considera que as duas correspondem, respetivamente, a uma Tradição e a uma Contra-tradição, sendo a primeira aquela que olha para o Excepcionalismo como uma experiência — a experiência excecional americana —, sustentada em elementos concretos, e a segunda a que o transforma numa ideologia, que encontra razões ulteriores para o sucesso da experiência americana, sob a forma de um Destino nacional messiânico.
A Tradição encontra expoente nos vários momentos fundadores, tendo como referência as reflexões dos Founding Fathers em torno da fragilidade da natureza humana e das experiências políticas republicanas. Esta última era a que fazia com que olhassem com reverência e temor para a que consideravam o seu único precedente, ou seja, a república romana, mas também para casos mais recentes, como os da Península Itálica na Idade Média e no Renascimento. Já a fragilidade da natureza humana, ligada a este registo histórico geralmente desfavorável às repúblicas, fez com que assentassem a nova experiência constitucional americana num espírito cético, consciente do seu carácter inédito e, sobretudo, da improbabilidade do seu sucesso, ainda para mais tendo em conta o contexto histórico específico em que se inseria. Este ceticismo associado à consciência da finitude e mesmo fragilidade das experiências políticas, a que acrescia a religiosidade escatológica calvinista, não impediu os fundadores de avançarem com a experiência como verdadeiro teste contra a história, o que lhe atribuía um carácter cético, ou realista, mas não pessimista.
Quanto à Contra-tradição, nasce precisamente do sucesso da Tradição. A experiência, contra todas as adversidades, resistiu às primeiras décadas e expandiu-se rapidamente. Da improbabilidade do projeto, passou-se a concluir um destino providencial, que fazia do povo americano um motor da história, o povo eleito perante Deus, a nova Israel, como escreveu Schlesinger, ou o novo Sto. Agostinho que, como afirmou Bercovitch, conciliava os santos e o Estado como dois pilares de uma escatologia federal única. A sua missão liberal providencial era estender a democracia, que já iluminava os americanos, aos outros povos, ainda presos às contingências de uma história de conflito.
A Tradição e a Contra-tradição podem ser identificadas, respetivamente, nas escolas realista e liberal da política externa norte-americana, tendo estado presentes ao longo da sua história, sob a forma de uma constante tensão, havendo ciclos de prevalência da primeira e outros de predomínio da segunda. Todavia, os trinta anos do pós-Guerra Fria foram de acentuado Excepcionalismo Liberal.
Não é possível compreender o efeito do 11 de Setembro de 2001 na política externa dos Estados Unidos sem entender bem a versão do Excepcionalismo Americano contido na Contra-tradição, absolutamente dominante nas últimas três décadas de deriva liberal nos EUA. Foi a sua ideia de missão que fez com que o Presidente Woodrow Wilson considerasse a América a “única nação idealista do Mundo”. É também este espírito de cruzada que podemos encontrar no anticomunismo de John Foster Dulles ou de Ronald Reagan, ou ainda na experiência traumática do Vietname. E, podemos acrescentar, no liberalismo intervencionista do pós-Guerra Fria.
Esta nação “Excecional” tornou-se também a nação Unipolar em 1991, após o colapso da União Soviética. De facto, o fim da Guerra Fria representou um conjunto de mudanças internacionais profundas, sendo a maior a que se dá na estrutura de distribuição de poder, com a passagem da Bipolaridade para a Unipolaridade, caracterizada pela existência de uma única grande potência: os EUA. Uma tal concentração de poder é inédita na época moderna e ainda mais desde que existe um sistema de Estados com uma estrutura de abrangência mundial. No entanto, a importância deste facto vai para lá da simples distribuição de poder, uma vez que a inexistência de poderes contrabalanceadores passa a significar que deixa de haver alternativas sérias ao projeto de criação de uma ordem liberal internacional. Ninguém captou tão bem este momento de apoteose liberal como Francis Fukuyama quando declarou o fim da História.
A combinação da ideologia Excecional com o poder Unipolar dá-nos o quadro de fundo para compreender a reação dos Estados Unidos aos ataques às Torres Gémeas e ao Pentágono. O 11 de Setembro de 2001 não foi o dia que mudou o mundo, mas alterou profundamente a política externa norte-americana — o que acabou por mudar o mundo – com a adoção do que ficou conhecido como o Momento Neoconservador, confundível com o liberalismo de Woodrow Wilson, ao ponto de ter sido também chamado de wilsonianismo com esteróides.
Antes dessa data, a segurança dos EUA foi tomada por garantida. Isto é, os decisores políticos e militares norte-americanos consideravam impensável qualquer ataque ao seu próprio território em plena Unipolaridade. Com os ataques às Torres Gémeas e ao Pentágono isso mudou radicalmente, passando inclusive a Administração de George W. Bush a pôr em causa a capacidade da ordem internacional pós-Segunda Guerra Mundial para garantir a segurança do país. O raciocínio de base era que, quer a estratégia de segurança nacional, quer a ordem mundial, tinham sido pensadas para fazer face às ameaças clássicas vindas de Estados, logo não estavam preparadas para responder ao novo perigo vindo de atores não estatais — como a al-Qaeda – capazes de levar a cabo ações terroristas com meios rudimentares. Para agravar, temeu-se que estes atores não estatais radicais pudessem aceder a armas de destruição maciça – químicas, biológicas e mesmo nucleares – com a ajuda dos chamados “Estados Pária”, ou “Fora de Lei”. A partir de então, a segurança nacional juntou-se à ideologia numa potência unipolar que, de acordo com a definição mais usual, é um poder que não precisa de pedir licença nem desculpas.
Assistiu-se então, como já foi referido, a uma mudança de fundo na política externa da América, com a passagem de uma estratégia conservadora, isto é, de manutenção do status quo pós-1945, para uma estratégia revisionista, ou seja, de transformação da ordem internacional, que ficou consagrada na Estratégia de Segurança Nacional de 2002, mais conhecida por “Doutrina Bush”. Esta introduziu na política externa dos EUA um conjunto de conceitos que, embora não fossem novos, tinham estado ausentes da prática norte-americana desde 1945, como o Unilateralismo, que substituiu a preferência pelo Multilateralismo; a Guerra Preventiva, que substituiu o conceito tradicional de Contenção; as Coligações Variáveis, em substituição das Alianças Institucionais ou Permanentes; a subalternização completa da ONU e do direito internacional à liberdade de ação dos Estados Unidos; a Mudança de Regime (Regime Change) pela força, com o seu extremo de democratização do “Grande Médio Oriente”.
Na prática, isto significou que os EUA exageraram a leitura e a reação ao 11 de Setembro, entrando numa deriva estratégica que levou ao seu declínio relativo, traduzido na diminuição da preponderância mundial da América.
Desde logo, os Estados Unidos passaram de uma conceção de Médio Oriente que, no essencial, se referia à zona do Golfo Pérsico, para o chamado “Grande Médio Oriente”, uma vasta faixa geográfica que ia da Mauritânia, no Norte de África, até ao Afeganistão e Paquistão, na Ásia Central e uma parte do Sul. Esta nova região foi elevada à condição de prioridade estratégica da América, ultrapassando mesmo aquelas que sempre foram consideradas as áreas vitais para a segurança do país, concretamente os continentes europeu e asiático. Depois, entraram num longo ciclo de envolvimento em guerras periféricas e intermináveis no “Grande Médio Oriente”, travando dois grandes conflitos simultâneos, no Afeganistão e no Iraque, que acabaram por ser uma importante limitação estratégica para os EUA. Indo mais longe, a Administração Bush assumiu o objetivo de democratizar a região através de operações de “Mudança de Regime”, se necessário pela força, não só no Afeganistão e no Iraque, mas também, pelo menos de forma implícita, no Irão (que, com o Iraque e a Coreia do Norte, fazia parte do “Eixo do Mal”) e na Síria. Acresce que as guerras do 11 de Setembro significaram um custo económico demasiado alto, tendo este se tornado mesmo insustentável internamente após o colapso financeiro de 2007/2008 e a subsequente “Grande Recessão”, ascendendo, segundo um estudo divulgado no início de setembro pela Universidade de Brown, a 6.4 trillion. Finalmente, talvez mais importante de tudo, a “Guerra contra o Terrorismo” desviou os Estados Unidos do principal problema estratégico, ou seja, a Guerra de Transição de Poder com a China.
Tudo somado, podemos concluir que o 11 de Setembro acabou mesmo por mudar o mundo e a América e num sentido desfavorável aos norte-americanos. É certo que a resposta dos EUA aos ataques às Torres Gémeas e ao Pentágono teve alguns sucessos. Acima de tudo, o seu principal objetivo foi conseguido: não voltaram a ser atacados no seu território. Além disso, conseguiram outros resultados importantes, como ter eliminado Osama bin Laden, ter expulsado a Al-Qaeda do Afeganistão (pelo menos durante um tempo), ter deposto o regime dos Talibã (apesar de este ter regressado agora). Mas é um facto que a sua deriva estratégica acabou por contribuir para uma distribuição de poder regional e internacional desfavorável quando comparamos 2001 com 2021. Há 20 anos atrás, todos os analistas das relações internacionais discutiam o que a América devia fazer com o seu poder unipolar. Hoje, o que se discute é como ela deve gerir um mundo em transição de poder.
A saída das últimas tropas norte-americanas do Afeganistão na noite de 30 para 31 de agosto de 2021 assinala, simbolicamente, o fim do 11 de Setembro. Em rigor, esse momento representa o termo de três décadas de Excepcionalismo Liberal e, desejavelmente, o regresso ao Excepcionalismo Realista.
Quer a Estratégia de Segurança Nacional de 2017, quer a Estratégia Interina de Segurança Nacional de 2021, assinalam um regresso à competição clássica entre grandes potências num sistema internacional em transição de poder, pondo um ponto final na deriva da prioridade à luta contra atores terroristas não estatais por via da democratização forçada de vastas parte do mundo. A principal ameaça à segurança dos EUA é agora a ascensão da China, descrita como o competidor potencialmente capaz de combinar o seu poder económico, diplomático, militar e tecnológico para desafiar de forma sustentada a ordem internacional. Segue-se a Rússia, vista como determinada a aumentar a sua influência global e a desempenhar um papel disruptivo no mundo. Depois, atores que são designados de regionais, como o Irão e a Coreia do Norte, que continuam a procurar obter capacidades e tecnologias suscetíveis de colocar em risco a segurança dos Estados Unidos e dos seus aliados, desafiando a estabilidade nas respetivas regiões. A quarta grande ameaça/prioridade são os “Estados Falhados”. E só em quinto lugar vem o terrorismo e o extremismo violento.
Percebe-se, assim, que, à década da euforia liberal do fim da história e às duas décadas da luta contra o terrorismo, segue-se agora uma ou mais décadas de competição estratégica entre Estados Unidos, China e Rússia e de guerra de transição de poder entre a grande potência marítima (os EUA) e a grande potência continental (a China). Tal obriga a América a abandonar os sonhos da missão liberal providencial e a abraçar a realidade do Realismo nas relações internacionais.
(nota: A parte sobre o Excepcionalismo Americano é parcialmente retirada de: Tiago Moreira de Sá; Emanuel Bernardes Joaquim, “Estados Unidos da América”, In Maria Raquel Freire (Coord.), Política Externa. As Relações Internacionais em Mudança, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2015, PP.153-190)