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A sociedade é tolerante, de convivência fraterna. Como é evidente, não existe racismo em Portugal. Este retrato ilusório é de Marcello Caetano, Presidente do Conselho, que garante acuado, há 50 anos, em frente às câmaras, sob pressões externas e internas, que há aqui um grande desentendimento da questão colonial, ou melhor, ultramarina, que de modo algum existem colónias em Portugal. “Está em curso a maior generosa e fraterna experiência de convivência dos homens do meio tropical”, revela, e as críticas recentes das Nações Unidas, não tenham dúvidas, devem-se somente a uma “acção antiportuguesa” de “demoníaca perseverança”.
E durante este discurso de Marcello Caetano, em julho de 1971, para lá dos mares, desenhava-se um semelhante retrato utópico do Estado Novo, que serviu de distintivo para um regime que se pretendia humanista, dotado de uma capacidade exclusiva de derrubar as fronteiras entre colonizado e colonizador, entre negro e branco: a angolana Maria Celmira Bauleth — “Riquita como prefere que lhe chamem” — é a Miss Portugal, e consequentemente, aos olhos do mundo, representa o país na competição de Miss Universo, em Miami Beach. A Revista de Angola resume a simbologia do momento: “Angola, quer queiram quer não queiram uns quantos mal avisados pedintes da mendicidade internacional, é terra portuguesa”.
Abria-se uma frente de guerra nas trincheiras da cultura popular. A novela para a premiação de Riquita começou com a revelação de que, “pela primeira vez”, “Angola e Moçambique vão estar presentes na grande noite do concurso Miss Portugal 1971”. Segundo o Século Ilustrado, a favorita era mesmo Maria Celmira Bauleth, de 18 anos, nascida em Moçâmedes; e era favorita porque ostentava o galardão de Miss Angola 71, e a sua vitória seria para o bem da nação, representaria “Portugal na sua verdadeira dimensão” — isto é, nas entrelinhas, confirmava a integridade territorial portuguesa em Angola. A mãe do atual primeiro-ministro António Costa, Maria Antónia Palla, jornalista do Século Ilustrado, descrevia como inevitável a vitória de uma candidata do Ultramar, nem que seja porque as “metropolitanas” estavam encobertas, “vestidas à moda do Minho”, e as “ultramarinas” demonstravam “fatos africanos” que “descobrem as formas” — “Elas andam, as africanas, como se bailassem. Queimadas, morenas, a sua pele já é um espetáculo para os olhos.”
O carnaval estava montado no Casino do Estoril, com cobertura da Emissora Nacional e da RTP: “Na sala sobe a tensão. Faz calor. As câmaras de televisão, incansáveis, transmitem para 2 milhões de espectadores a imagem da sala onde se vai decidir quem é a mais bela de 1971”. Na plateia, o regime faz-se representar em peso: Baltasar Rebelo de Sousa — pai do atual Presidente da República, que na altura fazia parte do governo; César Moreira Baptista, Secretário de Estado da Informação e Turismo; e Cunha Leão, Agente Geral do Ultramar. A vencedora é anunciada, e extasiado, entre a plateia, o empresário Jorge Jardim, proprietário de uma série de jornais moçambicanos, próximo de António Champalimaud, então foragido no México, confirma que está muito mais em jogo que um mero concurso de beleza: “É altura que se repare: o Ultramar existe, está crescidinho, está preparado”.
A Secretaria de Estado e da Informação e Turismo organiza uma volta olímpica de Riquita em Angola, de Luanda a Moçâmedes, com direito a acompanhamento musical da banda angolana Negoleiros Do Ritmo, que transmite no megafone uma nova canção: “Riquita”. Esta é a mesma Secretaria de Estado que três anos antes, em 1968, Marcello Caetano reconstituiu, delineando as “Normas a Observar pela Direção dos Serviços de Censura”, com especial enfoque numa linha capital: “Não será permitida a divulgação de notícias, artigos, crónicas ou comentários de quaisquer outros textos que visem diretamente, de modo isolado ou em campanhas, a alteração da política adoptada quanto ao Ultramar Português”.
E apesar de todos os cuidados, neste mesmo julho de 1971, enquanto Marcello Caetano descreve uma “sociedade tolerante, sem descriminação racial”, enquanto a angolana Riquita desfila em Miami como uma prova irrefutável do sucesso da “política adotada quanto ao Ultramar Português”, em Paço de Arcos, no estúdio da Valentim de Carvalho, o grupo musical português de maior sucesso, o Duo Ouro Negro de Raul Indipwo e Milo MacMahon, emblema da nação além-Pirenéus, grava um colossal grito de independência: Blackground. E o álbum Blackground não prega propriamente uma independência colonial, a mensagem é mais duradoura, de insubmissão a qualquer condição, seja de tradicional ou de ligeiro, de assimilado ou de revolucionário; é uma obra-prima da experiência portuguesa e angolana que pretende alcançar um impensável estado de harmonia em plena Guerra Colonial, em frente ao abismo da história.
Duo Ouro Negro: como Raul e Milo cantaram o mundo inteiro a partir de Angola
“No meu ponto de vista, foram quem levaram mais longe a música de Angola. Ponto final”, reflete o músico angolano Vum Vum, autor de uma das canções de Blackground. O percussionista desse álbum histórico, José Adelino Barceló de Carvalho, entretanto conhecido pelo mundo fora como Bonga Kuenda, concorda: “Esta fase da música representada pelo Duo Ouro Negro foi uma das grandes fases daquela época onde Angola ficou prestigiada pelo contributo destes dois homens”. “Mas claro que politicamente nunca foram bem aceites”, assinala Vum Vum, relembrando que até hoje está em disputa qual a correspondência de Raul e Milo com o regime ditatorial e uma ideologia de subjugação colonial. “Quando eu estava aqui na Força Aérea, eles cantavam uma coisa que era muito vexatória para o negro: ‘Olha o preto, olha o preto, não tem vergonha, com cinco escudos quer beber vinho e jantar…’”.
[“Tala On N’Bundo”:]
E hoje, neste período de reflexão histórica, de ajuste de contas, qual é a herança, cinco décadas depois, do Duo Ouro Negro e de Blackground? Em primeira análise, Blackground é um dos álbuns fundamentais da música angolana e da conceção de uma canção lusófona. Mas é também um dos álbuns estruturantes da música popular portuguesa, servindo como um possível ponto de partida para onde estamos agora, rodeados de uma canção diversa e cosmopolita, consequente da diáspora africana, canção que chamamos, sem pudor, de música portuguesa. Diz-nos Bonga:
“O Duo Ouro Negro estava muito avançado naquela época, já tinham previsto tudo, que era necessário haver uma coesão que permitisse às pessoas não ter os problemas psicológicos, e mais guerra e divergências, era para nos juntarmos, que nós não somos culpados da história (…) Os povos destes países como Portugal e Angola, somos filhos uns dos outros, estamos misturados, e não se pode fazer de outra forma que é a nossa história, e tanto Portugal e Angola de hoje não somos culpados pelas querelas do passado. E agora, hoje, como é que é? Os meus filhos e netos vão lidar como com a história?”
“Don’t forget your background/ Don’t forget your blackground”
África era estéril e seca. E Iemanjá, segundo o narrador da história, nasce solitária, até os deuses criarem o rio. É este rio que atravessa África, povoa o chão de afluentes, concebe a primeira árvore, de onde irrompe uma canoa, que o corpo, espírito e voz do homem africano, estremece o céu e a terra: “Don’t forget your background/ Don’t forget your blackground”. E após este preâmbulo que abre o disco, entra na canção “Blackground” uma recolha do povo Cokwe, qual sampling, e uma base angolana, de batuque e violão, engrandecida pela alquimia vocal de Raul Indipwo e Milo MacMahon. Neste meio tempo, entremeia um órgão Hammond, uma bateria rock’n’roll — uma outra diáspora, de blues e soul, de belicosa guitarra elétrica. É a destruição completa de qualquer rótulo, de qualquer condição. E esta é só a primeira canção de Blackground:
“Estamos atualmente, e cada vez isto se notará mais, a fazer coisas muito sérias”, explica a banda à Nova Antena, em 1970, no período em que começam a conceber este polo magnético da canção negra por inteiro. “Blackground é o campo negro, na música, e vai ser um clássico africano, vai ser uma coisa como ainda não há sobre a música de África”. Escreve Tito Lívio, na Mundo da Canção: “Blackground pretende ser um retorno às raízes do homem africano aculturalizado por séculos de domínio e exploração pela civilização ocidental uma proposta de negritude. (…) É a lenda da criação de um cosmos: o mundo da mitologia negra, do nascimento do rio, de Iemanjá, a mãe do amor, do aparecimento dos homens, da formação da tribo universal”. Blackground é então, explicam em sucessivas entrevistas, um conjunto de canções que representa o nascimento e propagação da canção africana, do Cuanza ao Tejo, a bordo de canoas e no porão de navios. Desenvolve Raul Indipwo: “A música africana, levada então pelos escravos, transformou-se em samba, em malambo, em cumbia, em jazz e em gospel. E, se de uma parte manteve o ritmo, doutra manteve a maneira melódica, o improviso, a angústia e a extroversão que caracteriza o povo africano em geral”. É um trajeto geral do povo africano, mas sempre particular à sua maneira:
“Venho de longe
De longe eu sou
Deu-me outro nome
Quem me comprou
Venho da noite calada
Por fora canto
Por dentro nada
Venho na noite cantando em coro
Couro de açoite rasgando o corpo”
[“Venho de Longe”:]
Em 1971, José Adelino Barceló de Carvalho, o velocista do Sport Lisboa e Benfica, campeão nacional dos 200 e 400 metros — a saber, 21,8 e 47,2 segundos — aproveita as tardes folgadas, depois dos treinos, para gravar percussões com o ngoma, o batuque tradicional que o pai lhe ensinou em Angola. O ngoma, assim como o violão, são a base de Blackground, exigência do Duo Ouro Negro. “Eles estavam num reencontro da personalidade africana, cada dia envolviam mais”, recorda Bonga.
Bonga: “Está a repetir-se em Angola o que aconteceu no tempo da ‘outra senhora’”
Este reencontro da personalidade africana chega a derrubar as fronteiras de espaço e tempo, quando colam às canções recolhas do Museu do Dundo, que gravava no terreno a canção tradicional angolana. Neste período, a recriação da canção tradicional estava em linha com, por exemplo, José Afonso e algumas canções de Cantigas do Maio, mas nem o inventivo produtor José Mário Branco ousaria utilizar as próprias recolhas de Lopes Graça e Giacometti numa gravação. As recolhas do Museu do Dundo são evidentes em “Napangula”, com o final jazzístico; ou em “Ondyaia”, diretamente do Sul de Angola, do povo Cuanhama. Segundo Miguel Augusto Silva, da editora Armoniz, que reeditou Blackground em 2018, as referências no álbum devem-se sobretudo aos grupos etnolinguísticos Lunda-Cokwe, Ambundo e Cuanhama. Nesta reedição de Blackground é recuperada a seguinte entrevista de Milo ao Musicalíssimo:
“Houve uma certa audácia da nossa parte. Mas sem audácia andamos para trás em vez de avançarmos como deve ser. Isto é a concretização de muitos anos de trabalho. É a realização de um projeto antigo, que me levou a estudar Etnografia, Música e História”.
O Duo Ouro Negro e os “muitos anos de trabalho” dão fruto na segunda metade da década de sessenta: cantam no Festival RTP da Canção; no Olympia em Paris; no Canecão, Rio de Janeiro; na Expo 70, em Osaka; no The Ed Sullivan Show; criam Rua d’Eliza, uma ambiciosa “opereta africana” na RTP; gravam um disco em Buenos Aires; lançam Mulowa Africa, um álbum de impacto internacional; cantam Beatles; a canção tradicional portuguesa e angolana; Bossa Nova; samba; semba; e o que mais for preciso. E no final desta década de aclamação, em agosto de 1969, calhou estarem em Nova Iorque, na plateia de um tal Festival de Woodstock, em plena ebulição da contracultura de massas, do Movimento dos Direitos Civis, do Black Power, de uma utopia revolucionária aparentemente ao alcance da juventude norte-americana. E porque não, terão pensado, da juventude portuguesa e angolana?
O ano de 1970 é de regresso aos EUA, numa digressão de 43 cidades e 20 concertos no circuito universitário. Na estrada, motivados pelo público afro-americano, à boleia do espírito da época, decidem dar corpo a um projeto libertário que chamam de Blackground. E enquanto conversam entusiasticamente nos bastidores, acredita-se, começaram a nutrir simpatia pela ideia de uma Angola independente. “Eles faziam muitas digressões internacionais, tinham essa oportunidade de se aproximarem de quem pensava numa lógica de independência”, garante-nos Ana Victória Pereira, em Lisboa, filha de Milo MacMahon. Neste período, segundo pessoas próximas do Duo Ouro Negro, os dois músicos acercam-se de alguns movimentos indepedentistas africanos e chegam a contribuir financeiramente, nomeadamente à MPLA, o partido clandestino angolano sediado em Paris.
Curiosamente, a canção de Blackground que desperta a atenção da PIDE é a jovial “Amanhã”. A canção de anca brasileira, mais samba que semba, em clima de festa, entre o sacro e a hedónico, é uma celebração de carnaval, festa que, convém recordar, esteve absolutamente proibida em Angola durante 1961 e 1968. É na festa do carnaval, e em outras farras similares, que a canção angolana se misturava e circulava, que nascia a música popular de Angola; e “Amanhã” é uma comemoração do carnaval durante a madrugada, na expectativa do “novo dia”, seja de alegria ou de tristeza, “na terra amada que me viu nascer”. A mensagem é subliminar: um dia próximo, amanhã, é a festa da insurreição — “Que é que vai fazer amanhã meu irmão?”
[“Amanhã”:]
Dos musseques à Casa dos Estudantes do Império
Em 1971, o maior símbolo da nova canção angolana, Liceu Vieira Dias, estava finalmente em liberdade. Depois de dez anos de prisão no Tarrafal, em Cabo Verde, o líder dos N’Gola Ritmos permanecia intensamente vigiado pela PIDE de Luanda. “O Liceu Vieira Dias era uma pessoa irreverente, um verdadeiro nacionalista”, contextualiza-nos Bonga, a concordar com a tese que foi a partir de Liceu Vieira Dias e dos N’Gola Ritmos que a canção popular angolana desabrochou e permitiu a existência do Duo Ouro Negro e do próprio Bonga. “O Liceu teve duas tarefas importantes: uma tarefa sociocultural, porque ele impunha-se na sociedade, numa era colonial ele tinha garra para enfrentar todas aquelas injustiças de que fomos vítimas; e depois, no ponto de vista da arte, era um exímio intérprete do semba”.
“Os N’Gola Ritmos serviram-nos de inspiração, era a banda tradicional dos nossos kotas com que todos nos identificávamos”, concorda Vum Vum, acrescentando no entanto que, inicialmente, “o grande público não conhecia os N’Gola Ritmos, estavam circunscritos ao Bairro Operário”. No Bairro Operário, em Luanda, desenvolve-se um círculo intelectual em volta das famílias Vieira Dias, Mingas e Van-Dunem, que decidem resgatar a canção tradicional como uma bandeira independentista. O empregado do Banco de Angola, Liceu Vieira Dias, e colegas da canção como Euclides Fontes Pereira — Fontinhas — e Amadeu Amorim, formam os N’Gola Ritmos e começam a cantar em kimbundu, o idioma predominante nos musseques, os bairros do subúrbio de Luanda; e recuperam danças, ritmos e instrumentos tradicionais, num encontro do subúrbio com o centro, do campo com a cidade, do antigo com o novo, que marca o nascimento de uma nova canção popular.
Em 1970, 45% da população de Luanda era branca, enquanto a população negra era empurrada para os musseques. O modus operandi dos N’Gola Ritmos, que prossegue enquanto o seu líder está preso com protagonismo de Lourdes Van-Dúnem, estende-se praticamente a toda a nova música angolana: deve partir-se do musseque para a criação musical, em kimbundo ou outro idioma angolano, como uma enfática crítica política e social. “De certa forma, cantar em kimbundu tinha um contexto político, de demonstrar a identidade e os valores da nossa cultura e tradição”, reflete Vum Vum. Em 1968, a PIDE chega a prender o “rei da música angolana”, Elias Dia Kimuezo, para lhe perguntar porque canta em kimbundu ao invés de português. A própria polícia política portuguesa entende que a canção popular angolana desenvolve-se próxima dos movimentos independentistas, de confronto direto com Portugal; e estranhamente, o conjunto português de maior sucesso, o Duo Ouro Negro, também é herdeiro deste embrião, chegando inclusive a cantar “Muxima”, uma canção tradicional recuperada pelos N’Gola Ritmos com intuitos assumidamente nacionalistas, por uma Angola independente.
[“Muxima”:]
Um episódio singelo, da infância de Raul Indipwo, o principal compositor de Duo Ouro Negro, pode explicar em parte este estranho fenómeno musical tão confortável na tradição angolana como portuguesa: a primeira música que aprende na escola é o “Tiro-liro”, mas em kimbundu. Este é o conflito da música do Duo Ouro Negro desde que chegam a Portugal, o ponto de vista define se vestem a pele de colonizados ou de colonizadores, de conformistas ou de revolucionários. E o empenho na tradição angolana, evidente sobretudo em Blackground, também tem origem na infância dos dois músicos. Raul é filho de um enfermeiro militar e Milo de um farmacêutico, percorrem Angola de lés a lés conforme os pais são requisitados pelas administrações locais, em contacto direto com a diversidade de ritmos e idiomas da terra. “O nosso pai viajava muito, de quatro em quatro anos era colocado numa terra diferente”, confirma-nos Odete Peres Cruz, irmã de Raul, que recorda um primeiro contacto breve de Raul e Milo em crianças, e evidencia um detalhe que não é de somenos: os dois músicos são descendentes de portugueses. “O meu pai era mestiço, filho de um senhor branco e uma senhora negra. E a minha mãe era branca, filha de um senhor madeirense que foi para Angola.” A ascendência de Milo não é muito diferente, esclarece-nos a filha, Ana Victoria Pereira: “O meu avô era luso-angolano, mulato — porque o meu bisavó era branco de Óbidos. E a minha avó era descendente de madeirenses”.
Certo dia, mais precisamente em 1956, os dois amigos de infância itinerante reencontram-se e formam o Duo Ouro Negro, com Raul a servir de catalizador criativo. “Ele é que parecia mais velho que eu”, recorda Odete, quatro anos mais velha, que assistiu em primeira mão ao nascimento de um compositor. “Eu agarrava-me aos livros. Ele não, ele queria outros caminhos, queria ir mais além, dizia que os livros ensinam muito, mas que se apenas nos agarramos aos livros, não caminhamos.” Três anos após a fundação, o Duo Ouro Negro estreia-se em Portugal, no Cinema Roma, em Lisboa, seguido de uma pequena digressão, das festas de São João, no Porto, ao Casino do Estoril. E não é um detalhe que nesta primeira digressão em Portugal incluem um albergue universitário: a Casa dos Estudantes do Império.
Na Avenida Duque de Ávila, a Casa dos Estudantes do Império (CSI) recebe estudantes de Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe e torna-se naturalmente no foco de expressão cultural e discussão sobre o futuro independente destes países. Um dos dinamizadores na CSI é Ruy Mingas, músico e atleta angolano de salto em altura, que canta furtivamente canções de independentistas como Mário Pinto de Andrade e Agostinho Neto. Uma das canções é particularmente bem sucedida, “Monangambé”, de António Jacinto:
“Quem capina, quem paga recebe desdém
Fubá podre, peixe podre
Pano ruim, cinquenta angolares
‘Porrada se refilares’?”
[“Monangambé”, por Ruy Mingas:]
Uma aparição na RTP, no célebre “Zip-Zip”, torna o atleta Ruy Mingas num dos principais rostos da canção africana em Portugal, alento para gravar um álbum onde inclui “Birin Birin”, do seu tio Liceu Vieira Dias. Em 1971, enquanto o pai de Ruy Mingas está preso no Tarrafal por associação à MPLA, o atleta-músico retorna à RTP para cantar “Makesu”, um poema de Viriato da Cruz, um dos fundadores do MPLA, exilado na China. Em kimbundu, “maseku” é “noz-de-cola”, e segundo o poema, as novas gerações deixaram de comer noz-de-cola, esqueceram a tradição — “Don’t forget your background”.
A brincadeira subversiva da CSI terminou em 1965, os líderes dos movimentos independentistas saíram de Portugal e as discussões prosseguiram desagregadas, pela calada. Havia as farras na Associação dos Marítimos Portugueses, um rés do chão na Calçada Ribeiro dos Santos que passava discos africanos; o Pique-Nique no Rossio — hoje restaurante Luso Central — onde se encontravam os músicos e atletas; e a livraria Ulmeiro, em Benfica, que adota o convívio dos estudantes africanos, entre eles, Luís Bernardo Honwana, Manuel Faustin e Manuel dos Santos. Em 1971, um destes estudantes, Waldemar Bastos, é surpreendido com panfletos na mão e preso pela PIDE. Bonga: “Criámos grupos, falámos com aquele e aqueloutro, e cada um a seu jeito tinha a sua reivindicação, fazendo os possíveis para não ser preso”.
“A PIDE jogou um papel tremendo no controle de todos nós que viemos do Ultramar”
Aparentemente, Raul Indipwo estava distante de qualquer uma destas agregações populares angolanas de convívio e debate, sequer estava particularmente próximo da cidade de Lisboa. O seu tempo era dedicado à natureza e aos animais, na Quinta da Azenha, em Cascais. Por outro lado, Milo era um noctívago de Lisboa, organizava farras em casa, na Avenida Gago Coutinho, e seguia noite fora pelos seus bares, entre eles o Senzala. O distanciamento era um segredo para a convivência sossegada — e consequente longevidade — do Duo Ouro Negro. “Eles tinham um relacionamento de irmãos, de respeito” reflete Luis N’Gambi, o violista de Blackground. “Era cada um no seu canto, não interferiam na vida um do outro.” As personalidades eram praticamente opostas: Raul era extrovertido e meloso; Milo era sereno e vigoroso. “O meu irmão Raul era muito sentimental, agarrado às coisas, tinha muita fantasia e imaginação na cabeça dele”, descreve Odete. “O Milo era mais pacato, calmo, uma maneira de pensar diferente”.
Blackground ganha forma em campo neutro: em casa do músico norte-americano Kevin Hoidale. “O Kevin tinha um estúdio em casa onde fazíamos os ensaios”, explica-nos o guitarrista escocês Mike Sergeant, radicado em Portugal desde 1968. “A sua companheira na altura, a Carla Molinari, tinha uma quinta em Bicesse, Cascais, e o Kevin instalou o equipamento e montou um estúdio na quinta”. O estúdio era o quartel-general dos Objectivo, a banda de prog rock de Kevin Hoidale — “era o líder não oficial” — que acompanha o Duo Ouro Negro na conceção, gravação e apresentação de Blackground. A base das canções é o ngoma e o violão, este último empregue pelo angolano Luis N’Gambi, então identificado como Lito Saraiva, que estava subitamente folgado desde que Eduardo Nascimento retornou a Angola e deu por concluída a banda Rocks. E no ngoma estava Bonga, que assim como Luis N’Gambi, acompanha com regularidade os cantores angolanos lisboetas como Lilly Tchiumba e Vum Vum.
“O clima em que se vivia era de concórdia, de amizade, de aproximação, de Angola no coração”, evoca Bonga, que tinha uma série de composições de kimbundo em carteira, mas ainda não arriscava expor a voz rouca e o tom acusatório ao público português. “Não é do pé para a mão que a gente se faz artista, aprendi os instrumentos tradicionais, fiz parcerias e ao vir para Portugal comecei a acompanhar todos os artistas angolanos”, nota o compositor de “Olhos Molhados”, que aprende a dominar a dikanza nos musseques do Bengo, ao lado dos irmãos, atrás da concertina do pai. E eventualmente, no quintal, chovia consciência política: “Caía um papel no quintal, e este papel não tinha assinatura de nenhum partido político, era um chamamento à responsabilidade da nossa consciência”. Em 1966 estabelece-se em Portugal como velocista do Benfica, é presença assídua nos campeonatos de atletismo europeu, que o leva a estar no encalço da PIDE em cada viagem ao estrangeiro como atleta. “Era um cancro que me acompanhava quando fazia a competição desportiva no estrangeiro. Nestas viagens havia sempre um ou dois tipos que não sabíamos quem eram, que estavam ali para nos vigiar”, confirma Bonga, acrescentando que “a PIDE jogou um papel tremendo no controle de todos nós que viemos do que se chamava o Ultramar”.
É André Mingas, irmão de Ruy Mingas, que alerta Bonga da sua iminente prisão, e o atleta não pensa duas vezes e exila-se em Roterdão. Na Holanda, envolta da comunidade cabo-verdiana, é desafiado por Djunga Biluca, fundador da Morabeza Records, a gravar em nome próprio as canções que não teve ânimo — e nem lhe seria permitido — cantar em Portugal. O resultado foi um clássico intemporal: Angola 72. Entre as canções está “Balumukeno”, uma letra de denúncia que descreve os colonizadores como, “Olo ku tu beta, olo ku tu giba”, isto é, “só nos batem, só nos matam”. “Eram canções zangadas com Portugal por causa da hipocrisia que havia no meio disto tudo”, confessa Bonga. “É que nós lidamos com as pessoas, muitas delas racistas, muitas delas conservadoras do regime, e só andavam connosco porque precisavam do nosso esforço intelectual, do nosso esforço físico”.
[“Balumukeno”, de Bonga:]
Além de “Georgina”, uma marrabenta do moçambicano Mpfumo, a única outra composição de Blackground sem o dedo de Raul Indipwo é “N’Vula” — “chuva” em kimbundo — do angolano Manuel Rosário das Neves, reconhecido na época como Vum Vum. “É uma tragicomédia. A chuva que cai dos céus para nós era uma bênção, mas ao mesmo tempo essa chuva quando entra nos musseques destrói muita coisa, e entretanto, como sempre acontecia, quando acabava a chuva, havia uma criança perdida, algumas encontradas mortas”, explica-nos Vum Vum, em Lisboa, que ainda recorda com mágoa não ter sido avisado pelo amigo Milo MacMahon que a sua canção “N’Vula” seria gravada em Paço de Arcos pelo Duo Ouro Negro.
A história de Vum Vum, narra-nos o próprio, começa em Angola, a seguir o restante fluxo migratório da população negra em Luanda, que troca forçosamente a cidade pelos musseques. Mas este cantor versátil retorna à cidade e vinga rapidamente, a começar por baixo, nomeadamente uma boite de strip tease na Ilha de Luanda. Por sorte, “um indivíduo vem ter comigo que estava a fazer horas para ir de madrugada buscar duas bailarinas suecas” e recebe o convite para cantar de smoking na exclusiva Tamar. Uma coisa leva a outra e na Tamar é convencido a assinar contrato em Lisboa com o empresário Vasco Morgado, o magnata do teatro de revista.
Escreve o Diário de Lisboa:
Há cinco anos, embarcou em Luanda com destino a Lisboa, um negro com um violão. Ninguém lhe perguntou o que vinha fazer, tão frequente é as pessoas deixarem a sua terra à procura de uma vida melhor”.
O Diário de Lisboa recorda ainda a insatisfação de Vum Vum com a canção apresentada para cantar na revista Lisboa é Sempre Mulher, no Monumental. “Deram-me uma canção de circunstância, que falava de descobrimentos, de Luanda e não sei que mais, mas que não me dizia nada”, explica o músico. “Se precisavam de cor para ilustrar um número alusivo de Angola, não precisavam de me mandar vir, tinham cá muitos”. “É que quando aqui cheguei, esse Vum Vum que cantava em espanhol, inglês e italiano, ficou em Angola”, reflete hoje, recordando a sua intransigência de cantar “uma exaltação colonial”. “Decidi que tudo quanto eu cantar tinha que ser da minha cultura e tradição”.
Em 1971, numa passagem por Angola, Vum Vum canta em kimbundo “Monami”, no programa da RTP “Portugal Além Fronteiras”. A canção delirante “Monami”, de taciturna a um tumulto, é uma adaptação tradicional de Fontinhas, dos N’Gola Ritmos, que Vum Vum convence a incluir na revista do Monumental e ainda grava em estúdio pela Valentim de Carvalho, num EP reeditado este ano pela Groovie Records. O músico explica-nos a letra: “Quando começa a revolução e a política, havia um recolher obrigatório nos musseques, naturalmente que havia muito pessoal na clandestinidade, a dar panfletos, e daí eu canto ‘Meu filho não saias por favor/ Meu filho dorme para que eu te possa ver novamente’”.
No dia do lançamento do EP Muzangola, o disco não estava sequer na montra da loja da Valentim de Carvalho e o músico decide cortar relações com a editora; e entretanto, o contrato de três anos com Vasco Morgado foi encurtado para meia dúzia de meses. Resume ao Diário de Lisboa:
A minha vinda para Lisboa era como um trampolim de que eu pensava servir-me para alcançar novos horizontes. Mas cedo dei conta que o trampolim não tinha molas.”
E o Duo Ouro Negro, provoca a jornalista do Diário de Lisboa, Maria Regina Louro, que “tem sido acusado de adulterar a verdadeira música angolana?” Responde Vum Vum: “Sempre os considerei os autênticos embaixadores da música angolana. Cantam os dialetos e isso é muito importante”. E mais, continua: se há alguém capaz de apresentar uma visão unificada da expressão cultural angolana são Raul e Milo — “eles são os elementos mais à altura de aglutinar outras pessoas para o tal trabalho de conjunto”.
Além do âmbito musical, o elemento cultural agregador mais evidente em Blackground é a capa do álbum, com uma pintura do poeta e músico Eleutério Sanches. O embondeiro, a árvore africana de propriedades míticas que está representada na capa, é uma imagem recorrente na obra de Eleutério, que assim como a irmã Lilly Tchiumba, chega a Portugal como estudante e afirma-se como músico. Em 1971, enquanto Eleutério Sanches desenha a capa de Blackground e expõe no Palácio Foz, outro artista ultramarino, Malangatana, aperfeiçoa a gravura como bolseiro da Gulbenkian, num atelier em Paço de Arcos. Em entrevista ao Século Ilustrado, o célebre artista moçambicano descreve com exatidão o fosso cultural entre o negro e o branco:
Sendo o negro criado, servente ou axiliar do homem branco, sendo o contacto humano feito desta maneira, é difícil haver intercomunicações de culturas. O branco acantona-se na sua cultura, e o negro na dele. Há uma ausência total de uma simbiose cultural.”
Era exatamente esta ausência de simbiose cultural que o Duo Ouro Negro pretendia resolver. No entanto, quando Raul e Milo são fotografados em frente ao Galo de Barcelos no EP Maria Rita, quando cantam o cancioneiro tradicional português e certas canções ligeiras, a perceção entre os opositores ao regime não é de simbiose cultural, mas que estão a mando do Estado Novo, que eram uma representação panfletária da política integralista do Ultramar.
Neste momento histórico, o plano do Duo Ouro Negro era impraticável: demonstrar consonância entre a canção ligeira portuguesa e a renovação musical africana. No mesmo ano que está em estúdio a gravar Blackground, o Duo Ouro Negro canta diariamente na “super-revista” “…E O Zé Faz Tudo!” no Teatro Variedades, acompanhados por Maria do Céu Guerra. E depois de Blackground, lançam dois EPs numa lógica totalmente diferente, com Jorge Machado e Thilo Krasmann. Em “Romança Da Rainha” descrevem uma coroação portuguesa, de linda trança, enfeitada com um malmequer amarelo. “O Duo Ouro Negro é um agrupamento que se perde pelo seu demasiado ecletismo, pelas concessões feitas a um esquema de má comercialização de má música”, analisa Tito Lívio, na Mundo da Canção. “Quase ao mesmo tempo da saída de Blackground, um LP notável gravado juntamente com o Objectivo, um dos mais importantes do ano, surgem dois 45 rotações medíocres.” E estas novas canções, nota o crítico de música, não são autenticas: “Só dentro dos seus parâmetros, da música que conhecem e sentem, quando estão a ser fiéis às suas raízes rítmicas e melódicas, o Duo Ouro Negro consegue um trabalho válido e autêntico”.
[“Romança da Rainha”:]
https://www.youtube.com/watch?v=5QpVzbqHOxE
“Eles não foram bem vistos porque houve um certo radicalismo de lamentar”, defende Bonga. “Eles foram severamente criticados pelos angolanos e sofreram com isso. Naturalmente que não tiveram os conhecimentos que podiam ter tido, mas também há muita gente angolana, inclusive nos governos, que não fala kimbundo, que não fala as línguas naturais de Angola.” “O meu irmão Raul, e o Milo pensava da mesma maneira, eram angolanos por terra, por sangue”, medita Odete. “Mas não estavam filiados a nenhum partido, e acho que esse é que era o mal”.
A indústria musical portuguesa e a canção africana
Em novembro de 1971, a título de exemplo, a tabela de vendas de discos em Angola era dominada pelo Duo Ouro Negro e nenhum outro músico consegue mais do que uma canção entre as mais vendidas. O Duo N’Gola está na tabela com “Angola”, uma lenga lenga que a PIDE tem debaixo de olho, mas que deixou passar, sobre o povo angolano subjugado entre o mato, a escola e o trabalho forçado:
“Com tudo e com tudo não sabe o que tem
Tesouro guardado não sabe o que tem
Tem gente com cor sem cor meia cor
Trabalha-se o ano com o mesmo calor”
Outra canção de sucesso é a entusiástica “Celestina” dos Cabinda Ritmo, de influência congolense. As duas bandas, Duo N’Gola e Cabinda Ritmo, eram editadas pela Valentim de Carvalho Angola, que fabrica e edita discos diretamente em Angola através da editora N’Gola. As editoras portuguesas aproveitam a escassez do mercado concorrencial para uma expansão ultramarina. Por sua vez, a Rádio Triunfo é proprietária da fábrica da Fadiang, e das editoras Rebita em Angola, e Somodisco em Moçambique.
[“Celestina”, dos Cabinda Ritmo:]
https://www.youtube.com/watch?v=iguiNJnoAC4
Apesar da inesgotável riqueza musical de Angola e Moçambique, neste período, em Portugal, a música africana era essencialmente sinónimo de morna e coladeira, de Cabo Verde. Não é um acaso: em 1971 estimam-se entre cinco a quinze mil cabo-verdianos em Lisboa, uma alteração do tecido populacional lisboeta que era assunto recorrente na imprensa — “Quem, ao domingo, cerca de meio-dia, passe pelo Camões pode ter a tendência a esfregar os olhos, incrédulo. Muitas dezenas de homens negros, falando em dialeto incompreensível”. As secas em Cabo Verde e a falta de mão de obra em Portugal motivam sobretudo homens a abandonar a terra natal para trabalhar na construção civil, na Siderurgia Nacional, e na Lisnave, dormem em camaratas — “enlatados” — e apesar de receberem “menos dez centavos que os portugueses”, conseguem reunir algum dinheiro para enviar à mulher e filhos, em Cabo Verde. Um destes trabalhadores arrisca o comentário incómodo, ao Século Ilustrado: “A metrópole é o pai, dizem. Os outros territórios são os filhos, filhos ilegítimos, é?”.
O mestre da canção cabo-verdiana em Portugal é Bana, que domina o circuito entre Portugal, Cabo Verde, França e Holanda. “Um antigo estivador que viveu maiores dificuldades”, contextualiza à Flama, em 1971, enquanto Bana promovia o EP Nho’Ntone Escaderode, da Valentim de Carvalho, onde está a morna de B.Leza “Perseguida”. Bana, ou melhor, Adriano Gonçalves, de Mindelo, começou a sua trajetória heroica escondido entre garrafas de aguardente, a bordo de um navio para o Senegal, onde encontra o seu parceiro musical, o músico Luis Morais. Em 1965, os dois formam a Voz De Cabo Verde em Roterdão e são editados por Djunga Biluca, que liderava a expressão musical da diáspora cabo-verdiana. A estratégia do ex-marinheiro Djunga Biluca era enviar cartas a Cabo Verde para atrair mão de obra para a cidade portuária, conseguindo convencer, entre tantos outros, o músico Tázinho. Em 1971, é a Alvorada da Rádio Triunfo que edita Tázinho e seria mesmo a Alvorada a grande editora da música cabo-verdiana em Portugal. Além de Tázinho, neste ano lançam ainda discos de Fernando Quejas e Marino Silva, dois músicos que são abraçados pela Emissora Nacional, apresentados ao lado de músicos de folclore português, um alinhamento que pode ser interpretado como mais uma forma do regime sublinhar politicamente que Cabo Verde é Portugal.
Quase 50 anos depois do 25 de Abril, da independência de Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe, ainda está por compreender a magnitude da afinidade de Portugal com a canção africana — e, naturalmente, da presença da canção africana dentro deste organismo mutável a que chamamos de música popular portuguesa. Uma das incógnitas está precisamente em Blackground, um projeto ambicioso concebido e gravado em Portugal, que pretendia universalizar a canção de África. O álbum é apresentado em agosto de 1971, no Festival Vilar de Mouros, lançado em março de 1972, com outro concerto de apresentação no Cinema Roma, com 18 pessoas em palco — “um dos melhores shows organizados desde sempre entre nós” — e nunca é sequer apresentado, ou especialmente recordado, em Angola. Depois, a independência de Angola dita o fim do inimigo comum — o regime colonial — e as desavenças políticas marcaram uma nova época distante de um projeto de convergência utópica como Blackground.
“Os alinhamentos políticos deram-nos uma guerra entre irmãos”, lamenta Bonga, relembrando a comunhão singular de Blackground: “Recordo dessas gravações sobretudo a solidariedade, a ligação de uns com os outros que funcionou, hoje que estamos em querelas incríveis que todos perdem, naquele tempo era completamente diferente, éramos solidários.” O Duo Ouro Negro nunca mais voltou a Angola e esse desgosto permaneceu até ao final das suas vidas — Milo sofre uma doença repentina e morre em 1985; e Raul morre aos 72 anos, em 2006. “O meu pai tinha uma certa mágoa”, confirma Ana Victoria Pereira. “Porque na altura, não com grande envolvência, mas também foi trabalhando no caminho da independência, mas depois quando foi a independência, de alguma forma foram conotados como direita, como a bandeira da ditadura, que não é verdade.”
Independentemente do julgamento da história, o Duo Ouro Negro conseguiu o impensável em Blackground: uma convergência libertária da canção africana, enquanto gravam e vivem com êxito em Portugal, com a Guerra Colonial como som de fundo. A contradição é inegável, assim como o recado, que continua a servir de salvo-conduto: “Don’t forget your background”