O músico angolano Waldemar Bastos, um dos mais respeitados artistas lusófonos da world music e dos primeiros artistas de Angola a alcançar a internacionalização, morreu esta segunda-feira de madrugada em Lisboa, aos 66 anos, disse à agência Lusa o Ministério da Cultura de Angola. Radicado em Portugal, estava em tratamentos oncológicos desde há um ano, referiu a mesma fonte.

Com um percurso profissional de mais de quatro décadas, Waldemar Bastos apresentava uma sonoridade que o próprio definia como afro-luso-atlântica, marcada por composições de cariz autobiográfico e influências da cultura africana e portuguesa. Rainha Ginga, Velha Chica e Muxima são alguns dos temas que o tornaram conhecido.

“Não me meti na música com ânsia de fazer discos”, afirmou numa entrevista o jornal Público, em 2016. “Meti-me na música pelo encontro com o belo. Não consigo fazer nada em cima do joelho, gosto de burilar as coisas com tempo, por isso demorei sempre seis ou sete anos a lançar novos discos. Quando uma pessoa tem isso como verdade para si própria, os outros acabarão por sentir.”

Descrito como uma pessoa direta e interventiva, pronunciou-se com frequência a favor da democratização de Angola e deu nota em várias ocasiões de que se sentia ostracizado pelo poder político angolano. No entanto, sempre se sentiu próximo do público. “Os angolanos acima de tudo estimam-me, amam-me, e eu também, porque só recebo o que dei”, afirmou em 2018.

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Trabalhou com nomes como Chico Buarque, Dulce Pontes, David Byrne, Arto Lindsay e Ryuichi Sakamoto, entre outros, com a Orquestra Gulbenkian, a London Symphony Orchestra e a Brazilian Symphony Orchestra. Tinha os Bee Gees e Carlos Santana como referências. Em 2001, foi o único intérprete não fadista a cantar na cerimónia de trasladação de Amália Rodrigues para o Panteão Nacional, em Lisboa. Ele e a fadista tinham sido amigos próximos e admiravam o trabalho um do outro.

Recebeu em 2018 o Prémio Nacional de Cultura e Artes, a mais importante distinção cultural do Estado angolano. No ano anterior, tinha sido considerado Músico e Cantor Internacional de 2017 no X Encontro de Escritores Moçambicanos na Diáspora, em Lisboa, ocasião em que foi elogiado por defender a democracia e os direitos humanos. Em 1999 recebera o prémio New Artist of the Year nos World Music Awards, promovidos pelo Príncipe do Mónaco.

[Waldemar Bastos interpretou “Teresa Ana” em 2016 num concerto no Teatro da Trindade, em Lisboa]

O cantor atuava com regularidade em Portugal, tendo estado por exemplo em 2017 na abertura do Festival de Teatro de Almada e no Festival de Músicas do Mundo de Sines. O diretor do festival, Carlos Seixas, disse na segunda-feira através do Facebook que Waldemar Bastos foi “um músico maior” e que “na memória ficam canções intemporais, uma voz de dor e de esperança, uma discografia única no cancioneiro angolano e de língua portuguesa.”

O último álbum do artista, Classics of My Soul (2010), foi apresentado no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, com a Orquestra Gulbenkian e tinha sido gravado em Londres, sob a direção do maestro Nick Ingman.

“Tiraram-me tudo, deixaram-me de rastos”

Waldemar Bastos acusou o regime de José Eduardo dos Santos de perseguição, por se recusar a apoiar o partido no poder, o MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola). “Foram poucas ou nenhumas as vezes em que me deixaram cantar no meu país”, escreveu em 2016 na rede social Facebook, acrescentando que se sentia vigiado “todos os dias, palmo a palmo, pela polícia secreta e ‘bufos’ ao serviço do regime no poder em Angola”.

Quando das eleições legislativas de 23 de agosto​ de 2017 em Angola — as terceiras eleições depois do fim da guerra civil, que puseram termo ao consulado de 37 anos de José Eduardo dos Santos e elegeram como presidente João Lourenço, também do MPLA — Waldemar Bastos considerou “fundamental uma abertura, porque os angolanos têm que viver em liberdade”.

Desde então, estava mais próxima a relação do músico com as autoridades do país. “Para mim, é uma pessoa muito preocupada com Angola. É um patriota. Sendo ele um patriota, agrada-me”, disse no ano passado em relação a João Lourenço. O Prémio Nacional de Cultura e Artes em 2018, igualmente atribuído ao cantor Bonga, foi interpretado como parte de um processo de reconciliação nacional patrocinado pelo presidente.

“Bonga e Waldemar Bastos sempre usaram a sua música como artilharia de combate a todos os males que atestavam a independência governamental”, comentou em 2018 o jornalista angolano Fernando Guelengue. “Este feito colocou os artistas diante de um muro que separava a sua verdadeira raiz e vontade de contribuir para o desenvolvimento do país com a punição moral do anterior Governo.”

Em janeiro do ano passado, Waldemar Bastos foi recebido pelo ministra da Cultura angolana, Carolina Cerqueira, e afirmou que estava “disponível para trabalhar com o Ministério da Cultura no processo de internacionalização da identidade cultural angolana”.

Na mesma fase, em entrevista à Agência Angola Press, disse que a mágoa do passado “estava definitivamente ultrapassada e atenuada”, mas no discurso evidenciava ainda os traumas do passado e do exílio. “Sou cristão, um homem de perdão, mas é muito importante que a reparação seja feita. Foram feitas acusações e destruídos sonhos. Devido à malvadez e insensatez de determinadas pessoas, até sem a casa fiquei. Tiraram-me tudo, deixaram-me de rastos.”

[versão acústica de “Muxima” publicada em 2013 na página oficial no Facebook]

Waldemar Bastos acoustic version of Muxima

Voice&Guitar

Posted by Waldemar Bastos on Friday, January 4, 2013

Concertina aos sete anos e Jackson 5

Waldemar dos Santos Alonso de Almeida Bastos nasceu em 4 de janeiro de 1954 na província de São Salvador do Congo (ou M’Banza Kongo). O pai, natural do Lobito, e a mãe, nascida no Zavula, eram enfermeiros e tratavam pessoas com lepra, “mosca do sono” e tuberculose. Teve dois irmãos, um dos quais morreu jovem.

Considerava que a carreira de músico e compositor se tinha iniciado aos sete anos, quando o pai — violoncelista e organista da Igreja da Sé de Luanda —, o descobriu a tocar numa concertina as músicas que passavam na rádio. “O talento que Deus me deu foi uma dádiva. Não toco instrumentos de sopro, porque nunca me interessei. De resto, qualquer instrumento de cordas ou de teclas não é difícil. A música para mim não é difícil”, disse em 2006, em entrevista à RTP.

Viveu poucos anos em São Salvador do Congo, passou por Cabinda, morou em Luanda. Ainda em criança recebeu aulas de música e percebeu que sabia mais de ouvido do que a partir das notas musicais. A infância em Angola foi descrita como opressiva, devido ao regime colonial português, e a música pode ter sido o escape que encontrou.

Influenciado pelo êxito dos Jackson 5,  começou a tocar guitarra e as suas primeiras atuações foram com conjuntos de baile.

“Desde miúdo e durante muitos anos fiz parte de vários conjuntos e viajei por Angola tocando um pouco de tudo: rock, tangos, valsas, entre vários estilos”, escreveu no site oficial, atualmente desativado. “Juntamente com o que ia escutando do meu pai e as canções que ouvia o meu povo cantar por onde passava, tudo isto me facultou um grande universo musical. Nasci com capacidade de compor naturalmente e tudo o que toquei e ouvi ficou retido em mim e veio saindo cá para fora, mantendo sempre a estrutura da minha alma e da alma angolana.”

Favorável à independência de Angola, aos 19 anos foi preso por cerca de oito meses pela PIDE, a polícia política portuguesa, sob acusações de subversão. Era aluno de engenharia eletrotécnica, mas nunca completou os estudos. A seguir à independência, em 11 de novembro de 1975, exilou-se em Portugal para escapar à guerra civil que assolou o país. “Havia agressões, Angola era agredida pela África do Sul. Havia uma série de problemas. A arte não era prioritária”, explicou à RTP em 2006.

Esteve no Brasil, onde em 1983 gravou o primeiro disco de estúdio, Estamos Juntos, com a participação de João do Vale, Chico Buarque e Martinho da Vila. Em 1990 publicou o segundo disco, Angola, Minha Namorada. O álbum Preta Luz, de 1998, foi considerado pelo New York Times um dos melhores da década de 90.

Casado, com três filhos, um dos quais foi assassinado em 1997 na sequência de uma discussão numa discoteca da Praia de Santa Cruz, concelho de Torres Vedras, Waldemar Bastos viveu grandes dificuldades antes da consagração internacional, pela mão de David Byrne e da sua editora Luaka Bop. Chegou a gerir um restaurante no Bairro Alto, em Lisboa, ao lado da mulher.

“Vivi muitos anos de milagre. A minha vida devo-a a Deus. Deus deu-me sempre de comer e nunca vendi a minha dignidade”, afirmou em 2006. “Sou um homem normal, pecador, mas não dei a ninguém o diamante que Deus me deu, porque o talento é uma oferta que Deus dá para a desempenharmos com muita dignidade. Se os pássaros comem sem cultivar, quanto mais os homens, que são inteligentes.”

Luaty Beirão: “Obrigado por partilhares um pouco da tua luz”

As reações à morte de Waldemar Bastos chegaram dos mais diversos quadrantes ao longo de segunda-feira. Músicos como Aline Frazão, Paulo Flores, C4Pedro e Anselmo Ralph, o ativista Luaty Beirão e o escritor Kalaf Epalanga usaram as redes sociais para recordar o “kota” Waldemar Bastos.

A União Nacional dos Artistas e Compositores (UNAC) referiu-se a ele como um “grande ícone da música angolana”. Em declarações à Lusa, em Luanda, o presidente da UNAC, José “Zeca” Moreno, manifestou-se “bastante constrangido e surpreendido” com a notícia.

O cantor e jornalista cultural angolano, Mário Santos “Jamol”, afirmou que Waldemar Bastos “era ímpar na sua qualidade vocal, mas também pela sua dimensão musical”.

Aline Frazão, numa mensagem partilhada no Twitter, falou num “dia de luto para a música angolana”. Luaty Beirão, que enquanto rapper se apresenta sob o nome Ikonoklasta, escreveu uma mensagem dirigida a Waldemar Bastos: “Obrigado por partilhares um pouco da tua luz, apesar de tanto terem feito para apagá-la. Descansa em paz mô kota, em guerra está quem por cá permanece”.

Também no Twitter, Kalaf agradeceu a Waldemar Bastos por o ensinar “a amar angolanidade” através dos seus versos e melodias.

Paulo Flores expressou no Facebook “gratidão pelo exemplo, pela musicalidade, pela espiritualidade e pelas palavras” do autor de Velha Chica. A cantora Pérola defendeu que “o grande” Waldemar Bastos “jamais será esquecido”.

No Instagram, C4Pedro disse que Angola se tornou “um país extremamente pobre” com a morte de Waldemar Bastos, cuja voz considera “uma das sete maravilhas do universo”. “Obrigado por teres sido fiel a ti mesmo e parabéns pela verticalidade que te caracterizou durante esta rica trajetória”, escreveu C4Pedro, lembrando que o tema Filho do Mato é a prova da “eterna admiração” que sente por Waldemar Bastos.

Anselmo Ralph recordou “mais uma grande voz angolana que se cala”, mas cuja “grande arte fica, com uma voz e timbre muito peculiar e sentimental”. “Tive a honra de orgulho de crescer a ouvir esta grande voz. Muito obrigado pelo seu contributo grande mestre”, escreveu.