Em dezembro de 2016, corria a última temporada de um dos programas que mais conversa deu ao Brasil. Roberto Carlos estava preocupado: estava prestes a perder o talk show que era a sua companhia de todas as madrugadas. Queria o “beijo do gordo”. Ligou para a produção de “O Programa do Jô”, que 16 anos antes se havia estreado na Globo, e disse que queria ser o entrevistado. Foi uma surpresa para todos: o músico tende a ser reservado — não lhe agrada o papel de figura pública.

Foi um episódio emotivo. Roberto Carlos e Jô Soares, amigos de longa data e dois ícones brasileiros (um da música e outro de tantas coisas) partilharam neste episódio histórias intimas, do antigamente. À frente de todos, riram e choraram. O momento da atuação do cantor foi particularmente emotiva. “Era pra eu cantar essa música em pé, mas não faz sentido cantar longe de você. Essa música eu fiz pro Erasmo Carlos, mas quando posso cantá-la a amigos queridos, alguns parentes, irmão…”, começou Roberto Carlos. “Você, meu amigo de fé, meu irmão camarada”, continuou. Nesse momento, Jô Soares, que morreu esta sexta-feira, 5 de agosto, em São Paulo, no Brasil, não conseguiu conter as lágrimas e chorou.

Filho único de uma família rica, que haveria mais tarde de perder a fortuna (o pai era operador da bolsa de valores e a mãe era uma dona de casa), José Eugênio Soares nasceu a 16 de janeiro de 1938, em São Paulo. Achou desde cedo que seria diplomata e deixou que a sua formação se fizesse a partir desta convicção: estudou no Colégio de São Bento do Rio de Janeiro, passou para o Colégio São José de Petrópolis, e ainda foi aluno do Lycée Jaccard, em Lausane, na Suíça. Poliglota, começou desde cedo a manifestar o jeito para as línguas — falava seis idiomas, português, inglês, francês, espanhol, italiano, dominando mais ou menos o alemão. Foi o médico, autor e dramaturgo Silveira Sampaio, que lhe trocou as voltas: disse-lhe que a sua vida só poderia seguir pelo mundo do entretenimento. Jô Soares passa a fazer parte de grupos teatrais, dando os primeiros passos na televisão no programa “TV Mistério”, da TV Rio.

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O homem que imortalizou a frase “o beijo do gordo”, que encerrava todos os seus programas, conseguia brincar e falar a sério ao mesmo tempo. O feito é visível nas mais de 15 mil entrevistas que conduziu no decorrer da carreira de seis décadas. “Ó Zé, você acha que essa certa passividade e certa bonomia que a gente [brasileiros] tem de encarar as coisas é um pouco devido à nossa ascendência portuguesa?”, perguntou a José Saramago em “Jô Soares Onze e Meia”, o seu primeiro talk show a solo, transmitido de 1988 a 1999, na SBT. “Imagina… nós agora é que temos culpa!”, respondeu o escritor e prémio Nobel português. “Vamos lá ver. Vocês estão cheios de japoneses, estão cheios de alemães, estão cheios de italianos, estão cheios de tudo o quanto é cheio do mundo, e nós é que temos a culpa de tudo?”, continuou. A resposta — “muito bem respondida”, descreveu Jô Soares — arrancou gargalhadas à plateia.

Esta foi uma das conversas que “o gordo” mais famoso do Brasil teve com Saramago. A outra seria na Globo, em “O Programa do Jô” — aquele onde marcaram presença muitas outras figuras portuguesas, como Maria de Madeiros, Joaquim de Almeida ou Mariza.

O “Jô Onze e Meia”, da SBT, e “O Programa do Jô”, da Globo, foram os talk-shows mais importantes da carreira de Jô Soares, aqueles a que dedicou 27 anos da sua vida (o primeiro foi transmitido durante 11 anos e o segundo ao longo de 16). Mas Jô Soares não era só um apresentador — considerava-se, aliás, antes de tudo ator, e autor. Homem de várias facetas, são múltiplas as ocupações que se lhe podem atribuir. Foi humorista, apresentador, escritor, dramaturgo, ator e até músico ou comentador de jazz. Publicou dez livros, pintou quadros, escreveu artigos de jornal, assinou canções e passou pelo cinema. Em 1956 faz a sua estreia oficial na televisão, como parte do elenco Praça da Alegria, na época transmitida pela RecordTV, onde ao longo de dez anos interpretou a personagem Alemão. Em 1967, escreve ao lado de Carlos Alberto de Nóbrega e faz nascer “Família Trapo”, programa de humor cujo nome se inspirada na família von Trapp, do musical “A Música do Coração”. Aqui Jô Soares também é ator e interpreta o adorado mordomo Gordon.

“Faça Amor, Não Faça Guerra” estreou em 1971 e foi transmitido até até 1973.

Nos tempos áureos do Peace and Love, estreia “Faça Humor, Não Faça Guerra” — numa alusão ao dizer americano make love, not war — um programa de humor, de pendor político, não tivesse nascido no decorrer da Guerra Fria, da Guerra do Vietname e do movimento hippie. Manteve-se como ator deste programa na Rede Globo até 1973. Jô Soares foi sempre um grande defensor da democracia — “Não existe uma ditadura mais branda, porque morreu menos gente ou torturou-se menos. Quando você tira a liberdade de um cidadão, está tirando a liberdade de toda uma população”. E não teve medo de falar mesmo quando o Brasil vivia sob uma ditadura militar. O humor era a sua arma: em 1981 estreia o seu primeiro programa a solo “Viva o Gordo”, que vem a transformar-se em “Viva o Gordo, Abaixo o Regime”, título que é uma alusão ao golpe militar de 1964, que depôs o presidente João Goulart e deu inicio à ditadura militar brasileira que durou até 1985. E, claro, ao seu peso, um tema recorrente na vida e obra.

Guerra entre canais e as entrevistas mais famosas

O homem que deu vida a mais de 200 personagens, cresceu com a TV Globo, onde atuou em alguns dos programas mais importantes do seu início de carreira — “Não Faça Humor, Faça Guerra”, “Satiricom”, 1973, “Planeta dos Homens”, 1982 e “Viva o Gordo”. Em 1982 muda-se para a SBT, que lhe dá a oportunidade de realizar o seu grande sonho: ter um programa de entrevistas, inspirado no formato americano, ao estilo de Jay Leno ou Conan O’Brian, projeto de cuja viabilidade a Globo duvidara. No novo canal mantém o “Viva o Gordo” — agora chamado “Veja o Gordo” — e vê nascer o “Jô Soares Onze e Meia”, transmitido durante mais de uma década.

O programa “Viva o Gordo” foi o último na rede Globo antes de o ator se mudar para a SBT

A saída de Jô Soares da Globo gerou alguma controvérsia. Lembra o jornal Folha de São Paulo que se travou uma espécie de guerra de audiências. A estação televisiva chegou mesmo a proibir os anúncios dos espetáculos que o ator, naquele altura já na concorrência, tinha em cartaz, retirando também todos os anúncios que protagonizava. De acordo com o polémico discurso que Jô Soares preferiu em 1988, a propósito de um prémio Troféu de Imprensa, esta seria prática comum daquela estação televisiva.

Um dia antes de subir ao palco para receber a distinção o ator e apresentador acusou, num artigo publicado no Jornal Brasil, a Globo de manter uma “lista negra”, com artistas proibidos — fazendo o paralelo com a situação vivida em 1947 nos Estados Unidos, em que Hollywood rejeitava os artistas suspeitos de ligação com o regime comunista. No momento em que subiu ao palco, pediu para ler trechos do seu artigo.

“Em 1947, os grandes produtores de Hollywood se reuniram no hotel Waldorf Astoria, em Nova York, e resolveram que artistas com tendências políticas em desacordo com seu ideário não trabalhariam mais em filmes. Surgia a lista negra e a consequente caça às bruxas”, escreveu. Com impecável senso de oportunidade, a TV Globo escolheu exatamente o momento da Constituinte no Brasil para inaugurar sua lista negra. Quem sair da emissora sem ter sido mandado embora corre o risco de não poder mais trabalhar em comerciais, sob a ameaça de que estes não serão lá veiculados. Como a rede detém quase o monopólio do mercado, os anunciantes não ousam nem pensar em artistas que possam desagradá-la.”

Foi só no ano de 2000 que Jô Soares regressou à Globo, para estrear o seu segundo grande talk show, o “Programa do Jô”. Entre políticos, músicos, atores, escritores, Jô Soares conduziu milhares de entrevistas, muitas delas recordadas ao dia de hoje. É o caso da conversa com o Raul Seixas, acompanhado pelo seu parceiro Marcelo Nova, para a SBT. Na conversa, o músico, visivelmente debilitado, partilhou várias histórias da sua carreira. Esta veio a tornar-se na última entrevista dada pela incontornável figura do rock brasileiro, que acabaria por morrer no mesmo ano, vítima de uma paragem cardíaca, em 1989. No mesmo ano, entrevistou Fernando Collor de Melo, na época candidato à presidência do Brasil. Foi, ao contrário da anterior, uma entrevista descrita como “pouco amigável”, marcada pelo momento em que Jô Soares repreende o político por estar a fixar as câmaras e não o apresentador, enquanto conversam.

No ano anterior, era Cazuza quem se sentava no cadeirão frente ao apresentador. Nesta época, já estaria infetado pelo VIH, mas sem saber. Com Jô Soares e sem nunca largar o cirgarro, conversou, essencialmente, sobre política (expressando admiração pelo Partido Trabalhista) e música. Em 1995, entrevistou as Mamonas Assassinas, um mês antes da banda lançar o álbum que viria a marcar uma geração.

Foram muitas conversas. Umas mais emotivas, outras mais cómicas e houve também as controversas. É o caso da conversa que teve lugar em 2015 na residência oficial da Presidência da República, em Brasília, onde entrevistou a então Chefe de Estado, Dilma Rousseff, em maio de 2015, quando já se vivia uma crise política — um ano depois, Dilva viria a passar pelo agitado impeachment. O apresentador foi acusado de manter uma “postura” branda com a então presidente, a quem não terá dirigido nenhuma questão relacionada com os escândalos em que estaria envolvida. O programa foi naquela noite líder de audiências

José Avillez, Ricardo Araújo, Filomena Cautela, Ana Moura, Valter Hugo Mãe ou Alexandra Lucas Coelho foram alguns dos portugueses a marcar presença no “Programa do Jô”. Um conjunto de entrevistas para recordar.

A luta contra o excesso de peso

“Beijo do Gordo”, “Viva o Gordo”, “Veja o Gordo”. A condição física de Jô Soares é parte intrínseca do seu humor. É o gordo mais famoso do Brasil, e gostava de chamar as coisas pelos nomes — os termos gordinho ou forte, considerava, eram pejorativos. Gostava de fast food — com gosto particular por sanduíches — assumindo também que era frequente assaltar o frigorífico durante a noite para comer feijão gelado com azeite

Viveu a vida “mais gordo do que magro”. A sua forma física também foi campo de batalha. Com 1,70 de altura, chegou a pesar 160 quilos. Foram várias as perdas e ganhos de peso, foram incontáveis as dietas a que se submeteu. Um artigo de 1994 dá conta de que o apresentador teria perdido 33 quilos a comer fruta durante 22 dias. “O apresentador Jô Soares está há uma semana usando um mesmo ‘blazer‘ na televisão. Nenhum outro terno se ajusta mais em seu corpo”, pode ler-se na notícia dos anos 90. Estava com 148 quilos e, depois de um acidente de mota em que  partiu os dois braços naquele ano, passou para 115. “Gordo quando emagrece, ninguém repara”, comentou na altura no programa “Jô Soares Onze e Meia”. “Antes estava enorme, hoje estou gordo.”

Uma das frases mais emblemáticas de Jô Soares é “beijo do gordo”, com a qual se despedia nos seus talk-shows.

Já nesta década, Jô Soares era conhecido pelas suas dietas — era “diplomado” em regimes para emagrecer. O seu primeiro regime, relatava a mesma publicação, aconteceu aos nove anos. Apesar de durante toda a vida ter brincado com o seu peso, a batalha contra a obesidade foi uma realidade constante. “A luta do gordo é constante, porque gordo engorda, essa é a grande tragédia.”, contou em 2013, depois de ter baixado dos 127 quilos para os 99. “Vario entre 99 kg e 105 kg, mas não tenho problemas de saúde devido ao excesso de peso. Não tenho colesterol alto, por exemplo.”

Antes, no início da década de 70, já tinha perdido muito. Chegou aos 80 quilos — tendo depois, ao longo dos anos, recuperado. Nesta altura comentou: “Fui o único gordo do mundo que emagreceu e não teve estímulo. Geralmente, o sujeito emagrece e todo mundo fala ‘Emagreceu, está ótimo!’. Comigo era o contrário: ‘Você é tão melhor gordo!’”.

As primeiras palavras, o filho e as mulheres

Foi uma vida feita de conversas. Não deixa por isso de ser curioso que as primeiras palavras só tenham surgido tardiamente. “Até os 2 anos e pouco eu não falava. Meu avô dizia à minha mãe: ‘Que pena, Mercedes, você teve um filho aos 40 anos de idade e saiu um me­nino mudo’ [risadas]. Eu ria muito, mas não falava”, contou em entrevista à edição Playboy, em 1986. Foi uma espécie de prenúncio — Jô Soares estreou-se na fala com uma piada: “Um dia, mamãe estava sentada len­do ao lado do berço e eu brincava com latas de talco vazias, que eram a coisa de que eu mais gostava. Eu pegava as latas de talco e jo­gava no chão. Ela punha no berço de novo e dizia: “Menino, não faz mais isso”. Aí eu pe­gava e jogava de novo. Então, lá pela terceira ou quarta vez, ela disse: “Não faz mais isso que a mamãe vai ficar zangada com você, vai fa­zer pam-pam em você”. Ela se virou, e eu jo­guei de novo. Ela ficou doida e, quando se vol­tou para mim, eu falei: ‘Caiu…'”.

Ainda sobre a sua infância, revela que quando era pequeno e vivia num anexo do Copacabana Palace, no Rio de Janeiro, gostava de vestir uma capa de super-herói e fingir que se iria atirar do telhado para a piscina. “Os turistas americanos grita­vam, apavorados, ‘Please, don’t do it“, revelou na mesma entrevista, a rir. Pode ter sido o primeiro indício de que a vida na diplomacia, seguiria afinal no universo do entretenimento.

Jô Soares publicou 10 livros — tendo um deles sido adaptado ao cinema.

A mãe era Mercedes Leal Soares, que foi atropelada por um taxista. “Mamãe morreu atropelada, num dia de chuva terrível. O motorista do táxi não teve a menor culpa. Ela tinha 70 anos. O motorista socorreu minha mãe e levou para o hospital. Ele fez tudo certo. Só que ela teve uma fratura de base de crânio e não resistiu”, contou. Em 2015, o ator revelou que este condutor tinha ido à sua procura: “Dez anos depois, eu peguei um táxi no Santos Dumont e, quando cheguei em casa, o motorista falou: ‘Eu preciso dizer uma coisa para o senhor. Fui eu que atropelei sua mãe. E desde esse dia, isso já faz dez anos, eu não consigo mais dormir. Só vou conseguir dormir no dia que o senhor me disser que me perdoa.’ Respondi para ele: ‘Mas, meu filho, você está perdoado desde o dia que pegou a minha mãe, socorreu e ficou ao lado do meu pai até a minha mãe morrer. Você não teve culpa nenhuma. Eu te perdoo, você está mais que perdoado. Vai em paz.’. Ele chorava e eu chorei muito também. O perdão para mim é a coisa mais importante no cristianismo”

Há várias particularidades na vida de Jô Soares: era notívago, gostava de dormir até mais tarde, e sofria de Transtorno Obsessivo Compulsivo — em casa, fazia questão que os quadros nas paredes estivessem ligeiramente inclinados para a direita.

Além da sua carreira artística, Jô Soares também foi pai uma vez e marido duas. Segundo descreveu à Playboy na década de 80, era com ternura e orgulho que cuidava de Rafael, filho que teve com Therezinha Millet Austregésilo, com quem manteve uma relação entre 1959 e 1979. Diagnosticado com autismo desde muito novo, destacava-se em “Rafinha” a criatividade e destreza ao piano, instrumento em que interpretava Bach e Beethoven — foi também o compositor da música de abertura do programa “Viva o Gordo e Abaixo o Regime.” Morreu antes do pai, com 50 anos, devido a um cancro no cérebro.

O humorista manteve uma relação de dois anos com a atriz Cláudia Raia, que tinha então 17 anos.

Ainda que discreta, a vida amorosa de Jô Soares foi sendo tema de capas de revista ao longo da sua carreira — não tanto pela quantidade, mas mais pelas diferenças de idade. Depois de Therezinha, casou com a atriz Sílvia Bandeira, doze anos mais nova, com quem esteve durante três anos. Conheceram-se entre peças de teatro e programas de televisão. “Eu já tinha convidado a Sílvia para uma peça que eu estava dirigindo, “O Estranho Casal”, de Neil Simon, mas ela não fez. Anos de­pois, em 1980, eu a encontrei quando estava preparando um espetáculo chamado “Brasil, da Censura à Abertura” e a Sílvia me disse que, se eu voltasse a fazer um convite, ela aceita­ria. Ela foi assistir ao meu show Viva o Gordo e Abaixo o Regime e aí… Foi uma coisa assim, daquelas de paixão, foi uma coisa insegurá­vel, uma daquelas paixões que acontecem na sua vida e são irremediáveis.”

Iniciou no início da década de 80 uma relação com a atriz Cláudia Raia, com quem esteve dois anos. Com 30 anos a separá-los, a diferença de idade foi um problema — ela, que o descreve como o primeiro homem inteligente que conheceu, era menor de idade. “Ele disse que talvez não aguentasse, a gente tinha 30 anos de diferença. Eu só tinha 17 anos, até o filho dele era mais velho do que eu”. De acordo com a atriz, o apresentador terá salvado a sua vida, ao identificar uma pinta na sua perna direita: “Eu tinha uma pinta na perna direita que era um melanoma cancerígeno. Como ele já teve, percebeu. O doutor Dráuzio Varella foi quem tirou”.

Em 1987, namorou com a atriz Mika Lins, 28 anos mais nova, e em 1987 casou-se com a designer gráfica Flávia Junqueira Pedras, de quem se veio a separar em 1998. Foi ela que esta sexta-feira, 5 de agosto, confirmou a partida do apresentador nas redes sociais.