No primeiro desfile que apresentou na sua carreira, em setembro de 1992, 3 mil pessoas foram até ao Convento do Beato para ver o que se ia passar por lá. Era um mundo diferente, sem redes sociais ou smartphones, como faz questão de recordar, num país que não tinha qualquer cultura de moda. Aliás, Fátima Lopes vai mesmo mais longe: “ninguém percebia absolutamente nada de moda”, conta ao Observador. “Estava com muito medo, assustadíssima, num stress inimaginável. Mas correu muito bem.”
Prestes a celebrar 30 anos de carreira num evento que está marcado para as 21 horas deste sábado, 24 de setembro, e que vai encher o Pavilhão de Exposições do Instituto Superior de Agronomia, em Lisboa, a criadora reflete sobre a primeira vez que apresentou as suas criações ao público. Estava a aprender tudo “à sua custa”, sem experiência prévia, mas não houve meias medidas. O Convento do Beato ficou todo em blackout e foi decorado com seis pódios com jogos de luzes onde se puseram os manequins. Quando o espetáculo começou, havia modelos a entrar pela esquerda, pela direita, pelo fundo, cerca de 100 coordenados para homem e para mulher a desfilar na passerelle.
“Foi feito com o mínimo de recursos, de experiência e de conhecimento.” As peripécias foram muitas, desde perceber na véspera que a estrutura de pano que tapava os bastidores não tinha altura suficiente para os modelos saírem de cena — teve de ser tudo refeito — à própria iluminação dos pódios: em vez de iluminar os manequins por inteiro, iluminava só metade. “Houve muita gente que achou que era de propósito e que era muito moderno. Aquilo era tudo tão diferente que, até o que não correu bem, pensou-se que era normal”, recorda. Seria ingenuidade? “Sim, mas era bonito, porque não havia cultura de moda nenhuma. Há 30 anos, a realidade era outra em Portugal.”
Guia turística: o improvável primeiro emprego
Fátima Lopes nasceu na Madeira em 1965. Em criança, com 5 ou 6 anos, chorava porque não queria vestir as roupas que a mãe lhe comprava. “Eu sabia o que queria ser desde que nasci.” Só brincava se fosse ela a mandar: tinha de ser a chefe, a médica, a mãe, a professora. “E tinha uma vontade imensa de transformar tudo o que estava à minha volta. Lembro-me de pegar nas bonecas e de lhes cortar os cabelos e as roupas.” Não tinha ainda consciência de que queria ser criadora — “isso veio mais tarde” — mas a base já vinha de origem. “Eu acho que uma parte tem de nascer connosco. A outra parte é trabalho.”
Acabou por estudar turismo, foi guia e agente de viagens. “Naquela altura não havia Internet, não havia nada, portanto os agentes de viagens iam para todo o mundo a convite, para nos proporem hotéis e destinos.” O feitio de líder ajudou-a a planear os itinerários e a desenrascar-se em todo o lado, por vezes responsável por grupos com dezenas de pessoas. Mas também tinha “um dom para as línguas” que tornava tudo mais fácil — e que viria a revelar-se essencial quando deu o salto para a moda.
Passados 4 anos, fartou-se das viagens. “Aquilo já não tinha nada de novo. Viajar já não era novidade.” Largou o turismo em 1988 e mudou-se para Lisboa em busca do sonho. Em 1990, abriu uma loja de roupa na Avenida de Roma. Foi a primeira pedra do castelo.
Versus, a loja multimarcas com roupa de todo o mundo
“Tinha consciência de que não percebia nada de moda, por isso não ia lançar uma coleção”. A solução foi concentrar a paixão que tinha pela moda na Versus, uma loja onde vendia coisas que ia buscar a Milão, Londres e Paris: roupa, sapatos, acessórios, bijuterias, óculos, carteiras. Todos os meses estava dentro de um avião.
“Se fosse diferente e original, a Versus tinha e as pessoas já sabiam que era a loja da moda. Em Portugal, na altura, não havia nada. Era uma loucura. Eu chegava de viagem, enchia a loja e passadas duas semanas já não tinha quase nada.” Em simultâneo, Fátima desenhava os seus próprios modelitos e mandava fazer na costureira. “Usava roupas que eu desenhava. E a minha roupa começou a ser notada em Paris e em Londres. Quando lá ia perguntavam-me sempre onde é que comprava, de quem é que era.” Resolveu fazer um teste.
Quando regressou a Paris, em vez de comprar roupas feitas, comprou tecidos. Mandou fazer 20 modelos desenhados por si e pôs-los à venda na loja com uma etiqueta a dizer Versus, sem contar a ninguém que se tratavam de criações suas. O resultado? “Vendeu-se tudo na hora. Percebi que estava na altura de fazer aquilo com que sonhei a vida toda.”
A “Betty Boop dos anos 90” e a conquista de Paris
Com uma confiança renovada, organizou o tal desfile no Convento do Beato, há 30 anos, que marcou o nascimento de Fátima Lopes, a marca. Foi o início de tudo. “No dia seguinte, a imprensa chamava-me a ‘Betty Boop dos anos 90’, porque eu tinha vestido uma peça muito estranha, muito extravagante. Alguém me chamou isso e a partir daí pegou.” Recorda a experiência como “um sucesso incrível”, atrás do qual se seguiram três outros desfiles individuais até integrar a ModaLisboa, onde começou a apresentar em 1996. “E nunca mais parei”.
Entretanto, em Paris, inscreveu-se na feira comercial Prêt-à-Porter e foi posta na secção da indústria, que ficava no segundo piso, em vez de no espaço dedicado à moda. Quando os representantes viram as roupas extravagantes que levou para expor, foram pedir-lhe desculpa. “No meio da indústria, eu era uma extraterrestre. Eles [os franceses] não acreditavam que eu era portuguesa. A imagem que havia de Portugal era de um país atrasado. Perguntavam-me se havia mais portuguesas como eu”. Não só reconheceram o erro, como ficaram tão impressionados que a transferiram para o espaço Avant-Garde. “Eu sou testemunha da mudança que foi acontecendo na imagem do país lá fora, até chegar aos dias de hoje. Agora, todos os franceses querem vir para cá.”
Ainda na capital francesa, abriu uma loja no N.º 34 da Rue de Grenelle, que manteve durante sete anos. Era uma zona de nicho, de moda de autor, onde estavam instalados designers como o Claude Montana — do outro lado da rua —, Yojhi Yamamoto ou Yves Saint Laurent. O nome Fátima Lopes começava a ser cada vez mais conhecido lá fora, mas ainda faltava a Semana da Moda de Paris.
“Um dia recebo a visita de um francês que veio ver o meu desfile na ModaLisboa. Disse-me: ‘Eu sou o Mark Ronzier, sou teu fã e vim de propósito de Paris porque quero ser teu assessor de imprensa’.” Começava aí uma amizade de várias décadas. “Ele na altura dizia-me que havia lugar para mim na Fashion Week de Paris. E eu comecei a acreditar que sim.” Em março de 1999, acontece o primeiro desfile Fátima Lopes na cidade francesa. “A partir daí, nunca parei. Foram 43 desfiles em 21 anos consecutivos.”
Paris é, nas suas palavras, a “Liga dos Campeões”. A fasquia subiu. A cada coleção, a criadora queria ser “mais original” e fazer “coisas muito mais irreverentes” para conseguir “manter o seu lugar”. “Foi por isso que fizemos o desfile do biquíni de diamantes.”
O biquíni mais caro do mundo
É assumido que foi uma jogada de marketing para poder “competir com os maiores do mundo”. Corria o ano de 2000 quando a criadora de moda portuguesa pisou a passerelle com um biquíni feito em ouro e diamantes, avaliado na altura em um milhão de dólares, o mais caro de todo o mundo. A ideia do biquíni fora sua, mas foi o assessor de imprensa quem achou que devia ser Fátima a usá-lo. “És a única no mundo que o pode fazer. Desfilar como manequim no teu próprio desfile. Nunca foi feito”, disse-lhe. “Eu respondi ‘ai não, que horror, que pretensioso, nunca vou fazer isso’.”
Passados 6 meses, Ronzier voltou a tocar no tema e a estilista respondeu na brincadeira “só se fosse vestida de diamantes.” E assim foi. “A brincadeira tornou-se séria porque era uma coleção de verão e de repente tudo fazia sentido, nunca tinha sido feito no mundo“, continua. Ligaram a um amigo em Antuérpia que tinha uma empresa de lapidação de diamantes e que lhes respondeu “consider it done” (“considera-o feito”, em português). Juntaram-se a outro parceiro belga e o biquíni materializou-se. Durante muitos anos, as duas empresas continuaram a patrocinar as suas apresentações em Paris. “Foi uma jogada de marketing para todos.”
Continua a ser o seu momento mais icónico no imaginário coletivo. “Hoje em dia, seria viral em segundos através das redes sociais. Naquela altura, não era assim. Isto foi há 22 anos, não era fácil fazer chegar uma notícia lá fora, mas o biquíni foi notícia mundial e foi incrível. Era o meu terceiro desfile em Paris e lançou a marca Fátima Lopes para o mundo.”
“Coragem é uma coisa que nunca me faltou”
Ser Fátima Lopes no Portugal dos anos 90 é ser um alvo fácil para a “inveja ou ignorância”. A par com todos os sucessos vieram também as críticas, os dedos que apontavam, os narizes empinados e os olhares desconfiados. Era preciso coragem para se ser a pessoa que não encaixava nos padrões? “Ora sim. E, na verdade, coragem é uma coisa que nunca me faltou. As críticas nunca me deitaram abaixo, muito pelo contrário. Respondia: ‘ai é? Então espera para ver a próxima, que vai ser ainda pior’.”
O país não estava preparado? “O que vinha de fora é que era bom. Naquela altura, quem não era igual aos outros não era tendência. Curiosamente, o que me abriu portas em Paris foi precisamente a diferença. Portugal estava habituado a copiar tudo o que se fazia lá fora. Eu nunca copiei ninguém, eu era eu. E só quando Paris me respeitou é que Portugal talvez tenha percebido que eu tinha o meu espaço e o meu lugar por ser diferente.”
Ao início, recorda principalmente a insegurança, o amadorismo, a descoberta de ser alguém que queria rumar contra a maré. Com o salto para Paris, em 1999, e a atenção da imprensa mundial, tudo mudou para sempre. “Até eu mudei”. Os desfiles tornaram-se a coisa mais importante, passava meses dedicada a eles. “Casei com a profissão, porque nada era mais importante do que as minhas coleções. Foi assumido desde sempre, mas não conheço muita gente que diga isto em relação ao que faz. Fui casada várias vezes e nunca tive filhos porque não teria tempo para eles.”
30 anos de Fátima Lopes
Hoje, já não precisa de provar nada a ninguém. Na antecipação do desfile que marca 30 anos de carreira, 1992 é uma realidade longínqua. “Conquistei o meu espaço e um estatuto que me dá segurança e a possibilidade de viver a minha profissão de uma forma muito mais tranquila.” Organizar um desfile tornou-se “um prazer”. “Tem de ser perfeito porque eu tenho de organizar tudo de A a Z, mas é um prazer. Estou a preparar uma celebração que é para os meus amigos, os meus clientes, o meu público, milhares de pessoas.”
As últimas confirmações apontavam para cerca de 1500 a assistir no Pavilhão de Exposições do Instituto Superior de Agronomia, onde vai apresentar uma coleção “mesmo muito grande, 100 por cento inspirada na história da marca.” Vai ser aquilo que descreve como um “desfile espetáculo“, pouco virado para o comercial. “Não foi um desfile pensado para vender roupa. No passado, muitas pessoas não entendiam algumas das peças que eu punha em passerelle, não percebiam que era espetáculo. Eu não estava a vender roupa. Havia peças ali que nunca foram para vender.”
Serão “dezenas” de manequins em passerelle, vários deles que fizeram parte da história da marca. Mas não adianta quais: “Tem de haver surpresas”. Além da nova coleção — que será posta à venda no dia seguinte em todos os pontos de venda Fátima Lopes —, estarão em exposição 30 modelos icónicos que marcaram as três décadas da marca, um por cada ano. “Tenho um museu cá em casa e escolhê-los não é fácil”, conta a poucos dias do desfile, ainda sem ter feito a seleção final.
“A Fátima Lopes do passado era muita pele e isso vai haver no desfile, esse lado de mais sensualidade, mais moda espetáculo, que foi tão representativa no início, nas primeiras duas décadas.” Como é que as coisas mudaram? “Obviamente houve uma evolução natural. Há uma diferença entre o início e agora. A única coisa que se mantém é que sou eu a desenhar, a criar. Todos os modelos são 100 por cento o meu ADN. Fui-me inspirar nos anos dessa irreverência que era tão característica e que fez correr tanta tinta ao longo dos anos. Isso estará lá de uma forma atual.”