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O estudo de Camões deve tanto a grandes livros como a pequenos artigos de erudição académica, que vão pouco a pouco aprofundando a obra de um poeta com tanto por onde pegar. Decidimos – exceção feita ao livro de Storck, que é quase fundador dos estudos biográficos sobre Camões – ater esta selecção a camonistas portugueses e brasileiros.
Isto deixa de fora alguns dos maiores contributos para o estudo de Camões, como os de Roger Bismut, Georges Le Gentil ou Robert Francis Burton. Decidimos ainda escolher apenas livros, não artigos, nem edições críticas da lírica ou d’Os Lusíadas (com a exceção inevitável das Obras de Luiz de Camões, pelo Visconde de Juromenha). Isto impede que entrem nesta seleção alguns insignes camonistas que dispersaram a sua produção por artigos ainda não reunidos ou que concentraram o seu trabalho na edição crítica das obras de Camões: é o caso de Álvaro Júlio da Costa Pimpão, Epifânio Dias ou Aníbal Pinto de Castro (apesar de os artigos deste terem sido posteriormente reunidos em Páginas de um honesto estudo camoniano).
De resto, também aqui limitámos a escolha a um livro por autor e evitámos, com exceção do dicionário de Camões, as obras coletivas.
Vida e Obra de Luís de Camões
Wilhelm Storck
Com o renovar dos Estudos Camonianos no século XIX, impunha-se uma análise das hipóteses biográficas levantadas até então (por Pedro Mariz, Faria e Sousa, Manuel Correia, entre outros) e uma comparação, por um lado, com as novas informações descobertas pelo Visconde de Juromenha e, por outro, com a reformulação do cânone da lírica. Isto é, dado que muitas das hipóteses sobre a vida de Camões vêm de leituras biografistas da lírica, a evolução do seu cânone — daquilo que é ou não considerado de Camões — determina necessariamente a sua leitura biográfica.
A biografia escrita por Storck – que em português é enriquecida pela tradução e notas de Carolina Michaelis – é, assim, das mais importantes que se escreveram sobre o poeta. Storck contesta a hipótese do nascimento de Camões em Lisboa e defende a hipótese de Coimbra.
A grande âncora para a compreensão que Storck tem dos primeiros anos de Camões é a figura do seu tio, D. Bento de Camões, cancelário da Universidade de Coimbra. Seria sob o patrocínio deste tio que Camões teria estudado, antes de passar ao serviço dos condes de Linhares, serviço esse que explicaria o sustento de Camões nos anos anteriores à partida para a Índia.
Esta relação com os Condes de Linhares é uma das mais importantes hipóteses levantadas por Storck, até porque esclareceria um enigma que atravessa a lírica e que de outra forma seria difícil de compreender: a presença de D. António de Noronha, um jovem fidalgo morto em Ceuta, e vários anos mais novo do que Camões, em vários poemas.
Fontes d’Os Lusíadas
José Maria Rodrigues
De onde vem a erudição de Camões? O conhecimento das relações mitológicas e da história de Portugal? O que é que organizou o seu planeamento histórico, aquela sequência de batalhas e episódios que vemos n’Os Lusíadas, ou mesmo a escolha dos episódios amorosos? Que crónicas leu, que clássicos conheceu, teria conhecimento de outras ocorrências da palavra Adamastor, inspirou-se em algum livro para criar o Velho do Restelo?
O mapa que José Maria Rodrigues traça permite conhecer com absoluta certeza várias das leituras de Camões. Não só nas fontes latinas e italianas, mas também nas portuguesas. Nunes de Leão, André de Resende, numa vastidão de autores que, mesmo quando não permitem afiançar a leitura de Camões — porque diz respeito a pequenos vocábulos, ou a períodos ou ideias mais curtos — ajudam a perceber o ambiente intelectual da época.
É certo que, como mostrou Américo Costa Ramalho, algumas das ligações propostas por Rodrigues são hoje questionáveis — com a inspiração do Adamastor à cabeça — e, outras, o próprio José Maria Rodrigues foi corrigindo ao longo da obra. No entanto, apontar estas imprecisões é mais ou menos equivalente a apontar os erros de Gibbon a respeito do Império Romano: a obra é de tal maneira colossal, o salto no conhecimento das leituras de Camões e da sua inspiração tão óbvios, que estes erros ou interpretações abusivas são quase insignificantes.
Ensaio sobre os latinismos dos Lusíadas
Carlos Eugénio Corrêa da Silva (Paço d’Arcos)
A grande demonstração do alargamento operado por Camões na nossa língua foi feita, na sua tese de licenciatura, por um jovem de vinte e poucos anos, Carlos Eugénio Paço d’Arcos (irmão dos escritores Anrique e Joaquim).
O estudo dos latinismos nos Lusíadas – com a própria palavra “Lusíadas” à cabeça – obedece a dois princípios. Em primeiro lugar, o autor recolhe quase tudo aquilo a que se pode chamar Latinismo na obra. Para alguns casos traça uma pequena história da palavra na nossa língua, mas o que resulta evidente do estudo de Paço d’Arcos é a absoluta novidade de muitos dos usos de Camões.
O estudo não se fica, no entanto, pela introdução de novos vocábulos. A demonstração de que Camões trouxe para a própria sintaxe uma série de elementos do latim mostra como conseguiu fazer do Português uma língua mais segura, coerente e elástica. Paço d’Arcos recolhe ainda as reflexões que, dentro d’Os Lusíadas, são dedicadas à língua, naquilo que poderia consistir numa espécie de introdução à ideia de um “Camões linguista”.
A Estrutura de Os Lusíadas e outros estudos camonianos e da poesia peninsular do século XVI
Jorge de Sena
Jorge de Sena é um camonista complexo. Erudito, sim, mas de uma erudição precipitada e muito parcelar. Intuitivo e original (como a sua insistência no “maneirismo” de Camões ilustra), atento aos métodos analíticos modernos, mas algo vagabundo e até incapaz de perceber a diferença entre as suas hipóteses realmente úteis e as estapafúrdias.
Este livro — uma coletânea de ensaios em que o principal é, como seria de esperar, o que dá o título à obra — oferece um exemplo sintomático do valor de Jorge de Sena como camonista. Parte de uma ideia interessante: a tentativa de aplicar um método estruturalista à leitura e interpretação d’Os Lusíadas e, até, de estudar a possibilidade de extrair conclusões de uma análise “quantitativa” da obra: do número de estrofes de cada Canto, do número de ocorrências de certas palavras, etc. No entanto, feita esta divisão, a tentativa de extrair conclusões e significados herméticos de contas arbitrárias é evidentemente apressada.
Ainda assim, num ensaio que parte de premissas válidas mas que estão claramente mal aplicadas, Jorge de Sena é capaz de nos dar uns lampejos interpretativos de grande lucidez. A sua tentativa de associar a genealogia de Camões aos grandes heróis d’Os Lusíadas — mesmo que a genealogia seja muito insegura — enquadra Camões numa mentalidade muito própria da época e que oferece uma chave de leitura muito interessante para o estudo d’Os Lusíadas.
A Expressão do poder em Luís de Camões
Martim de Albuquerque
Entre as leituras biográficas de Camões e aquelas que o procuram inserir num contexto literário, esta obra de Martim de Albuquerque é, a par do livro aqui mencionado de Borges de Macedo, um dos estudos mais importantes sobre o autor noutro âmbito: o da política, na sua articulação com a História.
Isto é particularmente importante porquanto os Lusíadas não são, obviamente, apenas “literários”, pelo que o estudo da ideia político-histórica que lhes preside é, no fundo, o estudo daquilo que Camões queria realmente dizer. O estudo do poder, de uma ideia de “soberania” n’Os Lusíadas, numa obra que, pela glorificação de um povo, tem também no seu cerne uma ideia tácita sobre a superioridade, sobre o poder, é assim determinante para a compreensão dos Lusíadas.
O livro de Martim de Albuquerque tem também algumas contribuições importantes para outras áreas dos estudos camonianos (quer para a análise do cânone da lírica, quer para a genealogia e condição social de Camões) mas o ensaio principal, aquele em que são exploradas as noções de governo ou nação, é um importantíssimo contributo para a compreensão da mentalidade política de quinhentos.
Flora dos Lusíadas
Conde de Ficalho
O extraordinário conhecimento de Camões e a sua veia renascentista também se vê pela quantidade de livros que aproveitam Os Lusíadas como fonte para o estudo dos seus campos. Há livros sobre medicina, as armas, entre uma infindável quantidade de bibliografia.
Claro que estes livros podem não ser relevantes para a compreensão de Camões e representarem apenas estudos de maior ou menor valor para as áreas visadas; com o livro do Conde de Ficalho, porém, o caso é diferente, até porque permite analisar a relação de Camões com a paisagem.
Como nota o próprio conde de Ficalho, Camões, como de resto qualquer grande artista do renascimento, não é um paisagista. Mesmo a sua floresta da Ilha dos Amores é caracterizada pelas ninfas, mais do que pelas plantas. Há uma grande variedade de flora n’Os Lusíadas, sim, mas uma flora útil.
A flora que aparece é aquela que produz drogas, que é relevante para o comércio. A consciência disto permite-nos datar de outras épocas a consciência estética da natureza e, com isso, perceber também um pouco melhor o quadro formal em que Camões escreveu Os Lusíadas. Este é um quadro em que a paisagem é sobretudo funcional e em que, mais do que a Natureza — e natureza aqui na sua aceção como estado natural, de origem, primitivo — é valorizada a sua superação. Camões olha para a técnica, para a Descoberta, para a ciência, também como patrimónios da gesta épica portuguesa e é o seu significado moral, enquanto parte do processo de Civilização, de aperfeiçoamento do Homem caído, que as torna louváveis, esteticamente atrativas.
A flora dos Lusíadas não é, assim, útil apenas como catálogo botânico: dá-nos uma pista para a compreensão das relações entre a machina mundi e o Homem, e entre a moral e a beleza tal como Camões os compreenderia.
Censura das Lusíadas
José Agostinho de Macedo
O livro em questão pode parecer bizarro e tem, de facto, uma história curiosa. O truculento Padre José Agostinho de Macedo decidiu, a certa altura, escrever também ele o seu poema sobre a viagem de Gama, poema esse a que chamou O Oriente. Ora, José Agostinho de Macedo, dado o seu feitio, tinha já uma notável coleção de inimigos que aproveitaram a ocasião para acusar o padre de querer “emendar” Os Lusíadas e de desmerecer o grande épico.
José Agostinho, não contente com defender a sua obra, julgou por bem mostrar que, embora não quisesse desmerecer Os Lusíadas, o épico de Camões não era um livro sagrado a que se não pudessem apontar falhas. Daí nasceu a Censura das Lusíadas, provavelmente aquele que é o mais sistemático e exaustivo comentário crítico da obra de Camões.
Ora, a tradição anti-camoniana também tem o seu lugar na vida póstuma do poeta. A julgar pelo próprio, a animadversão contra si terá começado ainda em vida. Alguns estudiosos têm procurado perceber se, de facto, haveria algum tipo de “inimizade” literária entre Camões e os seus contemporâneos — Carolina Michaelis interpreta um passo em que Andrade Caminha mofa da “fúria” como dirigida ao autor dos Lusíadas e da “fúria sonorosa” –, mas mesmo depois de Camões estar ultra-consagrado é interessante perceber quais as maiores falhas que se apontam ao poeta.
A acusação maior de José Agostinho de Macedo, como, aliás, o único defeito que lhe aponta Ezra Pound num ensaio sobre Camões, é a profusão de divindades latinas difíceis de seguir e mais difíceis ainda de harmonizar com o mundo Cristão do poema. No entanto, a sua análise atravessa detidamente todos os cantos, e em todos encontra defeitos que, se nem sempre nos parecem reais, pelo menos tornam a análise de José Agostinho de Macedo muito diferente de todas as outras.
Estudos Camonianos
Carolina Michaelis
A obra camoniana de Carolina Michaelis está um pouco dispersa. Há, em primeiro lugar, a sua tradução da Vida e Obra de Luís de Camões, de Storck, em que as notas e correções da tradutora fazem dela uma verdadeira coautora. Tem, depois, a edição, com índices e notas, dos Cancioneiros de Fernandes Tomás e do Padre Pedro Ribeiro (fontes essenciais da lírica). O terceiro volume dos seus Dispersos é, também ele, dedicado aos Estudos Camonianos.
Neste volume, estão reunidos doze textos que se dedicam sobretudo à análise dos Cancioneiros manuscritos de onde se retirou a maior parte da obra lírica de Camões. Ora, o problema de definição da lírica é o mais óbvio problema de filologia camoniana, já que os cancioneiros são muito pouco rigorosos, quer na transcrição, quer na atribuição da autoria de poemas. Assim, se quisermos saber o que é que na poesia de Camões pertence, de facto, a Camões, é essencial estudar os cancioneiros.
Já houve várias correntes de pensamento a respeito da lírica. Houve quem valorizasse mais os cancioneiros e quem valorizasse mais as obras impressas. A tendência moderna, contudo, passa mais por valorizar os cancioneiros. E, para isso, o estudo de Carolina Michaelis é, com certeza, o mais decisivo. Não só porque deu a conhecer as fontes principais, mas também porque inaugurou o estudo rigoroso do problema da Lírica.
Camões e o sentimento Nacional
Teófilo Braga
A História da Literatura de Teófilo Braga tem um volume inteiramente dedicado a Camões que poderia, apesar dos erros que todos os camonistas relevam, figurar nesta lista. Escolhemos o Camões e o sentimento Nacional por duas razões: em primeiro lugar, porque é uma obra importante não só para perceber Camões, mas também para o contexto histórico em que surgiu. Este trabalho de Teófilo Braga surge depois do centenário de Camões, altura gloriosa para os Estudos Camonianos, mas que também viu (e Teófilo Braga não é alheio a isso) surgir um aproveitamento político de Camões por parte dos Republicanos, que aparecem precisamente em 1880 como uma força organizada.
Além disso, porém, como este livro é posterior à História, emenda algumas das precipitações em que Teófilo é pródigo. Embora Teófilo Braga nunca abandone as suas ideias mais estapafúrdias sobre os amores de Camões — embora esta seja uma praga a que nem o Padre José Maria Rodrigues escapou — este livro, até por já haver outro da lavra do autor que coligia a informação mais básica, traz alguma novidade.
Teófilo Braga tenta, aqui, analisar Camões a partir de alguns dos instrumentos de análise mais em voga na época e que em Portugal tiveram poucos cultores. A mistura entre o positivismo e as teorias do clima ou das raças fazem do Camões de Teófilo um verdadeiro representante da nação — não apenas num sentido ideológico, mas também num sentido físico. Em Camões, estariam cruzados o “cosmopolitismo tão característico das raças semitas” e o “subjetivismo lírico”, “sequência étnica do génio galeziano”. O estudo de Os Lusíadas é assim, para Teófilo, também o estudo das confluências que redundam na nacionalidade portuguesa. A tentativa de transformar as expressões poéticas de Camões num resultado de um produto “físico” é, assim, um modo de olhar para o poeta que, apesar de datado, não deixa de ser interessante.
Estudos sobre a Arte d’Os Lusíadas
António José Saraiva
O livro do historiador maior da nossa literatura reúne alguns ensaios sobre a linguagem e o estilo de Os Lusíadas. O que é espantoso, no entanto, é o modo como António José Saraiva consegue, a partir dos usos que Camões faz dos tempos verbais ou da linguagem popular, penetrar no cerne do poema.
O primeiro ensaio, dedicado aos tempos verbais, exemplifica-o na perfeição: António José Saraiva mostra como Camões quase nunca usa o convencional pretérito imperfeito na sua narração. A ação está quase sempre no presente, numa tentativa de criar uma ação fora do tempo, reforçada pelo verbo “ver” com que Camões se dirige a D. Sebastião. Segundo Saraiva, Os Lusíadas estariam concebidos como uma esfera — a mesma que Tétis apresenta a Vasco da Gama — em que não haveria unidade lógica, mas sim uma simultaneidade das ações.
Particularmente estimulantes são, também, as últimas páginas do livro, numa subsecção chamada “Aspectos d’Os Lusíadas”, em que Saraiva procura desmontar alguns lugares-comuns associados à leitura d’Os Lusíadas. Mostra como a ausência de uma “descida aos infernos” afasta Camões da literatura épica tradicional, como a sua conceção da Espanha dificulta a ideia de um nacionalismo camoniano e como não se pode falar seriamente de um “épico da burguesia”.
Os Lusíadas Comentados
D. Marcos de S. Lourenço
O século XVII é rico em comentários monumentais a Os Lusíadas. Há os comentários aqui referidos de Faria e Sousa, o também importante comentário de Manuel Pires de Almeida, entre outros.
Devemos ao Centro Interuniversitário de Estudos Camoneanos e a Isabel Almeida a passagem a livro deste comentário manuscrito que faz, pelo menos desde o tempo do Visconde de Juromenha, parte das grandes referências camonianas. D. Marcos de S. Lourenço não acabou o comentário — o manuscrito que nos chegou diz apenas respeito aos três primeiros cantos. Ainda assim, estes três primeiros cantos enchem mais de quinhentas páginas, o que só por si demonstra o cuidado com que o padre crúzio estuda Os Lusíadas.
O comentário começa com uma pequena explicação histórica sobre o tipo de verso usado por Camões, evidencia alguns paralelos entre Os Lusíadas e a épica antiga e, antes de começar uma explicação do assunto de cada estância, que se transforma também num esclarecimento sobre os versos mais problemáticos, traduz ainda uma parte da Eneida, para ser usada como apoio e comparação com Os Lusíadas.
É um comentário muito escorado nos Cronistas da Índia e nos poetas Antigos, num esforço para mostrar, por um lado, a correção estilística de Camões e, por outro, a verdade histórica daquilo que é descrito.
Ensaios Camonianos
Afrânio Peixoto
O Brasil tem prestado um inestimável contributo aos estudos sobre Camões. Foi do Brasil que veio apoio para se criar a cadeira de Estudos Camonianos na Universidade de Lisboa, e do Brasil também que têm surgido alguns dos mais empenhados camonistas. Um deles foi, com certeza, Afrânio Peixoto, como nos mostram estes seus Ensaios Camonianos.
Nestes estudos, Afrânio Peixoto lança as bases, a partir da linguagem técnica usada por Camões no épico, para um estudo do conhecimento que o poeta teria da navegação e da arte militar; defende o uso feito por Camões dos deuses pagãos como necessário para mostrar a magnitude do feito cantado; tem, ainda, uma interessante análise sobre Camões como fonte de si próprio — isto é, sobre as passagens em que o Parnaso surge como fonte de Os Lusíadas — e uma muito arguta comparação entre as passagens de João de Barros em que este refere as críticas feitas no reino à empreitada da Índia e o discurso do Velho do Restelo: coisa tanto mais interessante, porque pode sugerir uma espécie de “discurso político” de Camões que poderia ser analisado com mais pormenor.
Os ensaios de Afrânio Peixoto, por muita informação que descubram, por muito pertinentes que se revelem, têm ainda um aspeto que nos parece mais relevante: é que o amor pela obra de Camões revela-se a cada passo. O fascínio de Afrânio Peixoto dota os textos de uma frescura e de uma alegria contagiantes.
Camões e a Divina Proporção
Vasco Graça Moura
Esta coletânea de ensaios sobre Camões é bastante rica. Embora não seja, do ponto de vista histórico, das mais relevantes (a informação histórica e filológica é claramente colhida nos grandes camonistas como Aguiar e Silva, Rodrigues ou Luciana Stegnano Picchio) tem uma certa argúcia para questões técnicas que enriquecem a leitura de Camões.
Isto é visível no ensaio que dá o nome à coletânea, “Camões e a Divina Proporção”, em que Graça Moura procura, como o nome do ensaio indica, provar o equilíbrio que existe na poesia de Camões, equilíbrio que se reflete tanto nas dimensões dos poemas como no modo como o poeta, nas suas descrições, vai partindo do geral para o particular ou vice-versa, mas é visível também noutros estudos. É particularmente bonito o ensaio sobre as redondilhas de Babel e Sião, que passa obviamente pela questão biográfica de procurar saber onde foram escritas as redondilhas, mas que se debruça especialmente sobre o texto, não só como exemplo do platonismo camoniano, mas também como recolha de lugares comuns poéticos, ultrapassados pelo génio com que Camões os glosa, e sobretudo como exemplo acabado de palinódia literária, conceito que é muito importante para interpretar a lírica de Camões.
Os Lusíadas e a História
Jorge Borges de Macedo
O livro de ensaios de Borges de Macedo sobre Camões e os Lusíadas, antes de mais, oferece a quem quer estudar Camões uma perspetiva experimentada sobre os problemas em que pode cair quem se dedica a tal empreitada.
É isso que nos dá, por exemplo, o ensaio sobre os livros impressos no século XVI, naquilo que poderia constituir um mapa do pensamento religioso, político e literário do tempo de Camões. Borges de Macedo prova, contudo, que a imprensa é ainda, no século XVI, um instrumento de poder, pelo que não permite a intromissão de grande heterodoxia ideológica — essa circula por manuscritos ou oralmente.
O ensaio fundamental, contudo, é o “História e doutrina do poder n’Os Lusíadas“. Aí, Borges de Macedo avança com várias ideias muito prometedoras. A primeira passa por frisar o apego de Camões à “História verdadeira”. A ideia de que cantar os Lusíadas implicava a fidelidade a uma verdade histórica significa, entre outras coisas, que aquilo que se está a cantar como o património de um povo não é uma série de qualidades abstratas ou uma qualquer substância particular: é ação, é a ideia de que é a História que constitui um povo.
Além disso, Borges de Macedo frisa a identidade entre aqueles que, por meio da Providência, asseguraram a independência de Portugal e aqueles que na Índia a mantêm. Por fim, explica que a ideia de legitimidade do poder deriva dessa mesma conceção histórica. Os feitos não são independentes e solitários, revelam um apoio da providência que só apoia aquilo que é justo. Daí que a história seja, também ela, uma forma de legitimar o poder, tornando-se assim peça central da ideia de Os Lusíadas.
A épica portuguesa no século XVI
Fidelino de Figueiredo
O título pode parecer enganador. Embora o livro trate, de facto, da épica portuguesa, poderia sugerir uma grande tradição dentro do género. Não é isso que acontece: o livro de Fidelino de Figueiredo mostra precisamente que, embora depois de Camões e à volta da Índia se constitua um corpus épico de alguma monta (com o Primeiro cerco de Diu ou Os Novíssimos do Homem à cabeça), a verdade é que no século XVI não se podem contar mais de quatro épicos portugueses (dois deles, diga-se, perdidos).
O que Fidelino de Figueiredo mostra é a integração de Camões e da sua épica num movimento europeu mais amplo, em que Tasso e Ariosto têm um lugar preferencial. É, até, possível integrar Os Lusíadas numa ideia de renovação do épico a partir dos grandes feitos da história Cristã: é isso que acontece com Jerusalém Libertada, de Tasso, que narra em metro heroico a primeira cruzada.
O livro de Fidelino de Figueiredo não é, com certeza, dos mais profundos. No entanto, é muito útil para decifrar as regras formais e informais da épica, contribuindo assim para a compreensão de Camões a partir das formas a que ele obedece.
O Sistema da Poesia Épica Quinhentista
Hélio S. Alves
Se Fidelino de Figueiredo foi importante como pioneiro do estudo da épica portuguesa, a verdade é que Hélio S. Alves a estudou com muito mais profundidade, rigor e conhecimento.
Hélio S. Alves mostra, neste livro, que nem toda a épica portuguesa posterior a Os Lusíadas é de base camoniana, que há uma figura igualmente importante na história portuguesa da épica que é Jerónimo Côrte Real, e que se pode dividir a épica em duas formas: uma iliádica, de que é exemplo O Segundo cerco de Diu, de Côrte Real, e outra odisseica, de que é exemplo Os Lusíadas.
Além do aspeto histórico, porém, há também no livro uma tese especialmente arrojada a respeito de Os Lusíadas. O autor aventa a hipótese de o ponto de vista de Camões ser o do Velho do Restelo, constituindo o louvor que perpassa todo o resto da epopeia um método corretivo. Isto é, Hélio S. Alves estuda os códigos de conduta da Europa quinhentista e a sua desformalização literária, aspeto em que é importante o primeiro capítulo da obra, dedicado à teorização da épica, a ponto de poder afirmar que um dos métodos de correção social preferenciais passava, precisamente, pelo louvor.
A ideia de que a compreensão de Os Lusíadas pode ter passado por uma alteração tão profunda tem, assim, um significado especialmente desconcertante.
Obras de Luiz de Camões
Visconde de Juromenha
Abrimos uma exceção à ideia de não considerar para este trabalho edições críticas de Camões, sejam elas de Os Lusíadas ou da Lírica, porque a importância do Visconde de Juromenha para os estudos camonianos é tal que não faria sentido oferecer uma panorâmica em que ele não constasse.
O estudo moderno de Camões começa com o Visconde de Juromenha. Foi ele que descobriu os documentos que provam a data da morte de Camões, por exemplo, e a sua assombrosa erudição permite que cada passo da obra do autor seja por ele comentado com um recurso extraordinário a ecos europeus dos versos ou a possíveis influências que chegariam ao poeta.
É certo que seria, muitas vezes, excessivamente crédulo nas informações que recolhia, e o seu cânone da lírica é hoje inaceitável pela quantidade de poemas seguramente apócrifos que Juromenha atribui a Camões. Ainda assim, Juromenha tem um conhecimento da época que permite contextualizar poemas de outro modo incompreensíveis (veja-se as tentativas de explicação para os “olhos gonçalves”) e algumas das informações recolhidas por ele a respeito do contexto em que foram esboçadas certas redondilhas são confirmadas, por exemplo, pelo manuscrito encontrado por Lund, com informações sobre a vida de Camões.
Lusíadas Comentados
Manuel de Faria e Sousa
O grande comentarista seiscentista de Camões é, sem sombra de dúvida, Manuel de Faria e Sousa. Além de ter pugnado como nenhum outro pela memória do poeta, tanto em Portugal como em Espanha, foi um dos primeiros biógrafos relevantes do poeta.
Embora seja pouco escrupuloso e tenha, nos seus comentários, versões apócrifas e acrescentos sem dúvida seus a Os Lusíadas, a verdade é que gizou um comentário monumental, num sinal claro da admiração que devotava ao épico camoniano, e trouxe ainda algumas das informações mais importantes sobre a vida do poeta. Embora se tenha discutido durante muito tempo a autenticidade dos documentos que afirmava ter consultado, a verdade é que estava em Faria e Sousa a razão para se estabelecer em 1524 o nascimento do poeta e em 1553 a sua partida para a Índia.
Como comentador, Faria e Sousa procura essencialmente encontrar a inspiração de Camões para os seus versos, naquilo que é um sintoma claro de um tempo menos preocupado com a noção de originalidade do que com a de tradição. Na ideia de que Os Lusíadas assentavam sobre grande erudição e conhecimento de variadíssimos autores estaria um dos sustentos para o seu elevado valor. Faria e Sousa dá-nos, assim, uma imagem de um Camões perfeitamente integrados nas literaturas italiana, espanhola e antiga, esforçando-se por mostrar a dimensão verdadeiramente universal do poeta.
A Astronomia dos Lusíadas
Luciano Pereira da Silva
Talvez o trabalho mais significativo para provar os conhecimentos científicos de Luís de Camões seja este A Astronomia dos Lusíadas, de Luciano Pereira da Silva. O autor, que dominava o conhecimento científico da época dos Descobrimentos, seleciona uma série de fenómenos tratados na literatura da época, para mostrar depois como eles estão fielmente descritos n’Os Lusíadas. É o caso do “triplo movimento do céu estrelado”, descrito no Tratado da Esfera de Pedro Nunes, e também nas estâncias 85, 86 e 87 do canto X d’Os Lusíadas.
Os conhecimentos de Camões, contudo, não se cingem nem a autores portugueses, nem àquilo que poderia ter observado na sua experiência em alto-mar. Camões usa também algum do vocabulário que fazia parte do património científico da época, como o do Zodíaco, e é clara a influência de Ptolomeu na descrição da máquina do mundo.
O estudo de Luciano Pereira da Silva contribui, assim, para reforçar a imagem de Os Lusíadas como grande enciclopédia do saber do seu tempo e para a demonstração da assombrosa erudição de Camões, tão versado em filosofia como na ciência mais vanguardista.
O canto na poesia épica e lírica de Camões
Maria Vitalina Leal de Matos
A tese de Maria Vitalina Leal de Matos, uma camonista de finíssimo olho, que nos deixou também uma das mais belas leituras do soneto “O dai em que eu nasci moura e pereça”, debruça-se sobre um tema de aparência formal. Maria Vitalina Leal de Matos, contudo, consegue mostrar-nos que a própria ideia de “canto” está no centro da poesia de Camões. Da dedicatória dos Lusíadas, esboçada em redor do modo de cantar, a sôbolos rios, em que a questão do silêncio ou do dever de cantar ocupam boa parte do poema, a verdade é que há em Camões uma clara noção de que o modo de dizer as coisas as afeta substancialmente.
É isso, então, que Maria Vitalina Leal de Matos estuda neste livro: o poder encantatório do canto, a “isotopia enunciativa” camoniana, isto é, o jogo, sempre presente, entre o sentido e o modo de enunciar, de tal modo que o discurso poético de Camões altera aquilo que está em causa nas suas próprias palavras. É sem dúvida, do ponto de vista formal e do discurso literário de Camões um dos textos ao mesmo tempo mais certeiros e mais inesperados que se escreveram sobre o poeta.
Camões
Almeida Garrett
Não é um estudo, mas é o mais simbólico testemunho da imagem romântica de Camões. Depois de um século XVIII de algum modo ingrato para o poeta, o romantismo reavivou o interesse no épico, embora o tenha feito com contornos muito peculiares.
O Camões romântico é um Camões pobre, maldito, um pária social que sacrificou tudo à sua arte e que escreveu a sua obra em condições altamente desfavoráveis. É também romântica a introdução de vários dos mitos que hoje associamos a Camões no discurso filológico sobre o poeta. No afã de valorizar a tradição popular e oral, o romantismo acabou por vulgarizar alguns episódios pouco creditados, como os penedos de Macau ou a existência de uma autêntica Dinamene, inaugurando assim uma tradição de especulações sobre a vida de Camões que culminaria nas teses do amor de Camões pela Infante ou por D. Violante de Noronha.
O Camões de Garrett é uma hábil junção, tão própria do autor, entre o arquétipo do poeta maldito e o do poeta nacional. Camões encarna ao mesmo tempo aquilo que o país recusa e aquilo que é, a voz do povo contra a voz do poder, o verdadeiro mas escondido carácter nacional. Se é verdade que serão precisos os estudos de Oliveira Martins e o surgimento de uma camonologia séria para que, a partir das comemorações de 1880, se assista ao aparecer de um culto nacional do autor, também o é que Garrett se adianta na consciência da identificação entre o espírito de Camões e o espírito do país.
Breves reflexões sobre a vida de Luís de Camões
Francisco Alexandre Lobo
O século XVIII foi talvez o mais ingrato para a memória de Camões. O século XVI consagrou-lhe vários comentários como o de Faria e Sousa ou Marcos de S. Lourenço e o século XIX viu surgir a moderna camonologia e estudiosos como Carolina Michaelis ou o Visconde de Juromenha. Entalado entre os dois, contudo, o século XVIII nem nos deu camonistas de grande envergadura nem grandes émulos de Camões. O grande acontecimento camoniano é, aliás, provocado por José Agostinho de Macedo com a censura d’Os Lusíadas, cujos ecos chegaram fora de portas, a nomes tão improváveis como Richard Francis Burton, o explorador e etnógrafo que traduziu e comentou Os Lusíadas.
As exceções a este estado de coisas chegam apenas no fim do século. Com o Cardeal Saraiva, de quem uma das primeiras obras, assinada ainda como Francisco de S. Luiz, é dedicada a rebater José Agostinho de Macedo, e com o bispo de Viseu, Francisco Alexandre Lobo. E se o texto do Cardeal Saraiva é sobretudo polémico, o do bispo de Viseu, embora partindo de um comentário à vida de Camões escrita para uma tradução inglesa, é uma verdadeira biográfica interpretativa. Até ao aparecimento da biografia de Sotrck, aliás, o texto de Francisco Alexandre Lobo era a mais sistemática e acessível vida de Camões que se encontrava em Portugal.
O bispo de Viseu, embora não explore muito as relações do poeta, dá-nos conta da possível desavença entre Camões e Rui Dias da Câmara, das ligações de Camões aos Coutinhos, entre outros aspetos. Não é uma biografia moderna – é claramente apologética, numa tentativa de mostrar a superioridade de Camões em relação a outros poetas, sobretudo aos poetas estrangeiros do seu tempo, como Tasso – mas é, ainda assim, um bom documento para o estudo de Camões.
Discursos Vários Políticos
Manuel Severim de Faria
Estes discursos de Severim de Faria, uma espécie de miscelânea de vários temas históricos, contêm três “vidas” de capital importância: a vida de João de Barros, a de Diogo do Couto e a de Luís de Camões.
Dada a parca quantidade de documentos existentes sobre Camões, aquilo que conhecemos sobre a sua vida tem de assentar no testemunho dos seus primeiros biógrafos. Ora, estes são, em geral, bastante lacónicos ou confusos. Em Pedro Mariz é difícil perceber, sequer, aquilo que é dito por ele e aquilo que pertence a Manuel Corrêa; em Faria e Sousa, embora haja muita informação, também há muita que não é de fiar. Resta-nos, entre as notas biográficas com alguma extensão, aquela que escreve Severim de Faria.
Ainda hoje as grandes hipóteses biográficas são discutidas em redor das informações trazidas por Severim de Faria e restantes biógrafos desta geração. Se se discute se Camões esteve em Macau ou em Lampacau, a estes biógrafos o devemos. Se discutimos o seu nascimento em Coimbra, Lisboa ou noutros lugares, a estes biógrafos o devemos. Severim de Faria não é, obviamente, um biógrafo moderno. No entanto, de todas as fontes biográficas de Camões, é aquela que se pode considerar mais fiável. Não que o seja absolutamente, mas pelo menos não tem erros que os outros não tenham e, fator que não pode deixar de pesar, é também uma interessante peça literária, com um pé na teoria da literatura.
Micrologia Camoniana
João Franco Barreto
João Franco Barreto é uma curiosa personagem na paisagem cultural portuguesa do século XVII. Lutou contra os Franceses na Bahia, esteve em França onde se inspirou para escrever um Catálogo dos Reis e Rainhas de França, traduziu a Eneida e, acima de tudo, dedicou um frutuoso amor a Camões.
Desse amor surgiu um dicionário dos nomes próprios n’Os Lusíadas, um Discurso sobre a visão do Indo e do Ganges no canto IV d’Os Lusíadas e esta micrologia, uma espécie de dicionário de todos os lugares, ideias, figuras míticas, referências, etc., que aparecem n’Os Lusíadas.
A diferença entre este texto, que esteve apenas manuscrito até bem tarde no século XX, e os vários comentários que no seu tempo se fizeram a Os Lusíadas passa (para lá da organização, claro) pela preocupação lexicográfica. É João Franco Barreto talvez o primeiro a demonstrar que a grandeza de Camões também se mede pela variedade do seu vocabulário, pela capacidade de acompanhar o alargamento do mundo com o alargamento da língua, de tal modo que a erudição de Camões não é apenas filosófica, histórica ou mitológica, mas também linguística.
O petrarquismo português do cancioneiro geral a Camões
Rita Marnoto
A influência de Petrarca na lírica de Camões é a mais óbvia e mais facilmente identificável em toda a sua obra. Talvez por isso, a verdadeira dimensão desta influência tenha demorado tanto tempo a ser estudada.
Ora, o que o trabalho de Rita Marnoto mostra é que o petrarquismo, enquanto acontecimento renovador de toda a poesia europeia, teve também em Portugal uma evolução peculiar. Rita Marnoto topografa primeiro os grandes temas e artifícios de Petrarca e mostra como eles foram entrando, com maior ou menor habilidade, no Cancioneiro Geral. A influência de Petrarca em Sá de Miranda será também óbvia, no entanto é com Camões que o petrarquismo português atinge a sua máxima expressão. Não apenas pela mestria formal que Camões denota, mas também porque é capaz de dotar o petrarquismo de uma singularidade interessantíssima.
Se Petrarca é, como diz Marnoto, o “primeiro poeta moderno a desvendar as clivagens que sulcam a interioridade”, Camões aproveita a consciência destas clivagens para explorar o “sentimento de dissídio”. Ora, este sentimento, a consciência de se estar dominado constantemente por algo que nos constitui contra a nossa vontade, é de facto um dos pontos mais interessantes na lírica de Camões.
O modo como o petrarquismo permitiu a exploração destes temas e deu a Camões os instrumentos para os explorar é, assim, um dos estudos centrais a que deve ser sujeita, como é aqui, a obra de Camões.
O Estado e o Direito n’Os Lusíadas
Pedro Calmon
O estudo deste erudito brasileiro tem várias particularidades que o tornam interessante. Em primeiro lugar, e contra a habitual visão de um Camões substancialmente platónico, Calmon procura mostrar que o autor é um “objetivista aristotélico”. A sua ideia de política estaria mais centrada nos propósitos específicos da sociedade, compreendidos a partir de baixo, do que numa ideia universal e abstrata de Bem.
E se isto nos poderia apontar para uma ideia quase maquiavélica de Camões, Calmon prova que não é isso que se passa. A conceção do poder e do Estado, em Camões, tem muito que ver com a ideia de amor à terra: se há uma noção de direito divino dos reis, esse direito manifesta-se popularmente; se há providência, é também uma providência concorde com os desejos populares e que é revelada também por eles.
Calmon identifica a ideia de pátria, daquele solo em que se nasce, como uma das bases fundamentais d’Os Lusíadas. Isto é, ao contrário de outros autores que concentram a exaltação patriótica nos feitos históricos além-mar, Calmon subordina estes feitos à ideia de terra de origem e de independência desta terra. Os feitos da Índia são importantes porque valorizam aquela terra. A terra que, por estar junto ao mar e abarcar aquelas gentes, permitiu os descobrimentos. O grande louvor d’Os Lusíadas não passa, assim, para Calmon, pela gesta índica, mas sim pelo solo nacional. É na prioridade deste que se concentram a ideia de Estado e mesmo a consciência do direito que, se deve também a alguns princípios universais, o deve porque eles também marcam a identidade de Portugal.
Obras (Volume III)
Francisco Rebelo Gonçalves
A obra linguística de Francisco Rebelo Gonçalves é enorme e da maior importância. A obra camoniana, embora seja composta maioritariamente por artigos soltos, foi reunida pela Gulbenkian no terceiro volume das suas obras completas.
É possível, então, encontrar neste volume alguns dos seus trabalhos mais significativos sobre o vocabulário camoniano, tão importantes como alguns dos seus textos publicados em Dissertações camonianas, nomeadamente aqueles que estudam a influência do humanismo sobre Camões ou aqueles que estudam o envolvimento de Camões na controvérsia política do seu tempo.
Os grandes trabalhos políticos sobre Camões têm-se focado, compreensivelmente, nas ideias políticas universais de Camões; Rebelo Gonçalves, contudo, nomeadamente através da análise à fala do Velho do Restelo, mostra que há também, da parte de Camões, um envolvimento nas discussões políticas mais circunscritas ao seu tempo.
Entre estas questões estava, naturalmente, a discussão sobre a prioridade da política portuguesa – a Índia ou o Norte de África.
É especialmente interessante olhar para Os Lusíadas a partir desta discussão porque Camões parece querer fundir as duas perspetivas. Se os adeptos do Norte de África enfatizavam a noção de cruzada, Camões aplica-a ao oriente e ao papel dos muçulmanos no controlo do índico; se os adeptos da Índia enfatizavam as riquezas e o comércio, Camões mostrava a decadência de um e de outro.
Estudos sobre a época do Renascimento
Américo da Costa Ramalho
Parece absurdo escolher para figurar nesta lista um livro que só indiretamente trata de Camões, para mais quando é escrito por um camonista de pleno direito. No entanto, duas razões diferentes nos levam a julgar apropriada esta inclusão. Em primeiro lugar, o trabalho de Costa Ramalho como camonista está espalhado por revistas, prefácios e apresentações de livros, de tal modo que é difícil para o leitor interessado ter uma visão de conjunto da sua obra.
Mais importante, contudo, é o facto de este livro explicar como nenhum outro o ambiente intelectual em que Camões poderá ter crescido. A influência de Cataldo na corte portuguesa, o crescimento do gosto latinizante, mesmo a consciência de que os feitos portugueses mereciam uma gesta épica, tudo isso é descrito neste livro e funciona como uma espécie de preparação de Camões.
Mesmo os artigos sobre Gil Vicente ou as passagens sobre os humanistas do colégio de Santa Bárbara e do Colégio das artes, as controvérsias entre os Gouveias, os letrados que estudaram em Portugal, tudo demonstra a imersão de Portugal num ambiente europeu voltado para o cultivo dos clássicos e para a imitação dos vários géneros de poesia em disputa de precedências, que de certa forma orientam a leitura formal de Camões.
Se é discutível o facto de Camões ser um humanista ou um maneirista, não é certamente discutível a influência do humanismo sobre ele. Ora, poucos livros como este explicam o que foi o humanismo em Portugal, permitindo conhecer a sua influência sobre o autor.
Os Descobrimentos e a Problemática Cultural do Século XVI
José Sebastião da Silva Dias
Tal como o livro de Costa Ramalho, o de Silva Dias não é um estudo camoniano no sentido estrito da palavra. Na primeira edição da obra, aliás, Camões só é mencionado quatro vezes.
Ainda assim, este é ao mesmo tempo o mais erudito e o mais arguto estudo dedicado a perceber a articulação entre o saber universitário e o saber prático, a conhecer as práticas culturais do século XVI e o modo como as viagens portuguesas influenciaram os problemas artísticos e filosóficos.
Silva Dias, apesar de mostrar a intensa produção de obras que devem muito às descobertas, obras de carácter a que hoje chamaríamos etnográfico, linguístico, obras de carácter científico, é cauteloso a estabelecer uma grande revolução de mentalidades motivada por estas descobertas.
A verdade é que as viagens são justificadas dentro de um quadro mental que é, em certos aspetos, ainda medieval, que algum saber universitários demonstra uma considerável impermeabilidade ao conhecimento técnico trazido das jornadas portuguesas e que as próprias obras de observação não têm suficiente estatuto filosófico para alterar significativamente os quadros mentais.
Há, de facto, uma espécie de cultura em conflito, com várias influências paralelas, que terá em Camões a síntese mais graciosa e original. A partir desta problemática cultural do século XVI é mais fácil perceber a categorização dos próprios Lusíadas, uma obra com tanto de medieval como de moderno, de prático como teórico.
Dicionário de Luís de Camões
Vítor Aguiar e Silva
Vários livros de Vitor Aguiar e Silva mereceriam destacada entrada nesta seleção, como os dois livros publicados pela Cotovia – Labirintos e Fascínios e A Lira Dourada e a Tuba Canora –, ou o Maneirismo e Barroco na poesia lírica portuguesa — é impossível pensar nos estudos camonianos recentes sem pensar nos contributos que Aguiar e Silva deu para o conhecimento da lírica, para o estabelecimento de um padrão de exigência e rigor nas especulações camonianas e, até, para o conhecimento dos próprios camonistas. Se hoje Faria e Sousa e Jorge de Sena conservam um lugar importante entre os estudiosos de Camões a despeito de todas as incorreções e erros que foram cometendo, muito o devem a Aguiar e Silva, que soube distinguir neles aquilo que eram intuições úteis para o aprofundar do conhecimento de Camões.
Também a Aguiar e Silva se deve muita da atenção a alguns dos poetas menores que ajudam a perceber o ambiente literário da época de Camões e cuja obra tão desconhecida ajuda a enquadrar também a ausência de documentos sobre Camões, que, se não soubéssemos da quantidade de poetas na mesma situação, se poderia tornar tão estranha. É o caso de Martim de Crasto do Rio, por exemplo (a quem, de resto, Aguiar e Silva atribui a possibilidade de autoria do excelente soneto “o dia em que eu nasci moura e pereça”).
Escolhemos para figurar aqui, entre a multidão dos possíveis, o Dicionário de Camões, também como homenagem a esse esforço coletivo que é o estudo de Camões, a que muitas das cabeças mais eruditas do nosso país têm subordinado o seu saber. Este dicionário é uma obra coletiva de grandes dimensões, que não só aprofunda as grandes influências de Camões, os seus temas, os seus contemporâneos, a sua receção ao longo dos séculos, como também não se esquece dos grandes camonistas que nos ajudam a ler a obra do “príncipe dos poetas portugueses”.