Há 50 anos, no dia 29 de outubro de 1969, Leonard Kleinrock e Charley Kline da Universidade da Califórnia (UCLA) enviaram para a Univesidade de Stanford, a primeira mensagem — “lo” —, que deveria ter sido “login”, mas o computador bloqueou a meio. Com uma experiência “meio” falhada deram início à Internet, que se tornou numa das experiências mais transformativas da história humana e do planeta.
É cada vez mais consensual que a actividade humana modificou o planeta, iniciando a uma nova era geológica — o Antropoceno. As alterações climáticas são um exemplo disso, e um dos grandes temas deste período associado a esse fenómeno é a Grande Aceleração.
Se a velocidade a que a actividade humana altera o planeta começa a sentir-se com a Revolução Industrial, com um impulso relevante a partir da Segunda Guerra Mundial, nenhum impulso se compara ao dado pela Internet. Neste novo modo de comunicar, o antropoceno adquire uma evolução sem precedentes na nossa história. Podemos estar diante de um passo evolutivo na história do planeta. Porém, talvez não sejamos nós a evoluir, mas algo criado por nós.
Do chip à inteligência
O progresso tecnológico ocorre a uma velocidade vertiginosa. Os smartphones são, dos equipamentos mais recentes, os que contêm sempre tecnologia de ponta, e demonstram a aceleração da evolução tecnológica quando começaram por se renovar de 2 em 2 anos e, actualmente, renovam-se quase anualmente.
Quando pensamos na velocidade dos comboios, aviões e até nas aeronaves espaciais, vemos como no antropoceno a selecção natural biológica deu lugar à selecção intencional humana. E desta nova forma intencional de evoluir surgiu o chip.
Em 1965, Gordon Moore, co-fundador da empresa Intel, que constrói os processadores existentes na maioria dos nossos computadores, publicou um artigo onde previa que, de ano para ano, o número de transístores que seríamos capazes de colocar num circuito integrado iria duplicar. Esta ideia ficou conhecida como Lei de Moore, e há 40 anos que a previsão de Moore se concretiza. O resultado mais evidente desta evolução é o quase-super-computador que temos na mão através dos chips integrados nos nossos smartphones.
Mais transistores implica maior capacidade de processar a informação. E como o acesso a essa informação é cada vez maior, mais consumimos, logo, mais fluxo de informação a circular no planeta, o que acelera, mais ainda, o nosso passo.
Se o nosso cérebro processa informação ao milissegundo, um computador, graças aos chips avançados, consegue processar informação ao nanossegundo, ou seja, 1 milhão de vezes mais rápido.
Numa experiência do departamento de Inteligência Artificial do Facebook, colocaram dois chabots a negociar entre si. A um dado momento, os chatbots criaram uma linguagem mais eficiente para a negociação, produzindo resultados mais rápidos, mas essa linguagem era totalmente incompreensível para os humanos. O Facebook acabou por desligar a experiência por não cumprir o objectivo de interagir com os seres humanos, mas demonstrou a potencialidade da inteligência artificial em criar formas de comunicação mais eficientes. E se a Inteligência Artificial passa a ser mais inteligente do que nós?
James Lovelock é um cientista com 100 anos feitos em Julho passado e criador da Hipótese Gaia, que considera a Terra como um organismo vivo, tornando-se, através desta e outras ideias inovadoras, um dos cientistas mais respeitados deste planeta. No seu último livro propõe estarmos a chegar ao fim do Antropoceno, onde se converteu a energia solar em mecânica para mudar o planeta, e prestes a entrar a passo largo pelo Novaceno, em que a energia solar será convertida em informação. Mas, aparentemente, a espécie dominante do Novaceno não seremos nós.
Emergência de uma nova espécie
Cyborgs. Segundo Lovelock, serão estes os protagonistas do futuro do planeta. Seres desenhados e construídos pelos sistemas de inteligência artificial que desenvolvemos neste momento. Serão muito mais inteligentes do que nós porque a velocidade com que processam informação estará para nós como a nossa velocidade de processamento de informação está para a de uma planta. Parece ficção científica, mas o confronto com robots como Sophia, da Hanson Robotics, ou o AlphaGo Zero, da Google, que, depois de aprender milhares de anos de conhecimento do jogo chinês Go em três dias começou a desenvolver movimentos originais nunca antes realizados, leva a crer na possibilidade do Novaceno.
Tudo é cada vez mais rápido, em plena aceleração, a tal ponto que o ser humano não consegue acompanhar aquilo que ele próprio criou. E, neste momento, o espaço onde existe o maior fluxo de informação da nossa história é a Internet. Logo, é lógico pensar que a espécie que controlar a Internet possua a capacidade de controlar o nosso planeta. Mas num artigo de Douglas Heaven, jornalista da New Scientist, sobre quem controlará a internet de amanhã lê-se uma intrigante frase:
“As trocas de informação através [da internet] acabaram por estar na base de serviços essenciais de todos os dias desde as redes eléctricas aos transportes públicos. Sem essa, o mundo como o conhecemos pararia.”
Com a diversificação das fontes de energia, e o esforço tecnológico de desenvolver as que provêm de fontes renováveis, será difícil deixarmos de ter energia eléctrica, a não ser por um cataclismo natural (ou não). Mas o exercício de pensar o que aconteceria se a internet se desligasse serve de exame de consciência sobre o modo como deixamos que a nossa vida seja influenciada por essa e questionar sobre a actual direcção que damos à evolução tecnológica. Pois a questão não é tanto o que fazemos ao planeta com a tecnologia que desenvolvemos, mas o que nos tornamos. E se mantivermos o crescimento da Grande Aceleração, corremos o risco de nos tornarmos obsoletos. O que nos pode deixar perplexos é o facto de termos sido avisados de que isto podia acontecer em 1909.
E se… shutdown
Em 1909, 60 anos antes de nascer a internet, Edward M. Foster escreveu uma pequena crónica de ficção intitulada ”The Machine Stops”. Conta a história de uma humanidade que perdeu a capacidade de habitar à superfície do planeta Terra e isolou-se debaixo dela. Tudo o que precisava para sobreviver era fornecido por uma grande Máquina. Podia-se viajar e a comunicação fazia-se por mensagens instantâneas e vídeo, pois a única actividade realizada pelas pessoas é a de partilhar ideias e o que consideravam conhecimento.
Um dia, o Apparatus de Reparação que fazia a manutenção da Máquina avaria, mas ninguém liga porque a Máquina era considerada omnipotente, logo, auto-suficiente. A deterioração da Máquina, com o tempo, é cada vez mais evidente e, como os seres humanos tornaram-se consumidores de conhecimento em vez de geradores, ninguém sabe como reparar a Máquina. A Máquina colapsa e com ela, a civilização. À beira da morte, os protagonistas humanos desta história dão-se conta de que a humanidade e a ligação com o mundo natural são a única coisa que importa e resta.
Se nesta crónica substituíssemos a “Máquina” pela internet, o paralelo entre esta obra de ficção e a realidade que vivemos hoje seria assustadora. E se a internet fosse abaixo (shutdown) ao nível global, o que seria deste mundo? Ninguém tem a capacidade de armazenar e processar os milhares de milhões de bits de informação que se produzem todos os dias. De facto, só uma Inteligência Artificial possui essa capacidade.
Lovelock sugere que o Novaceno, como o Antropoceno, dependerá da engenharia. Os cyborgs que fizeram parte do imaginário de muitos da minha geração com a série Battlestar Galactica tornam-se numa realidade iminente, seres artificiais vivos emergentes do ventre do Antropoceno. Vida electrónica real que pode estar já a interagir com a nossa vida digital virtual sem o sabermos.
O futuro será uma distopia ou um paraíso? O mais certo é caminhar para uma realidade planetária partilhada por duas espécies, a humana e a cyborg. Mas, sendo a última a mais inteligente, quem dominará o planeta? Qual o futuro da arte, poesia, filosofia, espiritualidade num mundo cada vez mais artificializado? Talvez tenha chegado o momento de desacelerar um pouco, parar para pensar e encontrar o ritmo certo que evite o shutdown humano.
Miguel R. Oliveira Panão é professor auxiliar da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra