“Apanhaste-me num dia mau”, diz Leonor visivelmente adoentada, com a chávena de chá numa mão e a outra a fazer caracóis no cabelo. De facto, pode ser difícil entrevistar alguém que admite isto antes de qualquer pergunta, mas no caso de Leonor não foi assim tanto. Afinal, é precisamente nestes dias que os filtros desaparecem e a franqueza sobressai.
Tem 27 anos, nasceu em Vila Franca de Xira e o rio Tejo foi o cenário da sua infância. Cresceu contaminada pela herança cigana da parte do pai e uma consciência social do lado da mãe. Sonhava ir para a Força Aérea pilotar aviões, foi federada em futebol, mas a câmara fotográfica captou-lhe todos os sentidos. No cinema descobriu um mundo cheio de possibilidades e a forma de expressão que lhe é mais fiel. Não o vê como puro entretenimento, mas algo político que deve passar uma mensagem, mesmo que essa dependa do espectador e não de si.
Leonor não se define como realizadora, prefere o termo cineasta, mais lato e abrangente. Em película, filma a sua própria realidade, partindo de um encontro feliz com pessoas, sem guião ou ficção. Caminha por terrenos que conhece, mesmo sem saber onde esse caminho vai dar. Tem urgência em abordar temas comuns, que talvez não o deveriam ser, como a xenofobia, o racismo ou a gentrificação.
Em 2016, com “Balada de um Batráquio”, o filme que quase desistiu de fazer, foi a realizadora mais jovem a ganhar o Urso de Ouro no Festival de Berlim, um dos mais prestigiados prémios de cinema do mundo. A distinção trouxe-lhe reconhecimento, financiamento e oportunidades, mas também exigências, responsabilidades e expectativas “indesejadas” e “desnecessárias”, com as quais ainda hoje não sabe lidar. Nunca se deixou deslumbrar, antes pelo contrário. Garante que não procura a aprovação nem ambiciona mais prémios, apenas quer voltar a ser a rapariga antes do mediatismo, com espaço para errar.
O preconceito para com o cinema português e a falta de apoios na cultura fazem com que não goste muito de pensar no futuro e seja (ainda) mais pessimista. Leonor não tem soluções milagrosas, mas diz ter sorte, muitas dúvidas e uma certeza: não quer repetir-se.
Este sábado foi exibida pela primeira vez em Portugal, numa sessão esgotada do festival Porto/Post/Doc, “Cães que Ladram aos Pássaros”, a sua última curta-metragem, nomeada para os Prémios Europeus do Cinema, cuja cerimónia realiza-se a 7 de dezembro. Na mesma noite, “Terra Franca” e “Balada de um Batráquio” passaram na RTP 2. O dia foi mau, mas Leonor tem motivos para sorrir.
Segundo a descrição do teu Instagram, cortas cabelos ao fim de semana. É verdade?
Isso é uma piada, porque às vezes corto o cabelo a pessoas próximas. Também já cortei a mim própria, mas não deu muito bom resultado.
Tens alguma veia cabeleireira?
É uma coisa que gosto de fazer, não sei se tenho muito jeito. Às vezes pedem-me e acontece. Quando são coisas fáceis acho que me desenrasco, mas é algo que gostava de aprender.
Fala-me das tuas origens.
Nasci e cresci em Vila Franca de Xira, tenho dois irmãos, um mais velho e outro mais novo, e a pessoa que teve mais influência em mim foi a minha mãe, muito mais do que o meu pai. Foi ela que sempre me incentivou, que me abriu os olhos para muitas coisas e que nunca me obrigou a fazer nada. Muitos pais lixam a vida dos filhos passando os seus traumas, eu tive a sorte de a minha mãe ser uma pessoa super sensata. Trabalha numa escola em Vialonga, é mediadora socioeducativa, ou seja, faz a ponte entre a escola e as famílias dos alunos com diferentes etnias que existem no agrupamento. Convive mais com as famílias ciganas.
Foi graças a ela que tiveste mais contacto com essa realidade?
Tive contacto com esse universo muito incentivada por ela, sim. A tradição cigana, no que diz respeito ao casamento e ao papel da mulher, sempre foi uma coisa que me despertou interesse e curiosidade. Não é que eu não soubesse, mas quando em 2012 fiz do documentário “Rhoma Acans” foi um bocado voltar a descobrir e digerir isso com outra idade e perceber o quão violento e fraturante é esta questão.
Em que medida é que ter um pai cigano te tornou mais próxima desta comunidade?
É difícil não ser contaminada. A partir do momento em que tens um pai cigano existe toda uma linguagem acerca da comunidade e sobre o racismo que ela sofre que é impossível não falar, não querer saber mais e não questionar se isso acontece com a nossa família.
Também jogavas futebol e querias pilotar aviões?
Sim, durante muitos anos queria ir para a Força Aérea. Só no secundário é que descobri que existem outras possibilidades bem mais interessantes do que a vida militar. O que queria na Força Aérea era mesmo pilotar aviões. No caso do futebol, comecei a jogar quando tinha dez anos, muito influenciada pelos meus amigos e pelo meu irmão mais velho. Tive uma lesão grave aos 17, fui operada ao joelho, mas só parei definitivamente aos 22 quando comecei a trabalhar. Não conseguia conciliar o cinema com o futebol, era muito exigente.
Antes do cinema, veio a fotografia.
Comecei a perceber que gostava demasiado de fotografia e era uma coisa que queria explorar. A minha primeira máquina foi uma Sony Alpha. Fotografava muito luz natural, reflexos, paisagens e, claro, o Tejo. No 12.º ano percebi que já não ia para a Força Aérea e queria estudar fotografia. Na altura só existia um curso de fotografia em Tomar e era muito limitativo, então comecei a investigar e descobri o curso de cinema, na Escola Superior de Teatro e Cinema, onde podia aprender fotografia e outras vertentes. Fui e correu bem.
O que é o cinema te dá que a fotografia não é capaz de dar?
O cinema tem outro alcance, é uma experiência totalmente diferente. Tenho conseguido exprimir-me melhor através do cinema e das suas diferentes possibilidades. Quando fui estudar cinema não tinha referências, não conhecia muita coisa a não ser o que via na televisão e quando ia ao cinema com os meus pais. Na escola, a minha grande descoberta foi o cinema asiático e aprender que o cinema não era só aquilo que estava na minha cabeça.
Como assim?
Não é uma coisa apenas associada ao entretenimento puro, ao escapismo. O cinema pode ser sentimento, emoção, política. Aliás, ele por norma devia ser sempre político.
Porquê?
Se temos uma audiência à nossa frente, por que não colocar as pessoas a pensar e a questionar sobre as coisas? Ou pelo menos tentar. Não tenho a arrogância de dizer que isto se faz, mas se temos essa janela de tempo podemos tentar passar uma mensagem diferente daquilo que vemos em todo o lado.
Fazes cinema para mudar as pessoas?
Não sei se mudo, mas se deixar lá uma sementinha já valeu a pena.
Os teus filmes partem de temas aparentemente simples e comuns. Concordas?
Tenho feito filmes que surgem do encontro com pessoas, cruzo-me com elas, de certa forma apaixono-me por elas e tenho vontade de as filmar. Desse encontro nasce um filme. Às vezes são coisas mais simples, outras vezes mais complexas. Acho que isso depois gira em torno da pessoa que estou a filmar e daquilo que ela me quer dar e mostrar da sua vida. À exceção do “Balada de um Batráquio”, tenho trabalhado muito nesse registo mais íntimo, com pessoas que existem.
Há em ti uma urgência ou uma tendência em abordar assuntos que fazem parte das tuas vivências?
Para já é uma coisa que faz sentido. Gosto das coisas quando há um sentido de verdade e realidade, que nos aproxima mais das pessoas e das emoções. Não me interessa fazer coisas que sejam mais distantes. Como aquilo que conheço melhor é o que está à minha volta, vou explorar isso.
Porque é mais confortável e está mais ao teu alcance?
Não, porque para já é o sítio pelo que qual eu sei caminhar. Não sei até onde é que essa caminhada me vai levar, se é que me vai levar a algum lado.
[o trailer de “Balada de um Batráquio”:]
O “Rhoma Acans” e o “Balada de um Batráquio” são filmes onde te focas na etnia cigana. É um tema a que vais voltar sempre?
Para já não, mas talvez. Nem que seja de forma indireta, num outro tipo de trabalho que não seja através do cinema. Mas acho que sim, é impossível desligar, faz parte de mim.
O “Balada de um Batráquio” não deve ter sido um filme fácil de fazer, pela ação que incorporava [partir sapos de loiça em estabelecimentos comerciais cujo objetivo é afugentar os ciganos]. É verdade que pensaste em desistir?
Sim. Ainda não tínhamos começado a rodagem e houve uma altura em pensei mesmo ir falar com a produtora e dizer que não me sentia confortável, que não era capaz e achava que não devia fazer aquilo. Passado uns tempos ganhei um concurso da Gulbenkian e tive que fazer o filme.
Foste obrigada, portanto.
Sim, basicamente. Também não sei até que ponto me iriam deixar desistir.
Com essa curta-metragem chegaste ao Festival de Berlim e aparentemente um urso [o prémio Urso de Ouro] mudou a tua vida.
Acho que por um lado o prémio só me trouxe chatices. É uma pressão gigante. Claro que é ótimo ganhares um prémio máximo em Berlim, é assim uma coisa fora de série, é um reconhecimento extraordinário do teu trabalho e do trabalho da tua equipa. O cinema é sempre em equipa, mesmo quando há poucas pessoas envolvidas. Foi bom, porque nos permitiu voltar a filmar, há mais facilidade em arranjar financiamento para um próximo projeto. Por outro lado, há um foco de atenção que é completamente indesejado, que não é necessário e só prejudica.
Sentes que não estavas preparada para o reconhecimento?
Na altura foi uma avalanche de emoções, não tinha vida própria, estava sempre em entrevistas. Depois é todo o fenómeno de ser a mais nova a ganhar o urso e a fazer um filme político, ativista e punk. O próprio tema também foi fora da caixa e isso também chamou a atenção. Não percebo como é que no ano a seguir o Diogo Amarante não teve tanto mediatismo como eu. Se eu tive ele também deveria ter tido, ganhou o mesmo prémio, tal como o João Salaviza. Não sei, há aquela ideia em que só vais fazer coisas boas quando atingires uma certa idade e quando aparecem pessoas mais novas que já estão a fazer alguma coisa dão demasiada importância à questão da idade.
Não te consegues distanciar disso?
Às vezes sim, outros dias não. Hoje é um dia que em que não consigo. Parece que não tenho espaço para errar. É como se não fosse uma pessoa como as outras, com defeitos, com falhas, com dúvidas, com problemas. De repente as coisas correm bem e é regra que corram sempre bem. Há toda uma expectativa que para mim é difícil de gerir porque é completamente indesejada, nem faz sentido existir. Gostava de voltar a ser aquela pessoa que fez o “Balada”, completamente livre. A responsabilidade nessa altura era muito diferente do que é agora.
Depois do prémio veio a aprovação do teu trabalho em Portugal. Precisavas dela?
Nunca andei à procura de aprovações. O meu objetivo quando faço um filme é que ele chegue ao maior número de pessoas possível. Se eu quero que as pessoas gostem do filme? Claro que sim, mas se não gostarem também não tem mal. Para mim o mais importante é que o vejam.
Numa sala comercial?
Vejam-no da forma que for possível. Hoje em dia já não podemos ter essa exigência. Devíamos querer exigir isso, mas coisas estão tão complicadas para o cinema e para as curtas-metragens. O Balada chegou às salas por causa do urso e de todo o mediatismo, foi importante. Era isso que devia acontecer com todas as curtas, ou pelo menos com muitas delas. Qual é o problema de estrear 15 minutos antes de uma longa metragem? Que mal é que faz? Nenhum. A curta é vista, ganha espectadores e a mensagem passa. Não estou à procura de aprovação, nada disso. Quero é continuar a fazer filmes da maneira que o faço, a ter acesso a um cinema livre, isso é o mais importante. Foram nestas condições que consegui fazer o trabalho que fiz, sem barreiras ou limitações. Esta maneira de fazer cinema é uma coisa que é boa, que permite experimentar, exprimir, chegar a outros lados, envolver pessoas que de outra maneira nunca chegariam ao cinema. Há possibilidades infinitas de fazer um filme e isso é incrível.
Achas que essa liberdade está a perder-se?
Como as coisas estão hoje em dia, essa liberdade pode estar em causa, sim. Os filmes portugueses não fazem espectadores em sala, não existe relação com os espectadores, não existe política cultural em Portugal. Basta olhar para o estado do teatro agora com a DGArtes.
A solução pode passar por onde?
Adorava ter a solução, resolvia o problema a muita gente. Pode passar pela educação nas escolas. Porque é que as pessoas gostam de ler? Porque aprendem a ler. Também há quem não goste, mas quando aos seis anos descobri o que era ler aquilo mudou a minha vida, transformou-me. Quando vejo um filme e aquilo tem um impacto em mim é uma coisa fantástica. Essas oportunidades não acontecem. É preciso existir um pensamento mais coletivo, tentar que o sistema de subsídios seja justo e que toda a gente possa ter acesso a ele. É difícil começar, sair da escola e ter uma oportunidade e também é difícil quando tens essa oportunidade não falhares, porque é a primeira vez que estás a fazer. Neste momento sinto que as pessoas têm que se juntar, não pode estar cada um para seu lado. Não só no cinema, é em toda a cultura. Se isto continuar assim, temos um Ministério da Cultura para quê? Ele não está a funcionar.
Li algures que não pretendes ser um exemplo ou uma referência para a tua geração, mas um impulso.
Quando disse isso pensei que as pessoas geralmente dão exemplos negativos, para aprenderes o que não fazer. Acho mais fixe dar um empurrão para a frente.
Qual foi o teu impulso?
Para ir para escola de cinema foi a minha mãe, ela deixou-me muito à vontade e disse: “vai, mesmo que falhes, não há problema”. No “Balada” foram os meus produtores, acreditaram na ideia desde o início e disseram que eu devia fazer o filme com a história dos sapos. Não se consegue fazer cinema sem ter pessoas à nossa volta que acreditem em nós. Ao fazer cinema estás permanentemente em dúvida, antes de começares a rodagem, na filmagem, na montagem, em todo o momento. É importante ter pessoas de confiança por perto.
[o trailer de “Terra Franca”:]
Em “Terra Franca” regressas a Vila Franca de Xira e a uma boleia de barco que apanhaste com o pescador Albertino Lobo.
É verdade, o filme partiu dessa imagem do Albertino que não saiu da minha cabeça durante dois ou três anos. Não sei se sou assim tão saudosista das minhas origens, acho que comecei por aí porque era um sítio que conhecia muito bem e sempre tive vontade de filmar lá. Adoro aquela zona junto ao rio. Quando acontece aquela boleia e a imagem do Albertino fica a martelar na minha cabeça, fez-me pensar que a pessoa indicada para protagonizar o filme que queria fazer ali era mesmo ele.
Falando do último “Cães que Ladram aos Pássaros”, como conheceste a família Gil? A mãe ser cigana foi um acaso?
Sim, foi uma coincidência. Conheci-os há uns anos quando vim apresentar o “Rhoma Acans” ao Porto, no fim da mostra a Maria Gil veio falar comigo. Tenho ideia de os filhos gémeos estarem lá e serem pequenos. No ano passado, a Câmara Municipal do Porto [através do programa Cultura em Expansão] deu-me carta branca para fazer um filme rodado no Porto e quando andava aqui à procura do que iria ser o filme um amigo disse que eu tinha que conhecer os filhos da Maria Gil. Aquilo mexeu qualquer coisa no meu cérebro, mas não associei logo. Só depois de estar com eles é que tive um clique e percebi que já os tinha conhecido há uns anos. Nesse reencontro tive um feeling gigante em filmar o Vicente [um dos gémeos], senti uma energia diferente, tal como senti quando conheci o Albertino. Daí eu dizer que os meus filmes surgem sempre do encontro com pessoas. Comecei a falar com o Vicente, soube o que se estava a passar na vida dele e da família. Foram dez dias de rodagem e acabei por viver no Porto dois meses em residência artística.
Que relação tinhas com a cidade?
Muito pouca, vinha cá às vezes. Adorava vir ao Porto, mas não vinha muito. É uma cidade muito diferente de Lisboa, mas não no sentido pejorativo. São mesmo experiências diferentes, pelas pessoas, pelo som, pela luz. Não me identifico tanto com Lisboa, aqui as pessoas são mais simpáticas, mais acessíveis.
[o trailer de “Cães que Ladram aos Pássaros”:]
O filme gira em torno da gentrificação. Como vês esse fenómeno?
Acho que só vai piorar. Já sofri isso, aliás estou a sofrer. Moro em Lisboa desde 2016 e já mudei de casa três vezes.
Há alguma história engraçada durante a rodagem, como aquela em que pararam o trânsito na Almirante Reis a filmar “Balada de um Batráquio”?
Temos a cena em que o Salvador anda de bicicleta com o pneu furado, por exemplo.
Filmaste esta curta em 16 mm. Porquê a opção em trabalhar com formatos mais antigos?
Por questões estéticas. É o formato visual com o qual mais me identifico, gosto da textura da película, das cores, do grão. Se me deixarem vou continuar a fazê-lo.
É uma espécie de imagem de marca?
Não diria que é uma marca, é só um gosto caro. Filmar em película fica muito mais caro do que filmar em digital, mas fica mais bonito, mais emocional, tem mais vida. Um dia que queira fazer um filme e não tenha dinheiro para a película, ou não filmo ou tenho de arranjar outra maneira de o fazer.
Quando dizes que a mensagem dos teus filmes não depende de ti, não há uma desresponsabilização nisso?
Quem sou eu para dizer o que as pessoas têm que sentir quando veem um filme? Obviamente que quero que a mensagem seja compreendida, mas não as posso condenar se elas entendem outra coisa. Já me aconteceu imensas vezes e vejo isso como algo positivo. É interessante, porque às vezes vão buscar coisas que nunca me tinham passado pela cabeça e aprendo com isso. Para mim só seria frustrante se quem faz parte do filme não se sentisse representado, aí sim eu teria falhado. Até agora disseram-me sempre o contrário, espero que estejam a dizer a verdade.
Parece que não crias muitas expectativas nas coisas que fazes.
Não, sempre fui assim: pessimista e fatalista.
Não pensas no futuro?
Não sei o que vai ser o futuro, ninguém sabe. Para quê pensar no futuro se o presente já é lixado para caraças.
Mas a curto prazo, o que gostavas de fazer?
Não sei, vamos ver se duro até lá. Apanhaste-me num dia mau. Quando estou bem disposta sou mais otimista. Aliás, sou muito otimista em relação ao cinema, mas em relação a mim não sou.
Porquê?
Não sei. Se calhar devia ser mais, no sentido de não condenar as coisas logo à partida, de achar que vai correr tudo mal, de sofrer antecipação. No outro dia disseram-me que o que me aconteceu quando ganhei o urso foi exatamente o contrário do habitual. Eu não tirei os pés da terra, comecei foi a enterrar cada vez mais os pés na terra e a colocar toda a pressão e responsabilidade em cima de mim e a esquecer-me da pessoa que era quando fiz o filme. Perdi essa liberdade, essa leveza de poder dizer: “que se lixe, bora fazer”.
Achas que é irrecuperável?
Não sei, mas é difícil. No ano passado quando estive cá no Porto senti isso, porque ninguém sabia o que eu estava a fazer. Senti que, no limite, era só uma encomenda da Câmara. Adorei fazer o filme, foi totalmente diferente do que já tinha feito.
Foi o filme que mais gostaste de fazer?
Não posso dizer isso, gostei muito de fazer o “Terra Franca”. Tenho tido a sorte de fazer os filmes que quero fazer e na altura certa.
Então a pressão não existe.
Claro que existe, porque depois toda a gente quer ver. Há mesmo uma desumanização, sinto que não posso falhar e isso é muito mau porque começo a querer controlar tudo. Aquilo que fazia de mim melhor era liberdade com que fazia as coisas.
Será que isso te vai impedir de ganhar mais prémios?
Não quero ganhar outros prémios, a questão é essa. Quando estou a fazer filmes não penso que se vou ganhar o prémio A, B, C ou D. O que vem a seguir não posso controlar, nem sequer é uma coisa que dependa de mim. Quando acontece é incrível, mas não é esperado, não é uma ambição. O objetivo é fazer o melhor filme possível com as pessoas que estão comigo e se cruzam comigo. A única coisa que sei é que não me quero repetir.