É uma tendência que já vem de trás, com uma desflorestação acelerada e que os esforços de reflorestação não conseguem compensar. Na Amazónia, a maior floresta tropical e o maior centro de biodiversidade do mundo, as árvores vão sendo destruídas a um ritmo mais ou menos constante ao longo dos anos — e, à desflorestação, seguem-se geralmente as queimadas, para limpar o terreno. A relação, explicam vários organismos públicos brasileiros, é clara. E, apesar da seca, o tempo não explica todos estes fogos a que temos assistido ao longo das últimas duas semanas — mais ligados aos focos de incêndio provocados, voluntária ou involuntariamente, por mão humana.
Este ano, contudo, a situação pode ser potencialmente mais grave do que no ano passado. É verdade que em 2005, por exemplo, os 63 mil focos de incêndio registados na floresta, apenas no mês de agosto, foram muito superiores aos 23 mil assinalados em agosto deste ano, até agora. Mas, face ao ano passado, o aumento é considerável: mais 83% de queimadas no primeiro semestre de 2019, quando comparado com 2018; e, só neste mês de julho, mais 278% de área desflorestada, quando comparado com julho do ano passado.
[Fogos na Amazónia indignam as redes e as ruas:]
Na reação a estes dados e às imagens impressionantes da Amazónia a arder, o Presidente Jair Bolsonaro também aponta para a mão humana. Contudo, não responsabiliza o sector da agropecuária, mas sim as Organizações Não-Governamentais (ONG) ambientais. Segundo o Presidente brasileiro, o ressentimento pelos cortes de fundos estatais estará na origem destes fogos com mão criminosa. E os desentendimentos com os governos de Alemanha e Noruega já levaram ao desinvestimento destes países no Fundo Amazónia. O debate sobre a política ambiental deste governo e a sua influência no momento atual que a Amazónia atravessa continua — ao mesmo tempo que é necessário ter em conta anos e anos de políticas, por parte de vários governos, que não conseguiram compensar a desflorestação amazónica.
Dramatic video from Brazil captured a massive blaze consuming vegetation, Wednesday, August 14, as the country struggles to contain fires burning through its Amazon rainforest. (Reuters) pic.twitter.com/5QrLa1ispd
— Voice of America (@VOANews) August 22, 2019
Os dados sobre o mês de agosto são ainda provisórios, mas os especialistas ambientais são unânimes em falar já de uma tragédia. Certo é que será uma perda “irreparável” e que o impacto ambiental poderá traduzir-se de várias maneiras, como comprovam o fumo que cobriu São Paulo e a chuva contaminada por fuligem que caiu sobre outras partes do país. O Observador preparou um explicador com sete perguntas e respostas para entender melhor o que se está a passar na Amazónia e no resto do Brasil.
O que está a causar tantos incêndios em simultâneo na Amazónia?
Ao que parece, a origem dos incêndios está nas queimadas.
Essa é a conclusão do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), que registou entre janeiro e o dia 19 de agosto um aumento de 83% das queimadas em todo o Brasil em relação ao período homólogo do ano passado. Ao todo, contabilizou o INPE, até esta segunda-feira já tinha havido 72.843 em 2019 — o que fazem deste ano o pior desde 2013. Ainda de acordo com o INPE, entre todos aqueles, mais de 38 mil são na Amazónia. Ou seja, 52,5% aconteceram ou estão a acontecer na maior floresta do mundo.
O número de queimadas desde o início do ano aumentou em relação ao mesmo período do ano passado. Contudo, o valor registado neste mês de agosto — 23 mil focos de incêndio — não difere em muito do que já aconteceu em outros meses de agosto. Entre 2014 e 2018, por exemplo, o número de queimadas registadas no mês de agosto ficou sempre entre os 20 e os 21 mil — bastante aquém dos 43 mil que aconteceram em agosto de 2002 ou nos 63 mil em 2005. A tendência, por isso, não é nova, a não ser pelo facto de este ano ter registado um aumento significativo desde janeiro face ao primeiro semestre do ano passado.
Emboras as razões para fazer uma queimada sejam várias (como a limpeza de terreno ou queima de floresta já derrubada), o maior foco de atenções está a ir para as que são feitas com um intuito: preparar os terrenos desflorestados da Amazónia para poderem ser usados para fins agrícolas.
“Quando se desfloresta uma área para implementar pastagem ou agricultura, tem que se livrar daquela biomassa”, diz ao site G1 Ane Alencar, diretora de Ciência do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazónia (IPAM).
Desta forma, só é possível entender o aumento súbito de queimadas se se olhar também para a subida ainda maior de área da Amazónia desflorestada. De acordo com os dados provisórios do INPE, os alertas de desflorestação em julho estimavam que um total de 2.254,9 km² tenha sido desflorestado — o que, a ser confirmado no relatório anual do INPE, que utilizará dados mais precisos, poderá significar um aumento de 278% em relação ao mesmo período do ano passado.
Por isso, a seguir à desflorestação, é quase evidente que vão aumentar as queimadas — geralmente com um intervalo de dois a três meses, de maneira a que a biomassa cortada esteja já seca e seja mais fácil de queimar. As queimadas costumam ainda ser feitas entre junho e setembro, que por norma são os meses mais secos.
“Os dez municípios amazónicos que mais registaram focos de incêndios foram também os que tiveram maiores taxas de desflorestação”, diz ao Estado de S. Paulo o coordenador do IPAM no estado de Mato Grosso, Divino Silvério. Dessa forma, garante este especialista, esses mesmos dez municípios são responsáveis por 37% dos focos de incêndio em 2019 e 43% da desflorestação registado até ao mês de julho na região da Amazónia.
A piorar o problema, além da subida em flecha de área desflorestada e de queimadas, está a seca na região Norte do país, deixando a vegetação em torno das zonas afetadas pouco húmida — e, por isso, mais vulnerável a ser também ela queimada, mesmo que por acidente. E o tempo pode de facto agravar a situação, mas nunca é a única causa, sendo a ação humana — propositada ou acidental — parte da equação. Isso mesmo resumiu o Instituto de Pesquisas Ambiental da Amazónia (IPAM), ao afirmar esta semana que, apesar da seca intensa, “há mais humidade na floresta este ano do que existiu nos últimos três anos”, não podendo por isso o tempo justificar um aumento dos incêndios deste ano face ao ano passado.
Se a isto juntarmos o facto de alguns dos fogos que estão a lavrar na Amazónia serem em locais de difícil acesso, sem estradas e outro tipo de infrastruturas, sobra uma equação preocupante para a maior floresta do mundo.
A desflorestação da Amazónia é maior do que nos governos anteriores?
A desflorestação da Amazónia está longe de ser uma novidade ou uma exceção recente. Pelo contrário, há vários anos que é regra.
A desflorestação da Amazónia começou no início da década de 1970, com a construção da BR-230, a autoestrada conhecida como Rodovia Transamazónica, que se estende ao longo de 5.662 quilómetros, entre a cidade costeira de Cabedelo (no estado do Paraíba) e a cidade de Benjamin Constant, situada no estado do Amazonas, já na fronteira com o Peru.
O que fica claro através da leitura dos dados disponibilizados pelo INPE é que a desflorestação avançou a um ritmo mais frenético entre 1970 e 2008. Nessas quase quatro décadas, a área desflorestada em toda a Amazónia foi de mais de 726 mil km² — o equivalente a mais 815 vezes o Parque Natural da Serra da Estrela. Medido em campos de futebol, a conta é estonteante: são 72,6 milhões hectares, equivalente a 72 milhões de campos de futebol ardidos ao longo de 38 anos.
Os anos que se seguiram imediatamente a 2008 foram de abrandamento na desflorestação da Amazónia, com tendência de descida até 2014, ano em que desapareceram pouco mais de 5 mil km² da floresta amazónica — com a maior descida a ser notada nos do Partido dos Trabalhadores (PT), sobretudo entre o fim do primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva e fim do primeiro de Dilma Rousseff. Porém, entre os últimos anos de Dilma Rousseff e o tempo de Michel Temer, a tendência foi novamente de subida.
Para já, a desflorestação no tempo de Jair Bolsonaro é ainda uma ínfima parte daquela que decorreu no tempo dos seus antecessores — o que não apaga, ainda assim, o ritmo galopante demonstrado pelos dados do INPE, que estimam um aumento de 278% da desflorestação só neste mês de julho, comparando com o mesmo período do ano passado. E a tendência de subida registou-se ao longo de todo o ano, segundo o INPE: em maio, houve mais 34% de área desflorestada face a maio de 2018 e em junho esse valor subiu para 90%.
A par de tudo isto há os números do recuo da floresta amazónica, que desde o total registado em 1970, ano do início da desflorestação, já perdeu praticamente 20% da sua área. Até hoje, as várias iniciativas de reflorestação — levadas a cabo pelos governos de Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff — não foram suficientes para travar o abate de árvores. De acordo com um estudo do Programa de Monitoramento da Floresta Amazônica Brasileira por Satélite (Prodes), só 21% da floresta perdida entre 2001 e 2013 foi recuperada.
O que tem dito o governo de Bolsonaro sobre os incêndios?
O Presidente Jair Bolsonaro já reforçou em público o seu “compromisso” com a Amazónia, que classificou de “pedaço de terra mais rico e sagrado do mundo”. No entanto, as suas declarações também já provocaram polémica. Isto porque, ao tentar encontrar uma explicação para estes incêndios, Bolsonaro destacou como causa possível a mão criminosa das ONG ambientais.
“Acabámos com a passagem de dinheiros públicos para as ONG, de modo que esse pessoal está a sentir a falta do dinheiro. Então, pode haver uma ação criminosa dessas ONG para chamar a atenção precisamente contra mim, contra o governo do Brasil. Esta é a guerra que enfrentamos. Faremos todo o possível e impossível para conter o fogo criminoso ”, afirmou o Presidente esta quarta-feira. Na tese de Bolsonaro, em causa estaria o descontentamento das associações por terem perdido fundos públicos, que estaria a resultar nesta vingança.
No dia seguinte, o Presidente brasileiro voltou à carga: “São os índios, quer que eu culpe os índios? Vai escrever os índios amanhã? Quer que eu culpe os marcianos? É, no meu entender, um indício fortíssimo que esse pessoal da ONG perdeu a teta deles. É simples.” Interrogado sobre se, a confirmar-se a origem criminosa dos incêndios, não poderiam ser os agricultores da agropecuária a provocar os fogos, Bolsonaro voltou à carga: “Pode, pode ser fazendeiro, pode. Todo mundo é suspeito, mas a maior suspeita vem de ONG”, reforçou.
Para o Presidente, o seu governo está perante uma “guerra de informação” sobre a Amazónia. Contra as ONG, contra países estrangeiros, contra a imprensa — acusando-os de estarem a instrumentalizar esta tragédia para atacar o seu executivo.
Já o ministro do Ambiente, Ricardo Salles, apontou o estado do tempo e a ação criminosa como causas destes incêndios: “Tempo seco, vento e calor fizeram com que os incêndios aumentassem muito em todo o País”, começou por reagir o ministro no Twitter.
Tempo seco, vento e calor fizeram com que os incêndios aumentassem muito em todo o País. Os brigadistas do ICMBIO e IBAMA, equipamentos e aeronaves estão integralmente à disposição dos Estados e já em uso.
— Ricardo Salles (@rsallesmma) August 21, 2019
Mais tarde, acrescentou a possível origem criminosa: “Vimos alguns locais em que o fogo foi intencional e alguns em que foi incidental”, explicou. “A situação é realmente preocupante e vamos trabalhar para combater as queimadas”, acrescentou. De acordo com o El País Brasil, o ministro foi vaiado no evento em que estava presente quando abordou este tema.
Sobre as afirmações de que a desflorestação da Amazónia poderá estar a aumentar a um ritmo maior desde que Bolsonaro chegou ao poder, o ministro do Ambiente confirmou em entrevista ao UOL esta quarta-feira haver um aumento da desflorestação, mas rejeitou responsabilidades: “Há um aumento contínuo do desmatamento, que vem de 2012 até agora. Ninguém está a negar um aumento do desmatamento, mas é errado imputar esse crescimento ao governo Bolsonaro.”
Fala-se da Alemanha e da Noruega. Porquê?
Por “fala-se”, entenda-se: Bolsonaro fala da Alemanha e da Noruega, os dois países que financiam o Fundo Amazónia e que, por desentendimentos com o governo brasileiro, vão deixar de fazê-lo.
Em 2014, a Alemanha e a Noruega doaram um total de 14.717 milhões de reais (equivalente a quase 3,3 mil milhões de euros, ao câmbio atual), após celebração de um contrato com o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA). De acordo com o jornal Estado de S. Paulo, o acordo entre aqueles dois países europeus e o Brasil duraria um total de 74 meses, terminando assim em agosto de 2020. Porém, os dois países congelaram recentemente as prestações que enviavam para o Fundo Amazónia, em protesto contra a subida da desflorestação demonstrada pelos números do INEP.
“Apoiamos a região amazónica para que haja muito menos desflorestação. Se o Presidente não quer isso no momento, então precisamos de conversar. Eu não posso simplesmente continuar a dar dinheiro enquanto continuam a desflorestar”, afirmou a ministra alemã do Ambiente, Conservação da Natureza e Segurança Nuclear, Svenja Schulze, em declarações à Deutsche Welle.
Também do lado do governo norueguês, o principal financiador do Fundo Amazónia, houve queixas — e, da mesma forma, um corte de financiamento. “O Brasil quebrou o acordo com a Noruega e a Alemanha desde que suspendeu a diretoria e o comité técnico do Fundo para a Amazónia”, afirmou o ministro do Ambiente norueguês, Ola Elvestuen, em entrevista ao Dagens Naeringsliv. “Eles não poderiam ter feito isso sem a concordância da Alemanha e da Noruega”, disse. “O que o Brasil fez mostra que já não querem parar a desflorestação.”
Depois destes desenvolvimentos, Jair Bolsonaro entrou a atacar contra aqueles dois países europeus, dizendo que o Fundo Amazónia é uma forma de “comprar às prestações” a “soberania” do Brasil.
“As demarçações [contempladas no contrato do Fundo Amazónia] não são para proteger o índio, mas para deixar intacta a maior parte possível dessa área para que, no futuro, outros países venham nos explorar aqui. Você acha que é coração muito grande desses países em ajudar? Ele não querem ajudar, todo o mundo sabe que não tem amizade entre países, tem interesses. O que nós temos na região amazónica o mundo não tem. O mundo cresce 70 milhões de habitantes por ano, esse pessoal precisa de algo para se alimentar, para evoluir e vem de onde a matéria-prima? Dessa área”, disse Jair Bolsonaro.
Na sua resposta, Jair Bolsonaro atingiu aqueles dois países de forma isolada.
Para a Alemanha, disse: “Eu queria até mandar recado para a senhora querida Angela Merkel, que suspendeu 80 milhões de dólares para a Amazónia. ‘Pega essa grana e refloreste a Alemanha, ‘tá ok? Lá está precisando muito mais do que aqui'”.
Para a Noruega, publicou um excerto de um telejornal que falava de caça à baleia — que, afinal, não eram na Noruega mas antes nas Ilhas Faroé, que fazem parte da Dinamarca. “Noruega? Não é aquela que mata baleia lá em cima, no Polo Norte não? Que explora petróleo também lá? Não tem nada a oferecer para nós”, reagiu o Presidente do Brasil.
– Em torno de 40% do Fundo Amazônico vai para as… ONGs, refúgio de muitos ambientalistas. Veja a matança das baleias patrocinada pela Noruega. pic.twitter.com/46hpQnHSJA
— Jair M. Bolsonaro (@jairbolsonaro) August 19, 2019
Apesar das críticas de Jair Bolsonaro à Noruega e à Alemanha e às intenções por trás do Fundo Amazónia, o governo brasileiro está a usar o dinheiro daquele fundo para combater os incêndios que estão neste momento a consumir partes da floresta amazónica, escreve o Estado de S. Paulo. Segundo aquele jornal, o Fundo Amazónia tem agora 3 milhões de reais em caixa (667 mil euros), tendo já esse dinheiro destinado a custear pelo menos uma parte da compra de 12 veículos ligeiros e de dois camiões destinados ao combate contra os incêndios.
Que fumo é este que chega até ao Peru e deixou São Paulo às escuras?
Com tantos focos de incêndio em tantas partes do Brasil, o fumo acabou por chegar a vários sítios, dentro e fora do país.
No Peru, mais propriamente na província amazónica de Tambopata, o jornal El Comercio fala de uma “fina capa de fumo” que chega do Brasil e ali se instala — mas que ainda não chegou ao ponto de ter um odor forte.
Porém, para lá da floresta amazónica, o efeito mais célebre destes incêndios fez-se sentir no Sul do Brasil, mais propriamente em São Paulo, esta segunda-feira. “Gente, são 15h mesmo”, relembrou-se no Twitter, às três da tarde, quando a cor do céu sugeria em tudo que seria muito mais tarde. Mas não, era antes um fenómeno meteorológico causado pelo encontro de uma frente fria com o fumo dos incêndios na Amazónia.
Em São Paulo, houve mesmo quem tivesse recolhido água da chuva de cor escura, que mais tarde foi analisada pelo Instituto de Química da Universidade de São Paulo. Os resultados identificaram na água a presença de reteno, uma substância resultante da queima de biomassa, como acontece nas queimadas. A Universidade Municipal de São Caetano também fez análises, chegando à conclusão de que a concentração de reteno na água da chuva foi, à altura, sete vezes maior do que o normal.
Em declarações ao site G1, o físico Theotonio Paulivequis, da Universidade Federal de São Paulo, explicou que ao contrário da poluição comum, que circula abaixo do nível das nuvens, a fuligem provocada por aquelas queimadas sobe até um nível mais alto, acabando por embater nas nuvens. “Ela bate de frente com a nuvem de chuva, que absorve a fuligem e forma essa espécie de gosma que dá origem às nuvens escuras e avermelhadas e também à chuva ‘preta’, mais escura do que o normal”, disse aquele académico.
Além de São Paulo, há também relatos de nuvens negras em cidades maias próximas dos incêndios, como Porto Velho (no estado amazónico da Rondônia), Porto União (Paraná), Corumbá (Mato Grosso do Sul) e também no estado do Acre.
Apesar do consenso entre especialistas meteorológicos sobre este fenómeno, o ministro do Ambiente do Brasil, Ricardo Salles, sugeriu que a ligação entre os incêndios e o “apagão” de São Paulo é uma notícia falsa, fruto de “sensacionalismo na área ambiental”.
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Que medidas é que Bolsonaro tomou para a floresta?
O ministro do Ambiente Ricardo Salles deu uma entrevista ao site UOL esta quarta-feira, onde explicitou as medidas que o governo Bolsonaro propõe para a floresta. Em causa estão três eixos: pesquisa para desenvolver economicamente a Amazónia; reforço nas operações de fiscalização e punição de atividades ilegais na floresta; e um novo sistema de monitorização e controlo da desflorestação.
Quanto ao primeiro, Salles explica que através da criação de uma Força-Tarefa Pró-Amazónia será possível investigar e perceber que alternativas económicas privadas existem para a floresta, dando o exemplo das indústrias farmacêuticas e de cosméticos como possíveis alternativas. Quanto ao ponto da fiscalização e punição, essas ações deverão centrar-se em duas áreas: “legalização” da chamada “garimpagem” ilegal, ou seja, a exploração mineira artesanal e não regulada, com ajuda da Agência Nacional de Mineração. A segunda parte desta área será o destacamento de 50 a 100 guardas da Força Nacional, em conjunto com o ministério da Justiça de Sérgio Moro, para fiscalizar a desflorestação no local.
Por fim, há ainda o ponto da monitorização da desflorestação, que atualmente é assegurada pelo INPE. Salles anunciou que o governo Bolsonaro pretende adotar um novo sistema de monitorização de origem norte-americana, o Planet, que produz imagens mais detalhadas do que o sistema do INPE que, assegura, continuará a ser usado em paralelo. Para isso, o ministério já disponibilizou cinco milhões de reais para contratar uma empresa que assegure o serviço no primeiro ano — e, esta quarta-feira, o edital do concurso foi mesmo publicado.
O principal problema com esta medida é que a decisão de contratar uma empresa privada para assegurar este controlo surge depois de uma polémica entre o Presidente e o anterior diretor do INPE, que foi demitido pelo próprio Bolsonaro. O Presidente colocou em causa a independência do organismo, dizendo que os dados tornados públicos sobre a desflorestação não podem corresponder à realidade: “Se toda essa devastação que vocês nos acusam de estar a fazer e que já foi feita no passado [acontecesse], a Amazónia já teria sido extinta”, afirmou o Presidente brasileiro no mês passado. “Tenho a convicção de que os dados são mentirosos.” Assim sendo, Bolsonaro decidiu demitir o diretor do organismo, Ricardo Galvão, dizendo que “até parece que ele está ao serviço de alguma ONG”. O cientista respondeu falando em “covardia” e “conversa de botequim”.
Ao mesmo tempo que anuncia estas medidas, o governo Bolsonaro também equaciona voltar a permitir a construção de centrais hidroelétricas na Amazónia. Esta quarta-feira, o governo anunciou uma série de privatizações, concessões e leilões e, dentro do grupo, estão as hidroelétricas Bem Querer (em Roraima) e Tabajara (em Rondônia). A decisão é particularmente relevante num momento em que a Amazónia arde já que, como explica a revista Exame no Brasil, esses mesmos projetos foram travados durante os governos de Lula da Silva e Dilma Rousseff por provocarem forte impacto ambiental na região, bem como problemas com as terras dos indígenas.
Que críticas estão a ser feitas à política ambiental do governo de Bolsonaro?
É por causa de medidas como esta, a par das declarações de Bolsonaro contra as ONG, que vários especialistas da área ambiental têm dirigido duras críticas a este governo brasileiro. Por um lado, as próprias ONG defendem-se quanto à acusação do Presidente de serem elas as responsáveis pelos incêndios: “É uma declaração leviana, irresponsável, diversionista do Presidente. Quem é que ele acha que está enganando? Os dez municípios com maior foco de incêndio este ano na Amazónia são os mesmos dez municípios que têm o maior número de desmatamentos. Só não vê quem não quer”, afirmou Raul Valle, diretor da área de Justiça Socioambiental da WWF Brasil, citado pela Globo.
Já Virgílio Viana, da Fundação Amazónia Sustentável, referiu a troca de palavras com os governos da Alemanha e da Noruega e lamentou que o governo ainda não tenha proposto alternativas a esse financiamento: “Ao dizer que não precisa destes recursos, esperamos que ele coloque recursos orçamentários para cobrir o buraco deixado pela comunidade internacional. Cerca de 99% dos recursos do fundo vem de fora”, lembrou o ativista.
Também a antiga ministra do Ambiente e ex-candidata presidencial independente Marina Silva acusou o governo Bolsonaro de estar a promover um clima propício ao ataque à Amazónia. Num texto publicado na edição brasileira do El País, onde fala em “Holocausto” na floresta, a ex-ministra não poupou nas palavras: “A Amazónia está sendo queimada por uma mistura de ignorância com interesses truculentos. O governo está inaugurando um tempo de delinquência livre, em que se pode agredir a natureza e as comunidades sem receio de punição”, alertou a ambientalista.
E os recados não chegaram apenas depois de a Amazónia começar a arder desta forma. Em maio, Marina Silva e outros sete antigos ministros do Ambiente emitiram um comunicado onde criticavam a política ambiental deste governo, que classificavam de “afronta à Constituição”. Em causa, afirmavam, estão ações como a transferência do Serviço Florestal Brasileiro do Ministério do Ambiente para o da Agricultura, a extinção da secretaria de mudanças climáticas, as posições do governo face ao Acordo de Paris que “reforçam a negação” das alterações climáticas, a “falta de combate ao crime organizado na desflorestação” da Amazónia e o “afrouxamento” do licenciamento ambiental, entre outras críticas. “Estamos diante de um risco real de aumento descontrolado de ‘desmatamento’ [desflorestação] na Amazônia”, avisava o texto. “Os frequentes sinais contraditórios no combate ao crime ambiental podem transmitir a ideia de que o desmatamento é essencial para o sucesso da agropecuária no Brasil.”
O que se passa na Amazónia pode ser fruto de uma política de décadas e, como alegam alguns críticos, pode estar a ser agravado pelas ações deste governo. Mas, independentemente da origem do problema, certo é que o impacto daquilo que está a acontecer na floresta amazónica já é esmagador. Jerônimo Sansevero, professor do Departamento de Ciências Ambientais do Instituto de Florestas da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), explicou isso mesmo à BBC, falando numa perda “irreparável”, a maior das “últimas três décadas”. A Amazónia, explicou, sofreu um trauma, da mesma maneira que os seres humanos sofrem traumas: “Alguns traumas a gente consegue superar, mas outros têm um impacto tão grande que você não consegue voltar ao que era antes”, disse. Podemos estar perante o segundo caso.
*Artigo corrigido às 16h10. A área desflorestada em toda a Amazónia (726 mil km2) corresponde a 815 vezes o tamanho do Parque Natural da Serra da Estrela e não oito vezes, como estava escrito inicialmente