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Cinco semanas. Dez crimes. O Verão como fundo. E no Observador o melhor álibi das suas férias
É o que vai encontrar em Crimes quase Perfeitos, deste sábado, 4 de Agosto, até domingo, 2 de Setembro
Rapou o cabelo logo que o marido foi preso e desde aí andava descalça, vestida com farrapos, coberta com um xaile. É assim que um dia, nas primeiras semanas de Março de 1932, entra na redacção da revista Repórter X, instalada na Rua do Loreto, em Lisboa. E é também assim que se deixa fotografar.
Maria do Carmo é cigana. Os colegas de Reinaldo Ferreira percebem o interesse do caso que ela lhes traz. Escolhem para título do artigo uma expressão que prometia – “a cigana-detective” – e apresentam-na aos leitores (e supostas leitoras) como “um exemplo de dedicação e de sacrifício, dignos de serem conhecidos e auxiliados por todas as mulheres portuguesas.”
O motivo daquela dedicação e sacrifício, o seu marido, estava agora preso, a cumprir uma pena de 25 anos, mas Maria do Carmo acreditava na sua inocência e estava decidida a prová-lo. Era isso que vinha dizer aos repórteres da revista.
“Não é assim que se bate numa criança”
Aprende-se com os anos que aquilo a que se chama verdade não é coisa rígida, como seria de supor, antes uma matéria plástica e frequentemente curta demais, cobrindo apenas parte do que devia cobrir, o que justifica que tantas vezes se fale de meias-verdades e de verdades possíveis, sendo a maioria delas verdades provisórias, como adiante se confirmará.
Naquele dia 9 de Novembro de 1930, a dois dias do São Martinho, já há muito que tinha terminado o movimento da feira no Largo Arneiro, que como sempre deve ter sido empolgante, já que era vulgar na Golegã um cavalo mudar de dono e um dono de cavalo duas e três vezes num dia, resultando sempre destas trocas que todos achavam que tinham ficado a ganhar.
Passava pouco das nove horas da noite quando se ouve um tiro, seguido de correrias, encontrões, tropel de cavalos, cada um procurando uma direcção apropriada que o levasse dali para fora, antecipando respostas a perguntas futuras: não sei, não vi, não conheço, até já tinha abalado.
No meio do terreiro está ensaguentado um corpo no chão, o do cigano Joaquim Ezequiel, rodeado pelos familiares que de imediato o levam, primeiro de automóvel para o Entroncamento, a seguir para Lisboa.
À porta do Hospital de São José, logo às primeiras horas da manhã, já o ferido se tornara cadáver, começam a juntar-se dezenas de ciganos. Os lamentos e alarido vão em crescendo e redobram quando, a meio da tarde, chega a viúva, de 19 anos, com um filho de vinte dias ao colo. Chamava-se Lucília Ramos e tinha casado com o Ezequiel há menos de um ano.
Por esta altura já estava identificado o criminoso, também ele cigano, chamado José Domingos Calixto. Segundo O Século do dia seguinte tudo começou quando o Calixto deu duas bofetadas numa criança por um motivo fútil. Joaquim Ezequiel censurou-o: “Não é assim que se bate numa criança.” Calixto, ao mesmo tempo que puxa de uma pistola, responde-lhe: “Para homens é assim!”. Instantes depois, explica O Século, Joaquim Ezequiel estava no chão numa auréola de sangue. Versão a que o Diário de Notícias pouco acrescenta a não ser que o Calixto era “indivíduo de maus instintos”.
Com o rodar dos dias vai-se sabendo algo mais: que o crime teve origem no encontro entre dois grupos de ciganos. O primeiro era formado pela vítima, Joaquim Ezequiel, pelo seu pai, João Ezequiel, e por mais dois irmãos menores. O segundo grupo tinha como figura patriarcal Domingos Estrela, o “Quico”, que ia acompanhado de um irmão, António Moura, o “Moritanga”, de um filho, António Estrela, o “Estrelado” (também chamado “Ruína Estrelado”, por ser frequente deixar alguma destruição atrás de si) e do seu genro, José Calixto, o criminoso, e ainda de um irmão deste, Viriato Calixto.
O Quico e o João Ezequiel, os mais velhos dos dois grupos, tinham relações de cortesia. Ao cruzarem-se, o grupo do Quico convida o grupo do João Ezequiel a entrar na taberna do Pichenela. Uma vez lá dentro, o Ruína Estrelado deixa cair uma navalha aberta, enorme, que levava escondida numa das mangas. Perante a estranheza do João Ezequiel, o Ruína Estrelado responde dando uma bofetada numa criança. (Nas primeiras notícias tinha sido o Calixto o autor das bofetadas mas ninguém deu pela contradição).
O velho João Ezequiel censura o gesto. Os dois grupos discutem. Desafiam-se. Segundos depois estavam na rua, onde o Joaquim Ezequiel procura defender o pai. É então que o Calixto dispara sobre ele, com uma pistola Savage.
O grupo do Quico, coloca-se em fuga. Calixto, Viriato e o próprio Quico montam três cavalos que tinham guardado ali perto – indício mais que suficiente, como logo se há-de dizer, de que o crime tinha sido planeado e que nesse planeamento ao Ruína Estrelado teria sido confiado o encargo de conduzir o Ezequiel à taberna, onde o Calixto o devia liquidar.
“Acabava de cozer a minha pobre mulher com facadas”
Enquanto se multiplicam as versões sobre os acontecimentos que levaram à morte do Ezequiel, em Lisboa a concentração de ciganos à porta do Hospital de São José, calculada em meio milhar de almas, tinha-se transformado numa curiosidade etnográfica para os habitantes da Mouraria e bairros adjacentes, que iam lá ouvir as carpideiras, ver o “garridismo” das cores das roupas, os gestos excêntricos dos amigos da vítima e os corpos dos familiares que se “rebolavam no chão”. Estava-se na véspera do funeral e continuavam a chegar ciganos a Lisboa. Às tantas corre a notícia (falsa) da morte de Lucília, a jovem viúva do Ezequiel, e foi, segundo os jornais, “como se todos acabassem de ser atacados de loucura”. Por fim, feita a autópsia, ao abrir-se a porta do Necrotério, houve uma invasão da câmara ardente.
Estas manifestações de dor explicavam-se naturalmente pela idade do Joaquim Ezequiel, 26 anos, e pelas circunstâncias da sua morte mas também pela importância da família em toda a região em volta da Golegã. Há muito que “os Ezequiéis” tinham deixado de ser nómadas e podiam ser já considerados uma família abastada.
A família da vítima podia assim oferecer uma “elevada quantia” a quem conseguisse deitar a mão ao José Calixto e seus cúmplices, o que veio a acontecer no dia 20 de Dezembro. O agente Mira Leal, da Polícia de Investigação Criminal (a PIC, antepassada da PJ) tinha batido Almeirim, Golegã e Santarém a cavalo com vários ciganos. Mas é já no Algarve que o assassino vem a ser preso com o sogro, o Quico. Tinham atravessado metade de Portugal.
Não era a primeira vez que o criminoso agora preso se tinha envolvido em situações de violência, como o testemunhava uma cicatriz de bala no meio da sua cara picada de bexigas. Tinha já assassinado um homem a tiro, também na Golegã, em 1922, e por isso cumpriu seis anos na Penitenciária. Pena leve, tendo em conta a tabela do deve e haver judicial então em vigor e que se devia explicar por atenuantes aceites pelos juízes: possivelmente porque o homem que matara, por sinal o seu tio António João, “acabava de cozer a minha pobre mulher com facadas” – como o próprio Calixto explica.
Do Pichenela ao Peixe Frito
Detido pouco depois o Ruína Estrelado, estando já encarcerados o Calixto e o Quico, finalizado também o processo, estavam reunidas todas as condições para o julgamento, que se inicia no dia 30 de maio de 1931, na Golegã. Uma força da GNR zela para que a ordem seja garantida, porque eram muitos os que queriam conhecer os detalhes do crime, agora de viva voz e pela boca dos mais próximos assistentes, como Joaquim Barnabé que vem dizer ter avistado o Calixto a correr com a arma engatilhada em direcção ao Ezequiel (quando este já estava agarrado pelo Quico e pelo Ruína Estrelado) e ter disparado.
Ou o Manuel Cachado, mais conhecido por “Piranga”, que testemunha ter o Calixto passado a correr para a taberna do Pichenela, a mesma onde tinha começado o conflito, no lado nascente do Largo do Arneiro, e voltado pouco depois, já armado. Diz ainda o Manuel Cachado que viu o Calixto aproximar-se do grupo em luta e disparar.
António da Libânia, que no momento dos factos estava à porta de outra tasca, o Peixe Frito, na parte norte do Largo do Arneiro, diz também que viu o Calixto a correr em direcção ao Ezequiel, Calixto esse que ele, António da Libânia, agarrou, tentando dissuadi-lo, o que não conseguiu, em parte porque um varapau que levava se lhe embaraçou nas pernas, fazendo-o cair, o que permitiu ao Calixto libertar-se e partir em direcção ao conflito.
Estes três testemunhos, a que se juntaram outros de três residentes em Ponte de Sôr, que estavam na Golegã de passagem e também viram o Calixto empunhar uma arma, tornavam impossível não o condenar. Oito anos de prisão maior seguidos de doze de degredo ou em alternativa a 25 anos de degredo em possessão de 1ª classe agravada em seis anos de prisão no local de degredo, além de 26.000$00, ou seja 26 contos, em indemnização e imposto foi a sentença lida na Golegã.
Uma sentença feita à dimensão da projecção que o caso tinha tido e da emoção provocada. O Ruína Estrelado foi condenado só a oito meses de prisão correccional, por ter furtado a arma do Ezequiel, e o sogro do Calixto, o Quico, fica absolvido.
Curiosamente nenhuma das testemunhas era cigano. Mas o tribunal não estranhou.
“Um rosário de grilhetas, um colar de bolas de chumbo”
Calixto está já a ferros há alguns meses, experiência que para ele não era nova. Diferente é sim a dimensão da pena – 25 anos – e o sentimento de injustiça: ele, José Domingos Calixto, também designado Calixto dos Santos ou ainda Domingos César da Silva, está inocente.
Não era apenas ele que o garantia lá do fundo da prisão. Até porque as celas das prisões nunca foram boas caixas de ressonância para protestos de inocência. Cá fora havia quem dissesse o mesmo, a começar por muitas testemunhas presenciais que nunca chegaram a depor no julgamento. Esse era aliás um dos problemas maiores deste crime: o excesso de testemunhas. Tantas e de tal qualidade que umas falaram demais e outras nunca chegaram a falar.
E é aí – nas testemunhas que não foram ouvidas – que Maria do Carmo sabe estar o meio para provar a inocência do marido. Com o agente Jorge Augusto Miguens, da PIC de Lisboa, corre o país atrás delas. Deviam formar um estranho par, ela no desalinho de quem no desespero se despojara de tudo, ele de fato e gravata, como competia a um funcionário do Estado numa época em que o Estado cuidava muito da sua aparência. Completavam-se. A ela cabia o papel de cão de cego, capaz de o guiar no emaranhado de cumplicidades, parentelas e dívidas de gratidão que levaram tantos ciganos a calar o que viram naquela noite de vésperas de São Martinho. Ela conhecia-os a todos e a todos os seus silêncios. Mas só ele, o agente da PIC, os fazia falar, com a alquimia da persuasão, mistura de ameaça, apelo à piedade e outros ingredientes que não vamos indagar, até os deixar prontos a contar o que tinham visto e, mais importante, a arrancar-lhes o compromisso de um testemunho em tribunal. Porque não era outro o objectivo da cigana-detective e do detective-detective: uma revisão do processo e um novo julgamento do Calixto.
Quando Maria do Carmo visita as instalações da Repórter X já esta demanda pelas testemunhas ia a meio. O que a leva ali é a procura do apoio popular. Maria do Carmo sabe que para levar o caso do marido ao coração dos portugueses precisa dos jornalistas.
A revista Repórter X, claro, aderiu à causa. De Maria do Carmo diziam “Cada passo que dá, desloca um rosário de grilhetas, um colar de bolas de chumbo.” Pretendiam eles dizer que havia um grave obstáculo: a investigação, apesar de estar a cargo de um organismo do Estado, a PIC, obrigava a despesas que tinham de ser suportadas pelos interessados, Maria do Carmo e José Calixto. Ora, “o casal mártir queimou já o misérrimo pecúlio que possuía”. A Repórter X organizou por isso uma subscrição que parece nunca ter passado dos dois primeiros donativos. Um dos quais era da própria redacção.
Maria do Carmo não precisa de muito mais. Em princípio de Março de 1932 separa-se do agente Miguens, que a deixa em Ponte de Sor e abala a pé para Castelo de Vide, a mais de 40 quilómetros. Parte em busca de António Moura, o “Moritanga”, irmão do seu pai, e um dos presentes na taberna do Pichenela naquele fatídico 9 de Novembro de 1930. Encontra-o perto de Assumar, onde acaba por ser agredida pela tia mas consegue que o tio seja detido e que se disponha a fazer uma confissão completa a Jorge Augusto Miguens onde revela aquilo que Maria do Carmo já sabia desde o primeiro dia: o autor do crime da Golegã não era o seu marido mas sim o seu pai. Quem matara o Joaquim Ezequiel fora Domingos Estrela, o “Quico”.
Para salvar o marido, Maria do Carmo tem de acusar o pai. Desde 9 de Novembro de 1930, que entre os dois deveres de fidelidade, ao marido e ao pai, que a cigana Maria do Carmo tinha feito a sua escolha.
“Este Ruína é a desgraça de nós todos”
A declaração do Mouritanga era a peça que faltava para Miguens encerrar as investigações. Já tinham sido ouvidas muitas testemunhas e algumas limitavam-se a repetir agora, em 1932, o que tinham dito na primeira investigação. Só que desta vez as suas informações não iriam ser desprezadas.
Uma dessas testemunhas, Manuel Luís Calado, empregado numa taberna, tinha dito logo em Novembro de 1930 aos agentes da PIC responsáveis pela investigação que o assassino era o Quico e até o identificou presencialmente quando ele foi colocado ao lado do Calixto. Mas nada disto foi passado a auto.
O agente Miguens, pelo contrário, vai registando estas declarações e descobrindo observadores ignorados. Um deles, Anselmo Gonçalves, estava ocasionalmente na Golegã e por isso não conhecia os ciganos mas presenciou a cena. Ao regressar à sua terra, a Carregueira, contou que tinha visto um velho de barbas brancas dar um tiro num rapaz novo. Mais tarde ouviu dizer que o criminoso da Golegã se chamava Calixto e logo admitiu ser esse o nome do velho de barbas brancas.
Vem a ser um dos filhos do Quico (o velho de barbas brancas), Jacinto da Silveira, que irá dar um testemunho decisivo: no momento em que a zaragata aconteceu ele e sua mulher, Francisca Rim, estavam junto do cunhado Calixto, por sinal muito bem dispostos, a trocarem uma piadas. Tudo aconteceu mais ou menos a 50 metros deles e só souberam do crime quando ouviram dizer “Mataram um homem”. Logo a seguir viram passar o Quico que lhes grita: “Este Ruína é a desgraça de nós todos.” Outro familiar, Joaquim Badalo, genro do Quico, garante também não ter o Calixto (ao contrário dele próprio) participado nos acontecimentos.
Se estes confessaram a verdade, o que dizer das testemunhas que foram a tribunal acusar o Calixto em 1930? Que mentiram, naturalmente. O agente Miguens conseguiu até apurar que o João Ezequiel pagou 150 escudos a cada um destes declarantes, entregando-lhes um papel com aquilo que deviam dizer. O grupo de testemunhas que veio de Ponte de Sôr para depôr tinha a recebê-los na Golegã um grupo de ciganas que os levaram em visita guiada ao local do crime e lhes explicaram a versão que deveriam apresentar em tribunal. Um deles, António Monteiro, nem sequer estava na Golegã na data do crime.
Manuel Cachado a testemunha que declarara ter visto o Calixto a correr para a taberna do Pichenela e voltar pouco depois, aproximando-se do grupo em luta e abrindo fogo é agora desmentido pelos companheiros que estavam com ele e que dizem que nada viram .
“É esse o café que me queres oferecer?”
Como se passaram então as coisas? Lúcio da Conceição, que participou nos acontecimentos, diz que se encontrou com “os Ezequiéis” e que estes o convidaram para a taberna do Pichenela, onde já estava o grupo do Quico. Assistiu ao episódio da navalha que o Ruína Estrelado deixa cair e à reacção do João Ezequiel: “É esse o café que me queres oferecer?” Já na rua, o Joaquim Ezequiel tem uma espingarda que não quer largar. O Quico diz várias vezes: «Larga». Às tantas aponta uma pistola e dispara. O Lúcio da Conceição, que era primo do morto, ajudou o João Ezequiel a arranjar um automóvel onde colocaram o ferido. Os outros ciganos tinham-se posto em fuga e o Lúcio partiu também para o Redondo, onde morava.
Calixto também foge, embora não fosse culpado. Como explica ao jornalista Mário Domingues: “Os ciganos quando há grandes desordens costumam abalar todos, com receio da vingança dos povos”. Além disso toda a família lhe pedia: “Não abandones o velhinho!” O velhinho era o Quico. Por isso partiram os dois para o Algarve, um inocente, outro assassino, sem adivinhar que iram trocar de papéis em breve. Ou melhor, teriam novos papéis: o verdadeiro e o falso assassino.
Nesta altura Domingos Quico também ainda não imaginava que iria negar o crime. Aliás quando é preso confessa logo a sua autoria. Só depois, quando percebe que o Calixto está sendo apontado como homicida é que resolve tirar partido da situação, negando o que antes tinha dito. Logo a seguir começa a ter momentos de arrependimento. Os seus companheiros de prisão na Golegã, que foram testemunhas destas crises de consciência, ouviram-lhe um dia uma frase enigmática: “Se o Calixto for condenado visto-me de luto como um corvo porque nunca mais tenho alegria neste mundo, pois me obrigaram a dizer que foi ele o criminoso e não eu.”
Só no decurso das segundas investigações se percebe a origem da falsa acusação. Foi o pai da vítima, João Ezequiel, que logo no Hospital de São José pôs a correr a versão de que o assassino era o Calixto, versão que os jornais divulgaram logo no dia posterior ao crime e se tornou definitiva.
O motivo era simples e nada devia à nobreza de sentimentos: o Quico era figura influente nas feiras do Alentejo e acusá-lo significava, como se diria hoje, perda de penetração naquele mercado. E havia ainda que ter em conta que o Calixto solto procuraria vingar o sogro que adorava.
Quanto ao Quico (amor de pai a quanto obrigas), tudo afinal se devia ao feitio desembestado do Ruína Estrelado, que o obrigou a matar. Bernardo da Silva, outro filho do Quico que não assistiu aos distúrbios, diz que o pai, quando chegou junto dele, lhe confessou chorando que era o autor do crime e que o cometera para defender o Ruína Estrelado.
Um dia, numa oficina de ferrador
25 de Junho de 1936. José Calixto está numa oficina de ferrador, no Rossio ao Sul do Tejo, para os lados de Abrantes. Tinham passado cinco anos sobre aquele dia em que o Ruína Estrelado deixou cair uma navalha no chão da taberna do Pichenela…
Calixto faz a sua vida normal desde que a 6 de Abril de 1934 saiu do Limoeiro, libertado sob fiança, em resultado da decisão do Supremo Tribunal de Justiça que autorizou a revisão da sentença.
Há muito que não era avistado o seu sogro, o Quico, a quem ele Calixto tanto devia e por quem teve tanta admiração. Como confidenciou ao jornalista Mário Domingues, noutro tempo “se me dissessem: ‘Escolhe quem há-de morrer, teu pai ou teu sogro?’ – eu preferia que morresse meu pai, tal o amor que tinha a meu sogro”.
Calixto aguardava agora o novo julgamento, previsto para Outubro de 1936, que devia anular a sentença de 31 de Maio de 1931. A vida parecia ter entrado nos eixos e nada indicava que regressasse aos sobressaltos de outrora. Mas nesse 25 de Junho de 1936 o destino troca-lhe de novo as voltas naquela oficina de ferrador: ao examinar um cavalo José Calixto leva um coice. É transportado para o Hospital da Misericórdia de Abrantes mas acaba por morrer na Clínica do Dr. Manuel Fernandes, doze dias depois, a 7 de Julho de 1936.
O funeral foi no dia seguinte, acompanhado pela filarmónica do Grémio Musical Tramagalense. E também aqui houve carpideiras e sentido pesar de muitos ciganos. O seu nome ainda se conservou nos jornais por mais alguns dias, devido a uma polémica que se criou sobre a falta de assistência no Hospital da Misericórdia de Abrantes durante as 48 horas em que José Calixto lá permaneceu. Especulava-se que poderia ter sido salvo se tivesse sido operado mais cedo.
Depois José Calixto caiu no esquecimento. Apenas Maria do Carmo deve ter continuado a recordar aquele homem alto, de ombros largos e cabelo louro, que um dia, três décadas atrás, a raptara, tinha ela apenas 12 anos.