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A tragédia escondida numa noite de Verão

Uma cadela ladra. Uma criança aparece morta. Um homem é acusado. 99 testemunhas declaram sobre o que ouviram dizer. E uma mulher repete: "Nega sempre".

Este é o último artigo da série de Verão “Crimes Quase Perfeitos”. Pode ler todos os textos aqui.

Ladra uma cadela com fome. É Verão. E é noite. Guardavam-se as eiras porque o cereal tinha sido ceifado há pouco. Daí a presença da cadela, para fazer companhia mas também para ajudar, dar um aviso. Nalguns casos é a família toda que por ali fica, estendida no chão, porque naquelas noites quentes dormia-se melhor ao relento. Um deles vê passar um vulto pequeno, de rapaz. Terá havido um grito abafado, que praticamente ninguém ouve. Depois silêncio.

Faltava uma hora para o nascer do sol do dia 17 de Julho de 1927 quando António da Fonseca encontra um corpo caído numa valeta à beira da estrada. Valetas de estrada eram assuntos de cantoneiros e, por isso, ele corre a chamar o funcionário competente, neste caso João Rasteiro, cantoneiro do Vimeiro, a morar ali perto. Era a autoridade mais próxima e, à falta de melhor, servia para as primeiras providências a tomar.

Rasteiro vai com António da Fonseca ao local onde se encontrava o corpo, que se apresenta deitado de costas. O cantoneiro diz não ter dificuldade em reconhecê-lo, é de Luís dos Santos, criança ainda, apenas onze anos, filho de Raimundo dos Santos e de Bárbara de Jesus. E diz saber que os pais têm uma propriedade a 800 metros dali, sendo provável que lá estivessem, a dormir na eira. Mal são chamados aparece logo Bárbara e a seguir o marido.

O cantoneiro fica a guardar o pequeno cadáver, antes que consiga que alguém o substitua para poder ir chamar o regedor. Começa a juntar-se gente e logo ali se tecem as primeiras conjecturas: o assassino teria sido José Lagarto, ou talvez Tomás Cartaxo, ou então José Correia, segundo as hipóteses apresentadas pelo pai da criança. Entre os presentes há quem repare numa mancha vermelha nas calças de Rasteiro. E outro que acha estranho que ele ande a tentar apagar pegadas em volta do corpo de Luís dos Santos.

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Noventa e nove testemunhas

Os dias seguintes são preenchidos com divagações: quem seria o criminoso? Há quem aponte o próprio pai da vítima, Raimundo dos Santos. Os pais são sempre os primeiros suspeitos. São efectuadas prisões, modo prático de inquirir, entre elas a de Rasteiro, que esteve detido oito dias, negou qualquer culpa e foi solto. Aconteceu isto três vezes. A investigação pedalava em seco.

Bárbara de Jesus, mãe de Luís Santos, a criança que aparece morta a 17 de Julho de 1927, numa valeta de estrada no Vimeiro (imagem cedida por ANTT)

Até que uma testemunha resolve interromper o silêncio em que até aí se tinha mantido. António da Luz Martins era um dos que tinha dormido naquela noite numa eira próxima do local da descoberta do corpo e aparece em tribunal a revelar que, pelas 23h, tinha visto Rasteiro na estrada, a não muito mais do que cem metros do lugar onde pernoitava, a perseguir um rapaz, tendo ouvido ruído de luta e avistado logo de seguida Rasteiro, que o agarrava e atirava ao ar, acontecendo isto quatro vezes.

A revelação, além de surpreendente, teve o condão de desobstruir outras gargantas. Por exemplo a de Álvaro Lourenço, proprietário já idoso, de 72 anos, que uma semana antes do trágico acontecimento vira Rasteiro correr atrás do rapaz a dizer que o matava, informação que um seu genro, Manuel da Costa, confirma em absoluto. Também Paulo Manuel Cipriano, jornaleiro de A-dos-Cunhados, com 32 anos, tinha avistado o cantoneiro dias antes aos gritos para Luís: “Tu andas a dizer que roubo as batatas ao teu pai. Hei-de matar-te.” António Apolinário, que o acompanhava, atesta a informação.

Eram, em qualquer dos quatro casos, testemunhas de vista. A estas logo se somam as de ouvir dizer. Em pouco tempo o cantoneiro entra em prisão preventiva, mas a investigação arrasta-se quase dois anos, ao longo dos quais terão sido interrogadas 99 testemunhas.

O julgamento de Rasteiro tem por fim lugar na comarca de Torres Vedras. Quem a ele assistiu chegou à conclusão que o tribunal não podia ter decidido de forma diferente. A mancha nas calças, o gesto de apagar as pegadas, mas sobretudo os depoimentos das várias testemunhas, com destaque para o de António da Luz Martins, justificavam plenamente a sentença lida a 14 de Fevereiro de 1930. Rasteiro é condenado a 8 anos de prisão maior celular, seguidos de 12 de degredo ou, em alternativa, a 25 anos de degredo. Ao ouvir ler a sentença, o agora ex-cantoneiro gritou, barafustou, foi chamado à ordem pelo juiz, e só com grande esforço foi acalmado pelo seu advogado e e pelos funcionários judiciais.

Em 1928 a família de João Rasteiro vivia "numa feliz mediania". Mas tudo se iria alterar em pouco tempo (imagem cedida por ANTT)

Interrogado António da Luz Martins sobre a razão porque demorou tanto tempo a denunciar Rasteiro, a testemunha respondeu que isso acontecera “por o temer”. Não era o único a sentir isso. Outros se queixavam do rigor com que Rasteiro obrigava a respeitar as diversas posturas.

Ser cantoneiro não era o meio mais fácil para fazer amizades. E Rasteiro ainda por cima era escrupuloso demais. Se ao menos fosse como os outros, que nesse tempo tinham fama de se ocupar mais durante o dia a cavar as suas leiras do que a arrancar erva nas bermas da estrada.

Detido mais de dois anos enquanto aguardava julgamento, Rasteiro não chegou a assistir em liberdade a um acontecimento que ocorreu nesse período e que lhe dizia respeito: a 1 de Junho de 1928 os automóveis passaram a circular pela direita em Portugal, abandonando o modelo britânico, o que não podia escapar a insinuações, tendo em conta que o governo da ditadura tinha dois anos de existência. Como escreve o Diário de Lisboa, subtil, “Agora é que isto se endireitou. Desde as 5 horas da manhã que tudo gira pela direita”.

Zeloso como era, se não tivesse sido preso lá teria Rasteiro passado mais umas tantas multas, ao abrigo das novas regras de circulação. E com isso teria ganho mais alguns ódios que iriam integrar a sua vasta colecção de inimigos.

“O Neves é que era homem para resolver isto!”

No ano seguinte, 1931, uma das testemunhas de acusação de Rasteiro é ferida certo dia com uma facada, acusando do ataque Francisco Rasteiro, irmão de João Rasteiro, o cantoneiro condenado. Participado o caso ao administrador do concelho de Torres Vedras (a autoridade policial à época a nível local), o acusado é chamado à presença do chefe da secção administrativa, José do Carmo Neves, espécie de pau para toda a obra, como sempre existe um em qualquer repartição pública. Interrogado Francisco Rasteiro, o funcionário fica no entanto a saber que ele tem um álibi incontestável.

O assunto podia ter ficado por ali mas José do Carmo Neves insiste, volta a interrogar o suspeito e consegue que ele revele que tinha sido outro irmão, de nome António, o autor do ataque à testemunha. Sujeito por sua vez a interrogatório, este António primeiro nega e depois confessa: o episódio da facada tinha sido apenas “uma vingançazinha” em nome do seu amor fraternal por João Rasteiro. E com isto vai preso.

A beleza do mapa esconde uma dura realidade: em 1926 estavam intransitáveis em Portugal 12 mil quilómetros de estrada

O episódio da descoberta do faquista António, longe de deixar os Rasteiros consternados, teve para eles o papel das revelações divinas para os muito desiludidos. Puseram-se a cismar. Aquele homem que tinha conseguido desvendar as culpas do mano António Rasteiro podia, da mesma forma, ser orientado para uma acção bem mais justa e útil. Era isso. O senhor chefe Neves chamava à administração do concelho o verdadeiro assassino (que eles sabiam muito bem quem era), apertava com ele e, com a mesma manha de que tinha dado provas conseguia que ele confessasse. Porque da inocência do seu irmão cantoneiro não tinham eles dúvida. A seguir, o senhor Neves prendia-o e na volta do correio libertava o seu irmão João.

E foi isto mesmo que António Rasteiro, após cumprir pequena pena, foi propor um dia a José do Carmo Neves. E foi com grande desilusão que ouviu o chefe da secção administrativa explicar que as coisas não se passavam assim, que o caso já tinha sido julgado e por isso ele só podia ocupar-se dele se surgisse um indício claro de que o tribunal tinha cometido um erro.

Certo dia, porém…

Chega Setembro. E com ele regressa ao Vimeiro a filha de Raimundo e de Bárbara, Virgínia dos Santos, que trabalhava em Lisboa. A sua ligação aos pais era grande. Tão grande que, no dia em que o seu irmão Luís apareceu morto, a sua mãe se metera a caminho de Lisboa para a avisar do sucedido. Na altura houve quem estranhasse esta decisão, mas quem vai dizer a uma mãe como se deve comportar quando lhe matam um filho?

Os patrões de Virgínia todos os anos davam uns dias de folga à sua serviçal para ir à terra. E foi exactamente quando ela se encontrava no gozo desta licença que, em certo dia de Setembro, rebentou em casa dos pais uma discussão da qual resultou que Raimundo acabou a agredir a mulher, situação a que a filha tentou pôr termo recorrendo a um meio extremo, de que ela tinha jurado segredo: chamou-lhe “assassino”.

Quando o seu filho morre, Bárbara de Jesus vem a Lisboa avisar a filha, que trabalhava na Avenida da República, neste prédio da autoria de Ventura Terra

Com isto fez parar o pai. Mas aquela palavra teve ainda outro efeito imprevisto. Foi ouvida pelos vizinhos António Pardal e mulher, Maria da Conceição Lopes, que a contaram a outros — que por sua vez a repetiram aos irmãos de Rasteiro, que a foram revelar a José  do Carmo Neves, perguntando-lhe se assim já se podia fazer aquilo que tinham proposto: desmascarar o autêntico homicida.

O chefe da secção administrativa aconselha-os a procurar um advogado que fizesse um requerimento para novas investigações. Mas, como ele próprio se começa a interessar pelo caso, chama Pardal e Maria da Conceição à administração do concelho, onde eles confirmam a frase dita por Virgínia, acrescentando que por acaso a testemunha António da Luz Martins estava também no edifício a tratar de qualquer assunto.

Interrogado este, acaba por apresentar três versões sem concordância. A seguir, é feita uma inquirição a Raimundo que mete juras por almas e em que este nega qualquer responsabilidade no assassínio do filho.

Mas o polivalente José do Carmo Neves decide não ficar por aqui e vai ao local do crime tentar compreender o que teria acontecido ali cinco anos antes. Não se tratava de uma reconstituição formal, mas a presença de António da Luz Martins, que leva consigo, ajuda a perceber algumas coisas essenciais. Esta testemunha repete o que dissera em tribunal, que dormia numa eira próxima do local onde a criança apareceu e que, do ponto onde estava, tinha visto Rasteiro na estrada a correr atrás de Luís. Contudo, isto era impossível porque, constata José do Carmo Neves, entre um local e outro existia uma sebe de ulmeiros que na altura dos acontecimentos, em Julho, estariam cobertos de folhagem.

O faro policial do chefe da administração leva-o ainda a esta reflexão: Luís tinha sido encontrado deitado de costas, com um braço ao longo do corpo e outro sobre o peito, ou seja, tinha sido levado para ali e colocado numa posição cuidada, por alguém que devia ter tido constrangimento pelo que estava fazendo, se não mesmo um mínimo de ternura.

Além disso, o corpo apresentava contusões que pareciam indicar ter sido atacado por um canhoto. Ora, Rasteiro não era canhoto. Mas o seu pai, Raimundo dos Santos, sim.

De tudo isto José do Carmo Neves elabora os respectivos autos, que envia para o delegado do Procurador da República da comarca, Lopes Navarro, que em resposta pede que prossigam as investigações. São presos os pais de Luís, Raimundo e Bárbara, assim como a testemunha António da Luz Martins. Mas só este, após três dias e três noites de interrogatórios, confessa que tinha mentido em tribunal.

Quanto a Raimundo (“insensível a todos os truques empregados, dotado de uma vontade inquebrantável”, segundo Neves) proclama a sua inocência. O chefe Carmo Neves terá chegado a introduzir-se numa cela onde ficou oculto e onde foram colocados Raimundo e Bárbara. E ouviu a voz feminina em surdina: “Nega sempre”.

O agente da PIC vai descobrir uma carta de Bárbara de Jesus para a filha a recomendar silêncio: "Nega sempre"

O administrador do concelho de Torres Vedras era então o tenente França Borges (virá a ser presidente da Câmara Municipal de Lisboa entre 1959 e 1970), que requisita um agente da Polícia de Investigação Criminal (a PIC, antecessora da PJ) sendo designado Jacinto Baptista que numa busca ao quarto da Virgínia, em Lisboa, encontra uma carta enviada pela mãe onde repete a frase que tinha sussurrado ao marido: “Nega sempre”.

Mas na madrugada de 10 de Março de 1933, a recomendação de Bárbara de Jesus deixa de fazer sentido. Raimundo confessa ter sido ele o assassino involuntário do filho.

O jantar da cadela

Na tarde desse dia, após a confissão de Raimundo, devia ser feita a reconstituição no local do crime, concluindo-se assim as investigações. Mas à última hora o preso teve um “ataque de nervos” que se prolonga pela tarde fora e de cuja autenticidade os investigadores duvidaram, sendo chamados dois médicos, o inspector de sanidade pública, José de Bastos, e Dias Sarreira, director clínico das Termas dos Cucos, em Torres Vedras, que confirmaram tratar-se de uma simulação.

A reconstituição acaba assim por se realizar só à noite, quando Raimundo já pensava que o adiamento seria perpétuo. Estão presentes os investigadores, médicos, funcionários que iriam servir de testemunhas, o regedor de A-dos-Cunhados e o administrador do concelho. E Raimundo, naturalmente. Pedem-lhe que explique como tudo aconteceu. Responde que tem vergonha, perante tanta gente. Mas que contava ao administrador e ao regedor. Acrescentando: “Grande tristeza a minha, ao lembrar-me do meu pobre filho”.

Contava-se que após a morte da criança Raimundo se teria confessado ao pároco de A-dos-Cunhados e que este o teria aconselhado a apresentar-se às autoridades se Rasteiro acabasse por ser condenado. O que ele não fez. Também por vergonha.

O problema de Raimundo seria moral mas tinha direito à vergonha. A vergonha não é moral, é psíquica. Respeitando isto, o administrador e o regedor de A-dos-Cunhados dispuseram-se a ser os ouvintes exclusivos do filicida. Horas depois, terminada a dolorosa reconstituição, foi finalmente possível ter uma noção exacta do que tinha acontecido naquela noite de 17 de Julho, quase seis anos antes.

Raimundo tinha ficado na eira nesse dia, de guarda ao trigo, juntamente com a mulher e o filho. Luís dos Santos partiu com a mãe ao fim da tarde, para casa, devendo voltar apenas ele, com pão de milho para a cadela. Só que quando chegou já era noite e apanhou o pai disposto a embirrar pelo atraso.

Primas de João Rasteiro à saída da Penitenciária onde foram levar a notícia de que o verdadeiro assassino de Luís Santos já tinha confessado o crime (imagem cedida por ANTT)

A seguir, o filho deu uma côdea ao animal mas ao pai pareceu-lhe ser a quantidade exagerada. Começou por lhe dar uma chapada e, com o filho já no chão, acrescentou um pontapé. Por momentos desinteressou-se dele mas percebeu depois que o filho não dava acordo. Ao convencer-se de que a criança estava morta pegou-lhe ao colo e partiu para casa.

A meio do caminho Raimundo mudou de ideias, começou a pensar que ia ficar para sempre com o ferrete de ter sido o assassino do filho e abandonou o corpo numa valeta da estrada. Uma vez em casa contou à mulher. Ela ainda quis gritar e chorar mas ele deu-lhe a escolher: “Se gritas, estou desgraçado. Escolhe agora”. Ela calou-se. Se gritasse ficava sem o filho e sem o marido.

Acordaram os dois que no dia seguinte, quando recebessem a notícia de que o corpo do filho tinha sido encontrado, ele ia logo participar às autoridades e ela tratava de viajar para Lisboa, a informar a filha.

Para tudo ser mais convincente voltaram ambos à eira, de madrugada, discretamente, por atalhos, preparando-se para receber a notícia de manhã. Isto explicava por que razão não se tinha encontrado qualquer manta na eira, como seria de esperar, quando na manhã do dia 17 lá os foram chamar. Na verdade ninguém tinha dormido na eira nessa noite.

Esta estranheza da falta da manta ligava-se com outras perplexidades agora trazidos à memória mas desvalorizadas na época da primeira investigação. Quando vão chamar os pais da vítima à eira, naquela madrugada, Bárbara aparece num segundo. A seguir, informada, não dá sinal de comoção. E nem ela nem o marido chegam aproximar-se do filho morto.

Pai e mãe conseguiram abafar os primeiros impulsos de choro e gritos nessa noite. Mais tarde, um delegado do Ministério Público, Salinas Calado, ao historiar os acontecimentos, sintetizou tudo numa expressão: chamou-lhe tragédia rústica. E acrescentou que foi o carinho do pequeno pela cadela que o matou, porque deu um côdea de pão considerada de tamanho excessivo pelo pai, despertando-lhe a ira. A seguir à morte do filho Raimundo iria desfazer-se do animal, oferecendo-o a um tal Francisco Caseiro que antes do crime o quisera comprar. Tinha sido por causa da cadela que tinha morto o filho.

Outrora numa feliz mediania, hoje reduzida à miséria

No dia 4 de Abril de 1933, o Supremo aprecia a requisição para revisão do processo de João Francisco Rasteiro e manda que o detido aguarde em liberdade a dita revisão. Paralelamente, mal é conhecida a culpa de Raimundo, todos procuram desfazer-se de qualquer ponto de contacto com ele, como sempre acontece em situações semelhantes. O seu próprio advogado no julgamento de Rasteiro, Lobo e Silva, vem dizer em 1933 que Raimundo lhe causava agora “a maior repugnância”. E pela mesma altura o correspondente no Vimeiro da Gazeta de Torres elucida que, “apurada a verdade, cumpre-nos agora esclarecer que o assassino, esse monstro ignóbil, que velhacamente usava o nome de ser humano, não é natural desta freguesia, o que é preciso frisar”.

O apurar da verdade põe em contraste a mulher de Rasteiro e Bárbara de Jesus. Quando o marido confessa Bárbara enfurece-se: "Para que foste falar? Agora mata-te, enforca-te." (imagem cedida por ANTT)

Os caracteres de chumbo da Gazeta de Torres cobriam-se por esta altura de lágrimas. Na linguagem gongórica da época escreve-se sobre a esposa de Rasteiro: “A pobre mulher, que outrora vivia numa feliz mediania, está hoje quase reduzida à miséria, pois todos os haveres do casal foram levados na chicana dos tribunais”. Restavam “apenas os ferros nus da sua cama matrimonial, o berço aonde nasceu a sua filha querida, linda como uma estrela, de quem, até agora os próprios beijos fazem aflorar lágrimas”.

Na realidade, a família do antigo cantoneiro tinha empenhado as terras de lavoura e lutava agora com enormes dificuldades. Desfizera-se de tudo, roupas, móveis. Por isso, em Março de 1933 a Gazeta de Torres abriu uma subscrição iniciada com 100$00 e que duas semanas depois ia já em 417$50.

No ano seguinte, as finanças do casal iriam contudo ganhar algum desafogo: a 27 de Abril de 1934, Raimundo dos Santos, além de condenado a seis anos de prisão maior, iria ter de pagar cinco mil escudos a João Francisco Rasteiro. Ao apresentar-se em tribunal, Raimundo volta a declarar-se inocente, explicando assim as confissões anteriores: “Tiraram-me a ideia com as pancadas que me deram”.

O julgamento de Raimundo dos Santos foi o último dos três relacionados com o homicídio de Luís Santos que tiveram lugar em 1934. Logo em Janeiro foi apreciado de novo o processo de João Rasteiro. Absolvido pelo tribunal, o condenado de 1930 viu enfim esclarecidas as “provas tremendas” que o tinham condenado. A mancha vermelha nas suas calças era afinal de gordura, segundo concluiu o Instituto de Medicina Legal. E o seu gesto de apagar pegadas em volta do cadáver destinava-se apenas a evitar que os investigadores se confundissem: tinham sido feitas à sua frente pelos curiosos que sempre aparecem em momentos como aquele.

A seguir foram  julgados os autores dos falsos testemunhos que levaram à condenação de Rasteiro em 1930. Os processos destas testemunhas arrastaram-se longo tempo pelos tribunais superiores, sendo o acórdão final de 20 de Março de 1936, com a seguinte conclusão: quatro das testemunhas perjuras, entre elas António da Luz Martins, são condenadas e cinco ficam absolvidas.

Logo ao ser libertado, a 4 de Abril de 1933, Rasteiro tinha afirmado aos jornalistas que não queria ficar a morar na sua terra, o Vimeiro, para não ter de se cruzar com os que o acusaram. Pretendia colocação em Lisboa logo que conseguisse recuperar a saúde (segundo os jornais, “mostrava evidentes sinais de abatimento físico”).

Antes da reorganização dos anos 40, os cantoneiros tinham fama de preguiçosos e pouco escrupulosos. Não era o caso de João Rasteiro

Ia assim deixar de ser cantoneiro. Já não devia estrear as novas fardas de cotim cinzento nem aplicar os novos regulamentos com que o Estado Novo, pelos meados dos anos quarenta, pretendeu livrar aqueles seus funcionários do anátema de preguiçosos e da falta de autoridade. Mas ia procurar uma ocupação, trabalhar com honra. E como era um homem de outros tempos, sabia que a honra é a única coisa que se pode deixar na morte sem pagar imposto sucessório.

Em fins de Março de 1933, ainda preso mas já considerado por todos como inocente, João Francisco Rasteiro Júnior escreve uma carta à Gazeta de Torres. Contas feitas, tinha sofrido uma prisão preventiva de 858 dias. Fora condenado a 25 anos de prisão, a que o Tribunal da Relação, confirmado pelo Supremo, entendeu por bem acrescentar mais dois. Esteve preso durante oito anos no total. Durante o primeiro período na penitenciária conhecera o regime do silêncio então em vigor: um ano inteiro na cela, dia e noite, sem poder dirigir a palavra a qualquer dos outros reclusos. Pensou suicidar-se. Perdeu a saúde e o vigor. Vira-se traído, fora acusado estando inocente. Raimundo pagara a um advogado para o inculpar sendo ele próprio o criminoso. Tudo isto tinha Rasteiro suportado. Havia contudo uma calúnia que o recluso n.º 5 da Ala B da Cadeia Penitenciária não podia deixar passar: que Raimundo dissesse que ele “tinha furtado batatas”. Por isso pedia ao editor da Gazeta de Torres: “Desminta, senhor Director, essa vil infâmia que esse malvado deitou pela boca fora”.

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