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A favor da delação premiada: Paula Teixeira da Cruz
“A delação premiada de alguém não dispensa uma investigação séria”
Paula Teixeira da Cruz defende as suas opiniões sem rodeios. Como ministra da Justiça, o combate à corrupção ocupou uma parte importante da sua ação de mais de quatro anos numa pasta onde é raro os ministros cumprirem uma legislatura completa. Apenas não conseguiu convencer o Tribunal Constitucional da bondade da lei do enriquecimento ilícito. Agora, é praticamente a única advogada a defender a implementação de um sistema de colaboração premiada para tornar mais eficaz o combate à criminalidade económico-financeira. Ou melhor: a defender o alargamento de um sistema que diz já existir em Portugal no combate ao tráfico de estupefacientes.
O nosso ordenamento jurídico já contempla formas de premiar quem colabora com a justiça. Por que razão o que existe não chega?
Porque é demasiado restrito a nível do tipo de crimes em que admite o direito premial. Em segundo lugar, a investigação a crimes económico-financeiros tem de ter meios a nível de institutos jurídicos. Isto é, precisamos de alargar os institutos jurídicos que permitam uma maior colaboração dos cidadãos com a investigação, de forma a premiar quem contribui para a descoberta verdade material.
Aliás, o nosso ordenamento jurídico já admite isenção, suspensão dispensa ou atenuação de pena para premiar quem colabora com a justiça, designadamente no combate ao tráfico de estupefacientes. Portanto, já temos a vulgarmente denominada delação premiada. Portanto, quando apoio o sistema de colaboração premiada não estou a defender a criação de algo novo porque esse sistema já existe em Portugal, nomeadamente no combate ao tráfico de estupefacientes.
O sistema de delação premiada é visto vulgarmente como um ‘apontar de dedo de um arguido a outro’. O ex-procurador-geral Pinto Monteiro faz essa descrição. Isto é, alguém que se limita a dizer que determinada pessoa cometeu um crime e o denunciado é imediatamente acusado. É isso que é o sistema de delação premiada?
Obviamente que não é ‘apontar o dedo a alguém’. É um sistema que abrange alguém que sabe ou que foi cúmplice da prática de crimes e que colabora com a Justiça, ajudando na descoberta da verdade material do caso.
Como pode ajudar? Só com o testemunho?
Não. Tem de fornecer documentos e outros meios de prova, colaborando proativamente com a investigação na descoberta da verdade material do caso. Só o testemunho não chega, obviamente. Além disso, a colaboração premiada de alguém não dispensa uma investigação séria. Obviamente que o sistema não é um pessoa denunciar outra e já está: sai logo uma acusação. Não é assim. Tudo o que o colaborador premiado diz, e toda a documentação que entrega, tem de ser cruzada com outras provas e testemunhos que a investigação consiga. Mas, insisto, este sistema já existe em Portugal no combate ao tráfico de estupefacientes.
Mas não é aplicável ao crime de corrupção.
Era precisamente aí que queria chegar. De facto, a lei não permite neste momento que este sistema seja aplicado na investigação da criminalidade económico-financeira. O que defendo é ampliação do sistema de colaboração premiada que temos a esse tipo de crimes, nomeadamente aos crimes de corrupção. Porque, como é sabido, tratam-se de crimes de muito difícil e morosa investigação. É necessário criar mais institutos legais que permitam uma colaboração mais eficaz com a justiça para a descoberta da verdade material.
O sistema de colaboração premiada não coloca em causa o Estado de Direito?
Como é que o Estado de Direito fica em causa se, no âmbito de uma investigação criminal, o Ministério Público ou a Polícia Judiciária recolher informação de alguém que sabe quem praticou o ato criminoso ou que tem elementos que ajudam a chegar ao autor do ato criminoso? Francamente, não vejo como é que colaborar com a Justiça, pode colocar em causa o Estado de Direito.
Muitos advogados têm argumentado que coloca em causa as garantias de defesa e a presunção da inocência, além de ser inconstitucional.
Não vejo onde é que fica tocada a presunção de inocência. Desde logo, porque tem de existir uma investigação. Não basta denunciar alguém ou testemunhar contra alguém. Além disso, a legislação penal portuguesa já prevê esse tipo de colaboração. Há uma norma legal, aberta e genérica que premeia, através da atenuação da pena, quem colabora com a Justiça. Trata-se, aqui, de ampliar esse sistema a outro tipo de criminalidade que não seja apenas os crimes ligados a tráfico de droga.
Quanto à inconstitucionalidade, não me recordo que o Tribunal Constitucional tenha decretado que as normas que já existem não respeitam a Constituição.
As garantias de defesa não ficam em causa?
Não. O arguido que é denunciado tem sempre possibilidade de contrariar o que foi apurado durante a colaboração premiada. Durante a fase de inquérito, de instrução ou de julgamento tem sempre a possibilidade de dizer: “isto é mentira, por isto e por aquilo”. Ou seja, o contraditório é sempre exercido durante as diferentes fases do processo penal.
Como é possível que esta a colaboração premiada seja acolhida por um Estado que considerou inconstitucional a lei de enriquecimento ilícito? A nossa Constituição permitirá um sistema destes?
No que diz respeito à lei do enriquecimento ilícito, o Tribunal argumentou que se verificava, por um lado, a inversão do ónus da prova, e, subsequentemente, a ausência do bem jurídico tutelado. Não é propriamente isso que estamos a discutir neste debate. E sem conceder que esses argumentos [utilizados pelo Tribunal Constitucional contra lei do enriquecimento ilícito] sejam válidos.
Os críticos do sistema da delação premiada insistem muito no ponto de que tal sistema é inconstitucional e que os mecanismos de colaboração que já existem na lei ainda não foram devidamente escrutinados pelo Tribunal Constitucional através de casos judiciais concretos.
Todos os dias há pessoas que colaboram e entregam informação à Justiça. Não vejo que esse argumento faça sentido. As leis de colaboração que existem são constitucionais.
O paradigma do processo penal português assenta na ideia de que o Ministério Público tem de descobrir a verdade material, tem de descobrir provas pelos seus próprios meios, para acusar alguém de determinado crime. Ao permitir a colaboração de co-arguidos a troco de uma atenuação ou dispensa de pena, o sistema de colaboração premiada não coloca em causa o princípio do processo justo?
Não está em causa o princípio do processo justo. Está aqui em causa o estrito princípio da verdade material de determinado caso. Por outro lado, todos os cidadãos têm a obrigação de colaborar e de auxiliar a Justiça. Onde é que está a injustiça no facto de alguém fornecer elementos e identificar o hipotético agente do crime, desde que essas informações sejam cruzadas com outras provas que a investigação recolha?
No Brasil, a Ordem dos Advogados tem denunciado situações de alegadas irregularidades nas colaborações premiadas. Duas situações: por um lado, grupos de delatores que alegadamente acertam previamente versões para denunciarem determinadas pessoas; por outro lado, provas documentais que foram entregues por arguidos estarão forjadas.
Não defendo a transposição do sistema brasileiro para Portugal. O que defendo é um alargamento do sistema que já existe em Portugal. Nada mais.
Agora, não concordo com essas alegações. Sempre disse que a delação ou a colaboração premiada não dispensa a investigação. Esta tem a obrigação de saber, de escrutinar e de verificar a veracidade do que é dito e dos documentos que são entregues pelos colaboradores. Não basta dizer: “eu sei que o Manuel corrompeu a Maria” ou “eu sei que o Manuel matou a Maria”. Isso não chega. Tem de ser feita uma investigação para saber se isso é verdade. Por que isso depois tem consequências para as pessoas que denunciaram coisas que não são verdade. Isso também é crime: chama-se denúncia caluniosa. Portanto, há aqui um equilíbrio do sistema de justiça.
Considera que, na apreciação desta questão, há algum complexo com a Ditadura do Estado Novo? Ou seja, há pessoas que se recordam dos delatores e dos informadores da polícia política e pensam que vamos regressar ao passado.
Penso que, de facto, há essa confusão e admito que há pessoas que agitam, e de forma pouco inocente, esse fantasma. Estamos a falar de tempos e circunstâncias completamente diferentes. Estamos a falar de uma Justiça criminal de um Estado Democrático, em que as magistraturas têm um enquadramento completamente diferente e em que os direitos dos cidadãos e as garantias de defesa estão perfeitamente assegurados, como é próprio de um Estado de Direito.
O nosso sistema democrático e do sistema de justiça atual nada tem a ver com o país de há 40 ou 50 ou 60 anos. Não faz sentido essa confusão.
Se não defende a mera transposição do sistema brasileiro para o ordenamento jurídico, qual é o sistema que defende?
Defendo um alargamento do sistema que já existe de colaboração premiada, designadamente no combate ao tráfico de estupefacientes, à criminalidade económico-financeira mas, atenção, em determinados termos. O que quero dizer com isto? Imaginemos um arguido que seja cúmplice na prática de um crime. Se esse cúmplice denunciar outros arguidos, fica isento de pena ou de acusação? Ou apenas atenuam ou reduzem a pena?
Não choca o facto de alguém que confessou a prática de um crime, ficar isento de acusação ou de pena?
Isso já existe no combate à criminalidade de estupefacientes.
Defende que esse sistema seja alargado a outros crimes?
Sim. Nomeadamente à criminalidade económico-financeira.
Sendo muito concreto. Primeira fase do processo penal: fase de inquérito. Concorda que um arguido que colabore com a Justiça nessa fase fique isento de uma acusação? Isto é, não é acusado pelo Ministério Público por ter ajudado na descoberta da verdade material?
Sim, concordo.
Concorda que, no caso de um arguido que colaborou com a Justiça na fase de instrução, possa ter suspensão provisória do processo?
Sim.
Por último, fase de julgamento. Concorda que um arguido que ajudou a Justiça durante o julgamento na descoberta da verdade material, possa ter uma pena atenuada ou até mesmo dispensa de pena?
Sim. Mas, atenção, depende da situação concreta e do tipo de crime. Imagine o crime de participação económica, onde há um benefício ilegítimo para um privado à custa de uma entidade pública ou equiparada. Se estivermos a falar de um montante relativamente baixo, não me repugna um prémio de isenção para quem colabora. Se estivermos a falar de montantes consideráveis que envolvam património público, penso que a isenção não se justifica. Portanto a lei tem de estipular muito bem quais são os graus e as regras concretas para aplicar a dispensa ou a atenuação de pena.
No sistema que defende, qual é o papel do juiz de instrução?
Naturalmente, o juiz de instrução, enquanto juiz das liberdades, tem de confirmar a colaboração premiada na fase de instrução.
Então na fase de inquérito, o Ministério Público poderia fechar uma colaboração premiada com um arguido sem intervenção do juiz de instrução?
Sim. A intervenção do juiz de instrução só ocorreria na fase de instrução e poderia aceitar, ou não, toda a informação recolhida através do instituto da colaboração premiada. Defendo um sistema com controle da colaboração premiada por parte do juiz de instrução — e não um sistema aberto como o sistema norte-americano ou brasileiro.
Qual é a diferença entre o sistema norte-americano, que se designa de plea bargain, e o sistema de colaboração premiada?
O primeiro sistema implica uma negociação entre o Ministério Público e o arguido. É um negócio, é uma transação semelhante à que temos em Portugal na Justiça Cível.
A negociação de uma pena ou de uma imunidade é expressamente proibida pela lei criminal em Portugal. Concorda com essa proibição?
Sim. Com certeza que sou contra a ideia de transformar isto num negócio jurídico.
A colaboração premiada não é um negócio?
Não, não. É colaborar com o sistema de Justiça.
O arguido colabora com a Justiça e ganha um prémio. Faz um negócio.
Se colabora com a Justiça, é natural que tenha ou atenuantes ou então o direito, consoante a tipologia de crime e o grau de gravidade, de não ser sancionado. Atenção: não estamos a falar de uma transação; de uma espécie de negócio ‘toma lá, dá cá”. Não é disso que estamos a falar quando abordamos a colaboração premiada.
De acordo com um estudo realizado nos Estados Unidos a várias centenas de arguidos que aderiram ao plea bargain, mais de 50% dos que negociaram uma pena estariam inocentes. Não há o risco de termos mais inocentes presos com o sistema de delação premiada?
Não. Volto a dizer: a colaboração premiada não dispensa a investigação e o cruzamento de toda informação recolhida através da colaboração premiada com outras provas e outros testemunhos. Para acusar ou condenar alguém, não basta a informação que é recolhida pelo regime de colaboração premiada. Tem de haver uma investigação, até para verificar se o arguido que faz essa colaboração premiada não está incriminar injustificadamente um terceiro.
O juiz Sérgio Moro descreve a colaboração premiada como uma forma muito pragmática de, através da colaboração de um pequeno criminoso, agarrar um grande criminoso. Essa forma de ver as coisas não a choca enquanto jurista? É uma abordagem que não tem nada a ver com a cultura jurídica portuguesa.
Diria que isso pode suceder mas também pode suceder que um grande criminoso denuncie outro criminoso com a mesma importância.
Contra a delação premiada: Paulo Saragoça da Matta
“O sistema de delação premiada degrada a dignidade do Ministério Público”
É um dos advogados especializados na criminalidade económico-financeira mais conhecidos do país. Presença regular nas televisões para explicar à Opinião Publica os meandros da Justiça, o também professor de Direito critica duramente a lei brasileira da delação premiada e diz que nada tem a ver com a cultura judiciária portuguesa — nem com o Estado de Direito e discorda totalmente de declarações do juiz Sérgio Moro sobre o pragmatismo com que os magistrados brasileiros encaram a colaboração de arguidos com a Justiça. Paulo Saragoça da Matta apenas admite um alargamento das regras de direito premial que já existem em Portugal a todas as fases do processo penal, desde que não seja possível a isenção de pena nem seja permitido a incriminação de terceiros.
Como é que a colaboração premiada coloca em causa o Estado de Direito?
É preciso distinguir a colaboração premiada da delação premiada. Sistemas premiais para a colaboração de arguidos existem em todos os sistemas do mundo – e a nossa lei prevê esse sistema. E ninguém tem nada contra os institutos previstos na lei. A delação premiada é uma coisa completamente distinta.
Em que sentido?
No sistema de delação premiada, tal como é entendido no Brasil, há muito pouca coisa que pode ser aplicado em Portugal.
Antes de mais há argumentos de ordem dogmática. O que é que se procura através do processo penal? Uma verdade material.
A pergunta é: a delação premiada pode permitir a descoberta da verdade material? Em termos empírico, a resposta é “sim”. Mas, quando lemos estudos jurídicos sobre a aplicação da delação premiada, a resposta é “não”.
Por exemplo, nos Estados Unidos fez-se um estudo em 2013 a várias centenas arguidos que tinham recorrido ao “plea bargain” e concluiu-se que mais de 50% dos arguidos eram inocentes. Ou seja, admitiam uma culpa que não tinham. E por que é eles faziam isso? Para não serem processados judicialmente. Por outro lado, o “plea bargain” não implica uma admissão de culpa. É um negócio. O arguido admite uma pena, um castigo — e não uma culpa.
É uma negociação de uma pena — o que é proibido pela lei portuguesa. Mas o “plea bargain” é um sistema diferente da colaboração premiada. Esta tem uma grande importância na descoberta da verdade material.
Sim, é verdade. Mas quando se utiliza o argumento de que a delação premiada permite a descoberta da verdade material de um determinado caso, isso é uma falácia. Mais: tenho conversado com imensos colegas e alguns magistrados brasileiros e todos me dizem que é muito normal encontrarem mentiras monstruosas nos acordos de delação e acordos entre diferentes arguidos delatores para criar determinados realidades. Verdadeiros pactos de mentira para incriminar um terceiro.
O sistema de delação premiada assenta num pressuposto errado: de que as pessoas dizem sempre a verdade naquele momento. Ora, isso não é assim.
É por isso que o sistema de delação premiada degrada a dignidade do Ministério Público, pois coloca-o como negociador de acordos e não como investigador da verdade material.
Temos um sistema constitucional que permite a inversão do ónus da prova para captar mais receita fiscal para o Estado, nomeadamente em processos tributários. É possível a suspensão provisória em processos criminais, desde que os arguidos suspeitos de crimes fiscais paguem a conta que a Autoridade Tributária apresenta. Mas não é possível a criação de novos instrumentos que permitam uma descoberta mais eficaz da verdade material dos casos judiciais relacionados com a corrupção e com a responsabilização de titulares de cargos políticos e públicos e nos quais o Estado e os contribuintes são os principais prejudicados. Não há aqui uma dualidade de critérios do nosso sistema judicial e legislativo?
O que referiu é completamente verdade. Mas até diria que o cenário até é pior do que esse. Por exemplo, uma lei de 1994, uma das mais antigas de combate ao crime económico-financeiro, admite atenuação de penas que o Código Penal não admite exatamente para os mesmos crimes. Mas não é por sistema estar baralhado que se justifica um sistema como a delação premiada que coloca em causa o Estado de Direito.
A delação premiada foi criada no Brasil em 1990 — cinco anos após a instauração da democracia. Foram feitas mais de 10 ou 15 alterações para alargar o âmbito da lei original e em 2013 foi criado o atual sistema para crimes com pena superior a 4 anos, nomeadamente o crime de corrupção.
É importante referir o óbvio: ninguém está contra o combate à corrupção. Este é um dos crimes mais graves para a nossa vida pública e tem de ser duramente combatido. A grande questão é: como?
Qual é o problema de premiar alguém que ajuda a descobrir a verdade material de determinado caso? É isso que está aqui em causa.
Essa possibilidade já está expressa em dois artigos do nosso Código Penal. O grande objetivo da delação premiada é combater a corrupção, nomeadamente provocando a quebra da lei do segredo subjacente aos crimes de corrupção. A nossa lei, contudo, já permite um prémio para aquele que ajuda a descobrir a verdade. Pergunta: “se já está no Código Penal por que razão se diz que é inconstitucional?” É muito simples: como a lei está, não é uma delação premiada, porque não há um prémio como existe no Brasil. E o prémio é um dos grandes problemas da delação premiada, nomeadamente o maior desses prémios: a isenção de pena.
Os artigos que referiu têm sido usados?
Não. E porque é que não são usados? Será que o prémio é demasiado demasiado reduzido? Eu gostava que o Ministério Público os utilizasse para que o Tribunal Constitucional pudesse apreciar a constitucionalidade das duas normas. Ou seja, não sei sequer se o sistema que foi desenhado não é inconstitucional. E se o for, então, por maioria de razão, um instituto como o da delação premiada será muito mais.
Quais sãos as inconstitucionalidades do sistema de delação premiada?
Primeiro: as garantias de defesa não são compatíveis com a delação premiada. Em segundo lugar, o princípio da presunção de inocência é totalmente violado. Qual é a presunção de inocência de um arguido que é denunciado no âmbito de uma delação premiada? Nenhuma. Ele tem ou não tem direito a ser presumido inocente durante julgamento? Claro que tem.
Só mais uma coisa: há um acórdão do Tribunal Constitucional (o 616/98) que proíbe que o arguido se transforme em meio de prova contra si — e essa é a demonstração clara de como um sistema como o português nunca aceitará que um arguido seja um meio de prova contra outrem, pelo menos um meio de prova plena, como a delação premiada pretende ser.
Ou seja, que admita a culpa para atingir o outro.
Exatamente. Isso é uma situação que não respeita o nosso enquadramento constitucional. Constitucionalistas como Jorge Miranda, Vital Moreira ou Gomes Canotilho argumentam que a integridade da pessoa não é apenas física; é pessoal, emocional, intelectual, moral, etc.
A delação premiada não é o soro da verdade mas é uma coação, é uma coação com medo, é uma chantagem. Ou seja, eu admito uma coisa que não fiz para não ser processado; prefiro delatar, mesmo que não seja verdade, para livrar-me do processo.
O arguido tem o direito de exercer o contraditório face à acusação e à delação premiada.
Não, não. O arguido parte em desvantagem. Porque o sistema judicial já deu crédito à delação premiada, senão não daria o prémio ao arguido delator.
Quem acolhe a colaboração premiada é o Ministério Público. O Tribunal é livre de julgar e apreciar a colaboração premiada como entender. A presunção de inocência é vista em Portugal como um valor praticamente absoluto. Por essa ordem de ideias, ninguém pode ser acusado.
Todos os meios de prova são de livre apreciação do Tribunal. Não há meios de prova que valham mais do que outros. O que estamos a criar com a delação premiada é um meio de prova que vale mais do que os outros.
Ao fazer a apreciação da prova, o tribunal pode dar mais valor a uma prova do que a outra.
Pode. São poucas as provas com valor predeterminado. Mas esta questão da livre apreciação da prova podia ser ultrapassada, fazendo com que os acordos de colaboração premiada fossem substancialmente validados por um juiz de instrução. Mas aí podia colocar-se outra questão — que seria a de surgir um ‘juiz homologador’ que, em vez de ser o juiz das liberdades e garantias, seria um simples homologador do Ministério Público. O que acontece muitas vezes, como já foi denunciado por muitos protagonistas da comunidade jurídica.
Há ainda outra questão muito relevante. Tal como está estabelecido no Brasil, o arguido que delata tem direito a imunidade, que não é acusado e não vai a julgamento. Pode ter até direito a uma mudança de identidade e a seguir sai para Miami para viver em paraísos tropicais à custa do Estado. Ora, em Portugal, os arguidos têm o dever de estar presentes em julgamento para que os co-arguidos possam, se assim desejarem, exercer o direito ao contraditório
Repare: quem é sociologicamente o delator? É quem contacta com titulares de altos cargos políticos. Quem é que cometeu mais vezes o crime? É ele próprio. Então o Estado dá uma dispensa de pena a um indivíduo que cometeu, por exemplo, 8 vezes o mesmo crime e não dá a quem cometeu uma vez mas, e que se calhar, até quis resistir a isso?
A colaboração premiada é uma abordagem pragmática ao combate económico-financeiro. “É uma forma de fazer um acordo com o menor dos criminosos para apanhar o maior dos criminosos”…
… Essa é uma frase do dr. Sérgio Moro. Pode ser uma frase muito interessante para a comunicação social e para o público em geral, mas é inaceitável do ponto de vista jurídico. Porquê? Por que aquele que cometeu o crime 8 vezes, tem uma dispensa de pena. Já o que cometeu apenas um crime, tem uma pena gravíssima. Nem justo é. E essa é a questão básica.
É o mesmo raciocínio que leva o MP a concentrar-se na grande criminalidade que apenas levou à prática de um crime, em vez da pequena delinquência que levou à prática de 30 crimes. Talvez porque a primeira causou um maior dano económico e social à sociedade do que a segunda.
Isso é o princípio da oportunidade. A lei portuguesa não permite uma aplicação generalizada desse princípio. Só há 5 ou 6 exceções para aplicar esse princípio. O MP está obrigado a seguir o princípio da legalidade e investigar todos os crimes por igual.
A lei da organização da investigação criminal já estabelece esse princípio de oportunidade, ao estabelecer uma hierarquia dos crimes que têm prioridade em termos de investigação.
Por isso é que uma possível aplicação do modelo de delação premiada não é uma reforma penal. É muito mais do que isso. É uma mudança de paradigma, já que o Ministério Público deixaria de ser, oficialmente, um terceiro desinteressado, passaria a ser parte.
A colaboração premiada tem sido descrita em Portugal como sendo um mero exercício de delação por parte de um arguido contra o outro; de uma mero ‘apontar o dedo’ de um arguido a outro. Ora, não é isso que está em causa. Quem adere à colaboração premiada, é alguém que faz parte de uma rede criminosa e que tem de mostrar provas, tem de mostrar documentos que corroborem tudo o que diz. Muitas vezes, isso ajuda a descobrir novos documentos que apenas os arguidos têm e que a investigação não conseguiu recolher. Insisto: como é que o acesso a documentos essenciais para a descoberta da verdade material pode colocar em causa o Estado de Direito?
Tenho lido muitos acordos de delação premiada feitos no Brasil, e que estão disponíveis na Internet, e não é isso que acontece. Tanto quanto é do meu conhecimento, a entrega de documentos por parte dos Arguidos dos processos é altamente desaconselhado pelos advogados e raríssimas vezes há documentos entregues.
O juiz Sérgio Moro diz que uma grande maioria dos processos de colaboração premiada implica a entrega de documentação.
Pois, valeria a pena investigar isso. Outro exemplo: muitas vezes, os arguidos oferecem-se para levar gravadores que permitam gravar conversas com outros arguidos. Ora, a nossa lei permite agentes infiltrados mas não permite agentes provocadores – o que é o caso. Alguém munir-se de um gravador e ir fazer contactos para ver o que resulta…
Porque diz que os advogados brasileiros evitam ao máximo a entrega de documentos?
Evitam porque muitas vezes a entrega de documentos significa outra realidade diferente daquela que está a ser delatada.
O sistema brasileiro não obriga que as declarações e as provas obtidas através de colaboração premiada sejam corroboradas por outro tipo de prova documental?
Respondo-lhe de outra forma: o nosso sistema penal obriga que uma condenação seja fundamentada num conjunto variado de provas. Não basta apenas uma prova.
E isso não é suficiente para assegurar todas as garantias de defesa que há pouco falava?
Vou responder que “sim”. Agora imagine: Se há dois arguidos que afirmam que corromperam o sr. António, isso é suficiente para condenar essa pessoa? Será que é possível que esses dois arguidos se tenham concertado para prestarem um falso testemunho?
Não, não estou a falar de testemunhos. Estou a falar de entrega de provas documentais, de extractos bancários de contas no estrangeiro, de transferências bancárias, de documentos que provem a titularidade de uma empresa offshore, de contratos secretos realizados, etc, etc. Estou a falar da entrega de documentos que provem a prática do crime.
Sim, claro que sim. Mas se temos isso, não precisamos de delação premiada. Precisamos apenas de melhorias ao regime de colaboração. Não vejo nenhum problema que o arguido confesse o crime e entregue documentação.
Certo. Mas, se a lei actual não permite premiar o arguido que colabora com a Justiça. Se não incentivo, qual é a motivação? Obviamente que, se o arguido não tem nada a ganhar, não fará isso.
Isso pode ser feito automaticamente. Aí haverá uma reforma da lei, não um novo paradigma!
Dou um exemplo concreto: numa acusação do processo Lava Jato, só foi possível descobrir a contabilidade paralela de uma as construtoras envolvidas no esquema de corrupção da Petrobras, devido à colaboraçāo de uma secretária que tinha a documentação. Isso é um contributo decisivo para a descoberta da verdade material através de prova documental. Obviamente que a secretária só entregou a documentação depois de negociar uma redução da pena. A lei portuguesa permite uma negociação destas?
Isso, para mim, seria inconstitucional em Portugal nesses termos. Não seria ilegal se o arguido assumisse a prática do crime perante o Ministério Público e entregasse os documentos que entendesse. Teria de esperar que o MP o acusasse, passasse eventualmente à fase de instrução criminal e chegasse à fase de julgamento. No final do julgamento, o MP poderia promover uma atenuação ou até uma dispensa de pena — que, obviamente, teria de ter a concordância do tribunal de julgamento, que é quem decide soberanamente e a final. Isto é um sistema.
Outro sistema, que é o brasileiro, é uma pessoa chegar ao MP e vender a informação que tem a troco de uma isenção de pena. Isso é o que me escandaliza. Porque o Estado não descobre a verdade. Compra a verdade.
Vamos colocar as coisas em perspetiva. Estamos a falar da fase de inquérito. Neste momento, a lei não permite premiar ninguém que colabore com a investigação. Apenas permite uma dispensa ou atenuação de pena se alguém denunciar o crime no prazo máximo de 30 dias após a prática do ato e antes de ser aberto inquérito. Isto não tem qualquer utilidade prática.
Os arguidos do crime de corrupção que tenham contribuído para a descoberta material da verdade têm direito a uma atenuação da pena.
Certo. Mas isso é durante o julgamento. Na fase de inquérito isso não é possível. Não considera que devia ser possível premiar quem colabora com os investigadores durante a fase de inquérito?
Concordo que o regime legal que permite a colaboração deve ser melhorado e que a lei deve permitir que os arguidos que desejem colaborar sobre factos que lhe digam diretamente respeito, o façam na fase de inquérito, na fase de instrução ou na fase de julgamento. Ou seja, em todas as fases do processo penal. Perfeito. Não tenho dúvidas que é constitucional. Agora, delatar terceiros para ter uma isenção de pena? Não. Isso, reitero, é inconstitucional. E pior: é injusto!
Se bem percebo, admite uma colaboração sem uma negociação. Ou seja, uma colaboração que permita uma atenuação mas não uma dispensa de pena.
E atenuada em termos que não sejam fixados pelo Ministério Público. Os termos exatos têm de estar especificados na lei quais são os casos concretos em que isso é possível; quais são as formas exatas de atenuação da pena: ⅕ ou ¼ ou ⅓ pena máxima, por exemplo. Mas isso tem de estar claro na lei. Não pode ser deixado para um poder discricionário dos agentes judiciários. Eu não acredito numa Justiça assim.
Sendo a celeridade um dos fundamentos de um bom sistema de Justiça, e sabendo nós que os casos da criminalidade económico-financeira arrastam-se no tempo por diversas razões, não seria razoável aceitar o princípio da negociação de pena na nossa lei?
Não me choca a confissão por boca própria. Isto é, o arguido pode confessar factos e crimes com os quais está diretamente ligado. Choca-me uma confissão por boca alheia. Ou seja, um arguido confessar crimes e factos que dizem respeito a outros arguidos e que servem para os incriminar. Mas essa avaliação e fixação de consequências teria de ser feita por um juiz de julgamento — e não pelo Ministério Público.
A implementação de um sistema como o de colaboração premiada não dificulta muito mais o trabalho dos advogados de defesa?
Não. Pelo contrário. Por exemplo, os colegas brasileiros que têm estado a trabalhar nas delações premiadas têm dezenas e dezenas de clientes que acompanham na negociação dessas delações. Se não existisse esse instituto, não teriam tantos clientes. É capaz de ser melhor em termos de negócio e de faturação para os escritórios o sistema de delação premiada. Pegando nos exemplos de colegas brasileiros, é melhor trabalhar com um cliente que consegue um acordo com o Estado, leva uma pena suspensa de 15 anos e vai viver para Miami — o que permite aos advogados cobrarem logo e até receberem honorários mais elevados; do que defender um cliente que tem um julgamento que dura 9 anos, fica com o património apreendido durante o processo e no final não tem meios para pagar ao advogado.