Mariana Mortágua
Assistimos à degradação da vida pública e é precisamente quando a vida pública se degrada que é mais preciso mostrar que, no Bloco de Esquerda, a política é e sempre será o lugar das causas e das convicções. Não deixamos a política entregue ao calculismo nem a esse pântano em que verdade e mentira se confundem.
Mariana Mortágua arranca o discurso com o propósito de definir claramente a posição do Bloco de Esquerda neste novo ciclo. Nesse ponto, para já, não há dúvidas: é de oposição total ao PS (no futuro, quando a era Costa acabar, a conversa poderá ser outra, mas nos corredores do Bloco a ordem é para não dar gás a conversas “futuristas” e concentrar esforços em apontar para um caminho autónomo, sem depender do futuro do PS). Por agora, o Bloco está convencido de que o caminho que tem para fazer, em direção à sua própria recuperação eleitoral, vai passar por polarizar à esquerda e mostrar-se em confronto com a maioria absoluta — a tal que provoca a “degradação” da vida pública e o “pântano” político, como diz no arranque do discurso e insistirá mais tarde.
Aos nossos adversários, para quem a esquerda é sempre um projeto condenado, deixo um recado franco: já nos conhecem, mas ainda não viram nada da força que sabemos criar, reinventar e unir. Essa é a força que vejo nos mais jovens do Bloco, em quem aqui chegou na luta contra a troika, como em quem confiou na coragem desta esquerda para garantir uma geringonça que o PS sempre quis dispensar; essa é a força de quem se juntou no último ano, já depois das últimas eleições, porque não aceita andar para trás.
Esta é a mensagem que Mortágua quer dirigir ao interior do partido, de mobilização e fé na recuperação, em tempos muito difíceis. Aliás, o BE chegou a esta convenção com uma abstenção de 80% nas votações para eleger delegados, dado que os críticos têm usado para garantir que os militantes do Bloco estão desmotivados e desmoralizados. Ora, Mortágua tenta contrariar essa tese, prometendo que será capaz de ajudar a “reinventar e unir” o Bloco, seja com os mais jovens e os que se juntaram ao partido já depois do desaire eleitoral de 2022, seja com quem tem a memória da geringonça — que o partido sabe ser popular entre o seu eleitorado, e por cujo fim tem noção de que foi penalizado nas urnas.
Agradeço a presença da França Insubmissa, assinalando o extraordinário trabalho de quem responde pelo seu povo e não se conforma com a redução da política à escolha entre o liberalismo e a extrema-direita. Agradeço também as palavras que nos foram enviadas pelo Movimento Social da Ucrânia, um partido de esquerda que, na Ucrânia, resiste com o seu povo contra uma invasão que se anunciou pela reconstituição do império czarista; saibam que apoiamos a vossa luta para defender o vosso país.
Com os agradecimentos que dirige aos convidados internacionais que marcam presença na convenção, Mortágua aproveita para lançar recados para dentro e para fora do partido. O exemplo da política francesa é constantemente utilizado pelo Bloco para frisar que a estratégia de Emmanuel Macron de empolar o confronto com a extrema-direita é a mesma que António Costa aplica em relação ao Chega — o trabalho do Bloco, difícil e que deu maus resultados nas eleições anteriores, é contornar essa pressão e defender que a escolha não é “entre o liberalismo e a extrema-direita” (no caso português, entre PS e uma direita que inclua o Chega). Depois, agradece ao partido de esquerda da Ucrânia presente na convenção, aproveitando para frisar a sua oposição ao imperialismo de Vladimir Putin — a questão que mais aqueceu a convenção, uma vez que os críticos internos defendem que imperialismo verdadeiro é só o dos Estados Unidos e que o Bloco não devia ter aceitado integrar uma delegação parlamentar a Kiev.
Foi a Joana que me convenceu que no Bloco encontraria gente como eu, que acha que a vida vale a pena quando lutamos por aquilo em que acreditamos. Herdámos do nosso pai uma memória de resistência contra a ditadura. Bem sei que vemos hoje alguns vampiros que querem resgatar o ódio salazarento e que, para isso, tentam enxovalhar essa geração que os derrubou no passado.
Aqui, Mariana Mortágua passa para uma nota mais pessoal e fala da irmã gémea, Joana Mortágua, também dirigente e deputada do Bloco, que entrou no partido primeiro (associada à corrente da UDP, de que se tornaria depois presidente). E também do pai, Camilo Mortágua, antigo dirigente da Liga de Unidade e Ação Revolucionária que participou no desvio do paquete Santa Maria e no desvio de um avião da TAP, assim como na ocupação da herdade da Torre Bela, na Azambuja. A referência vale-lhe uma ovação em pé: o passado de Camilo Mortágua tem sido atirado contra a dirigente bloquista com frequência no combate político, e continua a ser defendido pelas filhas (e pelo Bloco).
Nestes anos, vi de perto a força imparável da Catarina Martins, que desde o primeiro dia dos seus mandatos provou ser a melhor de todas nós e todos nós. Celebrámos contigo, sofremos contigo, vibrámos sempre contigo. Fizemos o que muitos achavam inviável: revertemos cortes salariais e de pensões impostos pela direita, baixamos o valor das propinas e dos passes sociais, tributámos os patrimónios milionários para proteger a segurança social, não cedemos na luta pelo SNS. (…) Foram anos incríveis de coragem e de convicção e podes ter a certeza que contamos contigo, Catarina, para os próximos que hão-de vir.
Na palavra de despedida que deixa a Catarina Martins, Mortágua aproveita para elencar as conquistas mais simbólicas da geringonça, legado de que o Bloco se orgulha — mas que se convenceu nos últimos anos que se iria esfumando, enquanto via o PS ceder cada vez menos e se sentia incapaz de ir mais além nas negociações. O currículo tanto de Catarina Martins como da sua sucessora será, no entanto, impossível de dissociar dessa era. Depois, uma promessa: o partido “conta” com Catarina. Não só conta como há muitos bloquistas, dirigentes incluídos, que acreditam que seria, caso queira, uma boa aposta para candidaturas futuras (europeias ou presidenciais, por exemplo). Além disso, Catarina Martins vai continuar politicamente ativa, e integrará a nova Comissão Política do Bloco.
Contamos com toda a gente. E, se escolheram contar comigo, mesmo sabendo que teremos de lidar com as perseguições da extrema-direita e e de um magnata da comunicação social, então vamos a isso. Que essa gente sem escrúpulos saiba que este partido não se cala perante o abuso e não se encolhe perante a intimidação.
Mais um aplauso forte quando Mortágua usa uma das narrativas que o Bloco mais defende quando fala da nova líder, tentando galvanizar os militantes: Mortágua é apresentada como uma espécie de símbolo contra os “grandes interesses” desde os tempos em que questionava Ricardo Salgado no Parlamento, e assim continua enquanto se arrasta a guerra com o CEO do grupo Global Media, Marco Galinha. Foi também de uma “perseguição política” que falou perante o processo de que foi alvo pelas remunerações que acumulou por comentários na SIC enquanto era deputada em exclusividade (dinheiro que devolveu, tendo o caso sido arquivado). No final de abril, num comentário na SIC, atribuiu essa perseguição ao facto de ser filha de Camilo Mortágua, de “incomodar” o poder ou de ser uma mulher lésbica — foi a primeira vez que assumiu publicamente a sua homossexualidade.
Sentimos que vivemos um tempo tremendo. É um novo ciclo de incertezas, em que se instalou um poder absoluto que só parece preocupado em sobreviver ao dramalhão do 4º andar do ministério, em que, para alguns governantes, as suas carreiras pessoais são mais importantes do que os seus deveres, em que o país é humilhado com decisões arbitrárias e questiúnculas grotescas, em que a política é gerida ao sabor de aprendizes de feiticeiro e spin doctors, em que os anúncios de hoje nada valem amanhã.
Seguindo o guião da oposição ao PS, Mortágua aproveita as últimas polémicas da comissão de inquérito à TAP e a confusão no ministério das Infraestruturas — um “dramalhão” — para atacar o Governo e toda a sua gestão interna, dos governantes que só estão preocupados com as suas carreiras pessoais ao foco no “spin” político. No fundo, à “irresponsabilidade” do Governo, tema que dominou a sua primeira intervenção na convenção, no sábado. Mais à frente, Mortágua ataca tanto a instabilidade do Governo como o festejo das contas certas, triunfo que representa um “tormento” para as pessoas — o Bloco acredita que com a contestação social do seu lado conseguirá mostrar o contraste entre os brilharetes nas contas orçamentais e as dificuldades no bolso dos portugueses e com isso recuperar influência, discurso e votos.
Esta política é um jogo perigoso porque, mais tarde ou mais cedo, onde reina o medo, o pior acontece. (…) Rejeitar a política do ódio impõe uma escolha: impedir que continue este caminho de degradação. Quem abafar, menorizar ou desvalorizar o pântano criado pela maioria absoluta não está a defender a democracia, mas sim a desresponsabilizar os causadores da fragilização da democracia.
É um dos principais fios condutores do atual discurso do Bloco: o PS está a brincar com o fogo quando dá gás ao Chega, acabando, como nas últimas eleições, por apelar ao voto útil contra uma possível alternativa de direita que inclua o partido de André Ventura e esmagar a esquerda no processo. Aqui, Mortágua fala desse “jogo perigoso” noutra vertente também: se o PS não der resposta aos problemas e às condições de vida difíceis da população, estará a alimentar o “ressentimento” que dá força ao Chega. E quem “menorizar” o pântano da maioria absoluta estará a desresponsabilizar quem fragiliza, de facto, a democracia, sugere — ou seja, o próprio PS tem culpas muito relevantes no processo de crescimento do partido de André Ventura.
Para resgatar o país deste jogo vicioso é preciso uma esquerda frontal. A esquerda que desistir de ser exigente por aceitar a chantagem do medo não serve o país. Não somos biombos de sala, nem cravos de lapela. A esquerda precisa de força suficiente para impor uma política de habitação que controle os preços e garanta casas, para multiplicar as capacidades dos serviços públicos com carreiras mobilizadoras, para acabar com os truques nos impostos, para garantir contratos de trabalho, salários e pensões decentes e para dedicar os recursos necessários à transição energética.
Esta parte do discurso serve também de justificação ao facto de o Bloco ter rompido com o PS, chumbando o Orçamento do Estado para 2022: a esquerda tem de ser “exigente” e o partido sabia bem que já não estava a conseguir obrigar o PS a ceder em mais do que pequenas medidas nas negociações dos últimos anos. Agora, estabelece as prioridades políticas dos próximos tempos para um Bloco que quer ser mais do que um “cravo na lapela” do PS, da habitação aos serviços públicos, dos impostos sem “truques” aos salários e à transição energética.
O primeiro [desafio] é erguer na Madeira a oposição que Miguel Albuquerque teme, a que não se cala perante a teia de interesses económicos que envolve o PSD e o PS Madeira. (…) Em segundo lugar, chegaremos às eleições europeias com o entusiasmo e a determinação de sermos a terceira força para ultrapassar o Chega e a IL, enfrentando as alianças europeias da extrema-direita, e para mostrar que há uma esquerda que se bate pelo seu povo e que disputa a política ao PS e PSD.
Nesta passagem, Mortágua fala já dos desafios eleitorais que o Bloco enfrentará no seu ciclo de liderança: primeiro, as regionais da Madeira, em que tem de fazer prova de vida e tentar recuperar a representação parlamentar que perdeu nas últimas eleições. Depois, as europeias, em que já assume uma fasquia: o Bloco quer ser a terceira força política e ficar à frente de Chega e IL — era o desafio que se tinha auto-imposto nas últimas eleições legislativas e que perdeu, tendo ficado, nessa altura, em quinto lugar.
E se, por desistência, por conveniência ou por jogada de um ou de outro dos protagonistas desta maioria absoluta, uma nova crise política se conjugar, cá estaremos para que a recuperação da força da esquerda permita impor um programa que devolva a este país o que a voragem da maioria absoluta tirou: dignidade e esperança.
Mortágua assume o que alguns dirigentes do Bloco têm garantido nas várias intervenções públicas: se houvesse eleições hoje — só por “jogadas” de que o partido se quer excluir, recusando que queira contribuir para a instabilidade política — o Bloco estaria preparado para “recuperar” a sua força (e, acredita o Bloco, até estaria em condições de ter um resultado muito melhor do que no ano passado). Na semana passada, Francisco Louçã chegava a garantir, numa entrevista ao Público, que o Bloco conseguiria neste momento duplicar o seu número de deputados, se fosse testado nas urnas — a convicção do partido é que a maioria absoluta do PS já cometeu erros suficientes neste ano que passou para que os eleitores que se transferiram do Bloco para o PS se sintam arrependidos.