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Percorrer o seu estúdio é fazer uma viagem pela história da música portuguesa, sobretudo (mas não só) das décadas mais recentes. Enquanto nos vai mostrando o covil com morada na Ajuda, em Lisboa, onde Fred Pinto Ferreira ensaia e toca e que em momentos mais frenéticos de trabalho pode transformar em casa — uma casa de banho com chuveiro e uma cozinha assim o sugerem —, as pistas sobre o trabalho que tem feito nos últimos anos sucedem-se.
Grande parte dessas pistas estão coladas nas paredes. São fotografias, alinhamentos e cartazes de concertos que aludem ao trabalho do músico, baterista mais a sério há 25 anos, filho do também mestre das baquetas Kalú (dos Xutos & Pontapés) e que passou por projetos como Yellow W Van, Buraka Som Sistema e 5-30, entre outros. Tem trabalhado também na produção e gravação de discos e na composição de música para publicidade, cinema e teatro e hoje faz parte dos Orelha Negra e da Banda do Mar, tocando ainda ao vivo com artistas como Slow J e Mallu Magalhães.
Nas paredes estão também pistas de uma carreira a solo iniciada recentemente: “Isto foi o alinhamento no Lux”, diz-nos, apontando para uma setlist do concerto de apresentação do seu primeiro disco O Amor Encontra-te no Fim em 2019, precisamente na sala a que esta quinta-feira (17 de fevereiro) regressa para apresentar o álbum Series Vol 1 – “Madlib”.
A carreira, porém, já vai longa e há relíquias mais antigas. “Isto foi uma letra do Sam [The Kid] para uma música dos 5-30, a ‘Pitas Querem Guito’, escreveu-a antes de gravarmos”, diz-nos, enquanto vai mostrando mais artefactos históricos, como “um alinhamento do Sam The Kid de um concerto que deu para aí quando saiu o Pratica(mente)“, uma foto em criança com o guitarrista Zé Pedro ou o “alinhamento do primeiro concerto de sempre da Banda do Mar, em Porto Alegre”.
Entre pratos e tarolas, guitarras (toca pouco, mas precisa de as ter por perto para os trabalhos musicais), teclados que parecem infindáveis e cartazes dos Beatles nas paredes, Fred vai apontando para outras coisas. Aqui, um alinhamento de um concerto de Slow J (em que esteve, como habitual, na bateria). Ali, apontamentos escritos por Sam the Kid sobre o primeiro disco de Fred (“esteve a tirar notas enquanto o ouvia em primeira mão, ouviu tudo, tudo, tudo, todas as músicas que tinha”). Acolá, uma prenda de Jorge Palma, “deu-me no outro dia”, com uma foto do cantor e uma mensagem assinada: “Keep on, abraço”.
Nas paredes também há cartazes de concertos de Mallu Magalhães, feitos manualmente pela própria cantora e só posteriormente digitalizados, uma fotografia de um concerto dos Orelha Negra com orquestra no festival Sudoeste e outras fotografias: ao lado do ex-companheiro de banda Branko, com o músico Francis Dale, com o rapper Beware Jack, com tantos mais. A imagem mais emotiva, porém, será uma das mais antigas. Fred aponta para um retrato e diz-nos: “Isto sou eu com o meu pai e o Zé Pedro. Neste dia estavam a gravar o single da ‘Minha Casinha’.”
A viagem faz-se no final de uma entrevista em que conversámos com o músico sobre este álbum mais recente que apresentará esta quinta-feira à noite na discoteca Lux Frágil, em Lisboa, mas também sobre como foi crescer como filho de um elemento dos Xutos & Pontapés e sobre a formação pessoal e artística de Fred, que o fez suar com o rock e gingar com o hip-hop. Pelo meio, fala do impacto que sente que a pandemia está a ter no meio musical que conhece tão bem e aborda sem pruridos um período mais sombrio que viveu, dando conta do que fez para o ultrapassar.
“Não me recordo de mim sem ter a música ao lado”
Nisto de tocar, quantos anos de concertos e bandas já leva? Tem essas contas feitas?
O meu primeiro concerto, ainda a brincar mas para mim já a sério, foi com cinco ou seis anos. Portanto, tem sido a vida toda. Não fiz bem as contas, mas mais a sério tem sido desde os 15 anos sempre a tocar.
Portanto, há 25 anos [tem 40]. Esse concerto dos cinco, seis anos, foi…
Na garagem da minha avó.
O que gosta mais de ouvir num baterista? O que é tocar bem bateria?
Depende, depende do género. Onde sempre me movimentei mais foi nas áreas do rock e hip-hop, em que a bateria tem um papel muito de condução da música. Para este último disco estive a estudar um pouco mais outros géneros, um bocadinho de jazz, embora este não seja um disco de jazz. Aí a bateria tem um papel por vezes um bocadinho diferente, não deixa de ser condução mas tem também um bocadinho mais de liberdade para explorar outro tipo de coisas técnicas que não domino muito bem, mas tenho tentado aprender e desenvolver a minha linguagem.
Mas gosto de ouvir uma bateria que marque o ritmo de uma música e que esse ritmo vá também surpreendendo, mas sem perder o andamento e sem se expor muito por cima dos outros instrumentos. Está ali numa mistura entre uma coisa que faz dançar, faz andar e marcar o ritmo da música, mas sem ser demasiado preponderante perante os outros instrumentos.
Sem canibalizar tudo o resto, portanto. Obviamente este seu percurso é feito de muitas bandas, muitos concertos, muitos projetos. Mais recentemente houve este início de discos a solo, mas já lá iremos. Antes disso: é filho do Kalú, músico e baterista [dos Xutos & Pontapés] que dispensa apresentações. Quão decisivo foi isso para querer ser músico? Imagino que estar rodeado de música desde pequeno tenha tido a sua influência.
Ser filho dele… além de ser um grande privilégio para mim poder estar perto de uma pessoa como ele e aprender todos os dias coisas novas com ele, fez com que estivesse sempre perto da banda e dos amigos do meu pai — tudo ligado à música. Isto desde que eu era pequenino. Isso fez com que também fosse desenvolvendo a minha paixão pela música. Nem sei dizer quantos concertos já vi dos Xutos, mas desde pequenino estava ali de lado a ver, a aprender. Isso fez com que depois quisesse também ser músico. Foi claramente por causa deles, por causa dessas vivências. Foi muito bom para mim.
Há muita gente que começa a pensar em ser músico na adolescência e aí descobre um mundo novo. No seu caso, esse mundo foi sempre o seu?
Sim, sim. Desde pequenino que fui vendo o que era a preparação de um disco, a preparação de um concerto nos ensaios, o soundcheck, a montagem e desmontagem de palco, a chegada do público, a ida do público embora, a reação do público. Ou aquele calor numa sala de concertos quando há um bom concerto, a volta que é preciso dar quando o concerto é mau e o trabalho que é preciso fazer para melhorar no próximo. Isso tudo é-me natural, não me recordo de mim sem ter a música ao lado.
Recorda-se do que o fascinava mais nesse mundo da música, quando era pequeno? Era a reação do público, era a vida de estrada…?
A vida de estrada é uma coisa interessante. As viagens são boas para nos desenvolvermos. É bom conhecer outras cidades, outras pessoas. É um hábito que se vai criando e que me faz. Habituei-me -à sexta-feira sair para ir tocar, ou sábado de manhã sair para ir tocar. Tanto que já me aconteceu, não há muito tempo, acordar a um sábado, não ter concerto e ir de carro até Leiria e voltar — só porque já tenho essa rotina na minha cabeça… estou tão habituado a sair ao sábado de manhã que fui para Leiria só para viajar de carro para um sítio e voltar. É uma coisa a que me habituei, pronto.
Imagino que existam vantagens e desvantagens de crescer com um pai músico — e sabê-lo-á ainda melhor porque também é pai. Sentiu que esta profissão, esta vida em trânsito, em permanente movimento para sair de casa e regressar, tem esses dois lados da moeda?
Sim. Tem coisas boas, não é? Conhece-se outros sítios, pode-se viajar, por aí é ótimo. Depois há esse lado pior de não estar presente: vamos e as pessoas da família ficam. Passas-se muito tempo fora, muitos fins de semana fora em que não podemos ir às festas de anos, não podemos ir a um jantar de família, a um jantar de amigos. Isso às vezes traz desvantagens, mas são escolhas que vamos fazendo e ao longo do tempo fui fazendo as minhas para poder equilibrar um bocadinho mais a balança nesse sentido. Agora já consigo estar mais presente e sair menos, mas preciso das duas coisas para me manter equilibrado.
Tendo crescido como filho de um pai músico, foi-lhe mais fácil depois de ser pai e músico perceber uma série de coisas naquilo que era a vida do seu pai? Chegou a dar por si a pensar: ‘agora percebo melhor porque o meu pai fazia isto ou aquilo, porque precisava de sair e estar fora’?
Sim, sim. Percebi melhor. Mas tive de perceber também que os tempos são diferentes. Os anos 80 e 90 para os Xutos foram muito diferentes dos anos 2000 para a frente. São tempos diferentes. Para mim, uma das grandes diferenças foi que o meu pai com os Xutos & Pontapés teve a carreira muito baseada em Portugal, houve algumas coisas no estrangeiro, mas foi sempre muito em Portugal. Eu estive muitos anos com os Buraka [Som Sistema], por exemplo, fora [do país], a viajar quase todos os fins-de-semana durante muito tempo. Ou com a Banda do Mar, mais tarde. Isso já é uma grande diferença porque a distância ainda é maior, são aviões, são dias fora. Isso faz diferença face a tocar em Aveiro, por exemplo, em que se pode ir de manhã e voltar para casa a seguir ao concerto. Portanto, para mim foi um bocadinho diferente. Mas percebi que é o nosso trabalho e que se conseguir equilibrar depois as ausências com presenças realmente presentes, as coisas equilibram-se.
A paixão pelo hip-hop: “Os Rage Against the Machine foram a viragem. E os Beastie Boys…”
Para alguém que gosta de tantos estilos de música — já tocou rock, hip-hop, teve agora esta incursão num universo com alguma ligação ao jazz —, no momento em que decide fazer trabalhos a solo torna-se mais difícil decidir a que vai soar, por que caminho vai seguir?
Não, não senti isso. Pensei sobre isso mas tentei por outro lado ter a minha personalidade e refletir a minha aprendizagem por tudo o que vou fazendo. Uma aprendizagem tida em projetos completamente diferentes uns dos outros. Tudo isso me ajudou a construir-me enquanto músico, a forma de fazer as coisas. É realmente um facto que gosto de muita coisa diferente. É quase como se fosse uma esponja, às vezes: tento aprender o melhor para mim e que me faz crescer em todos os sítios em que estou, com as pessoas com quem estou. Isso depois vai levar-me construir uma personalidade musical própria, até ao momento em que ponho cá para fora aquela mescla de géneros e de músicas diferentes que vou trabalhando e conhecendo.
Imagino que o rock tenha sido numa fase inicial, por influência do seu pai e dos Xutos & Pontapés, algo muito importante…
Continua a ser! Não oiço muito, mas continuo a gostar.
Sei que o Made in Japan [dos Deep Purple] foi um disco importante.
Completamente. Ainda há duas semanas fui jantar a casa do meu pai com os meus irmãos e acabámos a noite a ver o baterista dos Deep Purple, o Ian Paice, a fazer umas cenas de bateria num DVD que o meu pai tem. Depois estivemos também a ver DVDs dos Led Zeppelin. Tudo isso ainda faz parte da nossa vida hoje em dia, é uma coisa que tenho presente e que tem um impacto gigante em mim: ver os Led Zeppelin, mesmo os Beatles. Mas agora estou mais Led Zeppelin, aquilo realmente tem um impacto grande em mim quando vejo um concerto deles ou quando oiço uma música. É arrebatador.
Mas lembra-se de quando foi o momento em que, tendo essa influência familiar do rock, se começou a interessar mais por outros géneros de musicais?
Sempre gostei de tudo. Na casa do meu pai ouviu-se sempre um bocadinho de tudo, não só rock. Também ouvíamos hip-hop, ouvíamos música brasileira. E ouvíamos jazz, não muita coisa, mas também se ouvia. Quando se é mais puto se calhar está~se mais numa de rock. Houve uma fase em que era os Guns N’ Roses, os Metallica, em que estava mais focado nisso. Depois fui querendo conhecer outras coisas.
Lembra-se de algumas descobertas musicais específicas que, por exemplo, lhe tenham aberto a porta para passar a ouvir mais hip-hop?
Os Rage Against the Machine foram a viragem. Lembro-me de ter ido com o meu pai à Bimotor das Amoreiras — era uma loja de CDs muito boa que havia perto dos cinemas. Na altura fui com ele para ele comprar o CD dos Rage Against the Machine, foi incrível. Quando ouvi aquilo a primeira vez fiquei maluco. Ele comprou esse CD, que depois me emprestou, e comprou um CD dos Beastie Boys, Ill Communication, e outro CD deles instrumental, The In Sound From Way Out! Foi aí que comecei a gostar mais de hip-hop. Depois o aparecimento na minha vida do Valete e do Samuel [Sam the Kid] fez com que me fosse interessando cada vez mais. Mesmo os Da Weasel, também.
Dizia há pouco que não sabia quantos concertos dos Xutos terá visto. Que aprendizagem maior tirou de acompanhar os Xutos desde pequeno? O que é que isso lhe ensinou sobre música, sobre a vida, sobre como funciona uma banda, sobre como é ir para a estrada?
Ensinou-me montes de coisas. Ensinaram-me a dar o meu melhor, sempre, em cada concerto e a tratar as pessoas todas da mesma forma. Eu sou o baterista mas há um técnico de luz, um técnico de som de frente, um técnico de som de palco, há um motorista que nos leva — cada um está a fazer o seu trabalho. Eu só tenho de ir lá e fazer o meu.
Uma atitude ética, portanto?
Sim. Não consegui fazer o mesmo logo desde o início, provavelmente. Precisei de crescer, é normal. Mas hoje em dia… um concerto não é feito só pelos músicos, há muita gente por trás, há uma agência, as pessoas que tratam da nossa logística toda, de estadias, das refeições, da parte técnica. Há muita gente envolvida e graças a essa gente toda é que existe um concerto, é essa gente toda que permite que possas ir com uns amigos teus tocar num palco para um público. Este ensinamento deles não foi ‘senta-te aqui e vou-te ensinar uma coisa’, foi algo que aprendi ao observá-los, a ver como agiam perante a sua equipa. Isso fez-me perceber também porque é que eles estão aqui há tanto tempo, porque gostam tanto de fazer aquilo e porque têm a mesma equipa há não sei quantos anos. Foi um grande ensinamento.
“Quero fazer o que me apetecer, sem expectativa de que toque na rádio”
Estamos a falar dias antes de um concerto de apresentação no Lux Frágil do seu segundo disco, Series Vol 1 – Madlib, que foi lançado no ano passado. Enquanto alguém que está a lançar discos e a ter concertos de apresentação, pergunto-lhe: nota impacto da pandemia na indústria musical, no número de concertos?
Sente-se, toda a gente sente. Sinto-o nos concertos porque atuo menos e tenho menos público. As pessoas estão assustadas.
Ainda não se mudou o chip?
Não e não vai mudar tão cedo, acho. Não acredito. Eu pelo menos enquanto espectador ainda não estou completamente confiante para ir para concertos em salas muito cheias. Ainda não estou nessa fase…
E é natural que mais gente não esteja.
Temos de fazer um esforço e a começar a ir aos poucos, mas a pandemia teve efeitos devastadores em tudo, na economia, na cultura, muito — fomos os primeiros a fechar e dos últimos a abrir. Muita gente se calhar desistiu, teve de ir fazer outras coisas. Agora depende de nós e do público, da nossa resiliência. Somos muito resilientes, os portugueses têm essa ideia de correr atrás das coisas e não desistir e acho que tem sido provado. Basta vermos uma agenda de concertos, há-os cada vez mais todos os dias. É sinal que ninguém desiste. Estamos todos prontos e com vontade de tocar.
Isso também tem outro lado. Com a pandemia, muita gente foi esperando por melhores tempos para tocar e apresentar trabalho. Agora parece que essa espera transbordou: estamos numa fase em que todos os artistas querem em simultâneo ir tocar…
Querem e precisam.
Querem e precisam. Mas em momentos anteriores à pandemia havia alguns músicos a tocar e outros, ao mesmo tempo, em estúdio — depois iam trocando. Agora é preciso datas e agenda para toda a indústria musical, que parou e quer voltar em força.
Está mais complicado marcar concertos. Já me aconteceu com este disco novo que lancei: tentar marcar datas, os sítios até estão interessados mas como têm agenda marcada desde 2020 que teve de ser adiada… Tudo o que vinha de 2020 passou para 2021, boa parte voltou a ser adiada e passou para 2022. Ou seja, não há espaço. Vamos ver pessoas que lançaram discos em 2020 a apresentá-los agora, só. Depois é uma bola de neve: os que lançaram em 2021 também têm discos para apresentar, os que lançam agora não têm espaço porque não o há para todos ao mesmo tempo. Mas temos de estar aí, inventar coisas, fazer coisas e esperar a nossa vez para podermos apresentar o nosso trabalho.
Este disco explora de alguma maneira um tipo de ambientes ligados ao jazz com ritmos do hip-hop e da música eletrónica. Essa vontade de explorar esse diálogo do jazz com outros ritmos que não são jazz tem alguma coisa a ver com o movimento a que se chama “novo jazz”, que ganhou alguma popularidade no Reino Unido e no mundo nos anos recentes?
Não pensei muito sobre isso. Obviamente sei que esse movimento existe, conheço-o relativamente bem — conheço algumas coisas, pelo menos — mas não fiz o disco para seguir uma onda nem pensei muito nisso. Pensei no que queria, o ambiente que na minha cabeça queria explorar, a sensação que queria ter ao ouvir o disco, a sensação que queria ter ao tocá-lo, sem me querer meter nesta onda do jazz novo ou do jazz antigo. Isto não é jazz, é o que quiseres que seja. Para mim é música portuguesa feita por nós, por músicos daqui, músicos portugueses com talento, alguns deles sim mais do jazz do que eu, que não sou. Mas realmente essa liberdade de poder fazer música sem barreiras, sem géneros e sem regras é boa. A primeira música que lancei deste disco, o tema de apresentação, tem sete ou oito minutos. E tem porque quero fazer assim.
Se calhar até devia pensar mais de uma forma comercial, mas não penso nas coisas dessa forma. Quero fazer só o que me apetecer sem ter expectativa que vá tocar numa rádio. Fico muito feliz quando toca e quando as pessoas dizem que gostam do disco, que se identificam de certa forma. Mas fico ainda mais feliz por ter conseguido fechar uma ideia que tive, dar-lhe forma com músicos espectaculares, e por termos ouvido os resultados e termos ficado muito contentes. A partir daí tudo o que pode acontecer é sempre bom: os concertos que temos dado são sempre coisas muito boas para nós, a reação tem sido muito boa para mim e para os rapazes que tocam comigo. Isso não vai fazer com que deixe de fazer discos sozinho, sem ser com eles, porque tanto posso fazer uma coisa mais de beats aqui como uma coisa mais ambiental ali. Vou fazendo as minhas coisas, seguindo o meu coração e procurando fazer coisas diferentes. Mas sem dúvida que este disco que fiz com eles do “Madlib” foi um trabalho em que pensei bastante durante os últimos dois anos. Poder tocá-lo ao vivo é um privilégio muito grande.
Em termos práticos, há coisas paralelas à sua carreira de músico a solo e em bandas que lhe permitam fazer esse trabalho com mais liberdade artística? Por exemplo, a música que faz para filmes e para publicidade.
Tenho a sorte de, fruto das viagens todas que fui fazendo ao longo da vida, ter começado a perceber que a música é um sítio bom para estar mas é muito desgastante. Para se ficar 40 anos na música ativamente e viver-se de uma forma digna, tendo uma vida normal, é preciso sorte e muito trabalho. Paralelamente a essas viagens todas e a esses concertos todos que fui fazendo, fui aprendendo a construir uma coisa paralela que me desse mais alguma segurança na minha vida. Há muitos anos que fui trabalhando no sentido de ter uma empresa, que começou por fazer músicas para um anúncio publicitário, de repente no ano seguinte já fez para três ou quatro anúncios, depois já foram dez e isso foi crescendo. E passou para algumas coisas de filmes e de teatro. Isso permite-me estar na música de uma forma um bocadinho mais livre.
Já não depender do single tocar ou não na rádio?
Não critico ninguém que faça as coisas de outra forma e que dependa inteiramente do número de concertos que tem, atenção. Só fui fazendo esse trabalho paralelo para poder sentir que fazia as minhas coisas mais livremente.
Este universo do Madlib era uma ideia que já tinha há muito tempo ou apareceu recentemente?
Não, juntei este pessoal para tocar e não tinha músicas originais. Na altura até falei com o Sam [The Kid] e ele sugeriu fazer alguma coisa que tivesse samples de vibrafone. Como na minha formação temos um vibrafonista, que é o Eduardo Cardinho, a ideia passou por tocarmos músicas de hip-hop que tivessem samples de vibrafone na sua essência.
Começámos a fazer um espectáculo em que tocávamos as nossas versões de músicas que iam de J Dilla a Roy Ayers, De La Soul, uma data de coisas. O espectáculo estava muito fixe, mas depois para gravar um disco achava que podia ser um bocadinho disperso ter um álbum com uma música do Roy Ayers, outra do J Dilla, outra de De La Soul… Queria focar um disco num só artista. E realmente o Madlib, além de ser um artista que admiro muito e sigo há muitos anos, tem um traço eclético, tem um repertório gigantesco que te permite pegar em muita coisa do trabalho dele e explorar isso. No meio da sua discografia gigante, foi relativamente simples selecionar algumas músicas e criar o nosso ambiente próprio para elas, claro que com a devida autorização dele.
O facto de ser “volume 1” significa que pensa fazer o mesmo com outros artistas?
Gostava. Gostava de fazer com outros artistas. E gostava de fazer discos de originais com eles, uma ou outra coisa com voz. Tenho muitas ideias, mas as ideias em mim demoram algum tempo a amadurecer, demoro às vezes uns meses ou um ano para ir pensando e ir deixando as coisas andar naturalmente, até sentir as coisas crescerem em mim. Mas tenho muita vontade de fazer outro disco com eles. Gostava que fosse sobre o universo musical do Sun Ra, por exemplo, porque tem um lado espacial muito grande, de viagem, e gosto muito disso. Mas lá está, ainda estou a recuperar o investimento feito neste disco, temos ainda muitos concertos para fazer com este disco. Agora, de certeza que vão existir mais discos.
“Há quatro anos era uma pessoa mais triste do que agora sou. Procurei uma vida mais saudável”
Chegou a dizer que o álbum anterior que fez, O Amor Encontra-te no Fim, tinha sido um disco obviamente muito feliz por ser o primeiro a solo, mas fora também um disco duro de fazer. Chegou a dizer que foi feito numa altura muito nublada da sua vida, que estava muito perdido nessa fase. Este disco do Madlib já é de uma fase de vida totalmente diferente?
Não totalmente, mas se há quem diga que as pessoas não mudam, eu até acho que mudam. Sinto que sou uma pessoa diferente do que era há quatro anos, e ainda bem porque a minha procura foi essa. Estava num sítio em que não estava muito feliz. Pensei no que poderia melhorar e no que poderia fazer para ter um caminho pela frente mais interessante para mim. Foi isso que fiz. Fazer esse disco deu-me realmente gozo, mas foi muito duro. Para já estava num estúdio diferente deste, numa cave. Passava muitas horas todos os dias em que não via luz, o que acabou por me fazer um bocadinho mal porque não foi muito saudável estar sempre numa cave. Depois foi a vida que aconteceu: pessoas que perdes, momentos que temos. Para mim foi muito positivo identificar o problema e trabalhar para sair dele.
Ainda lhe farei uma pergunta sobre isso, mas antes: alguém que em 2018, 2019, passou por uma fase mais atribulada, lidar depois com uma pandemia não foi ainda mais duro?
Não, para mim foi super tranquilo. Quando acabei esse primeiro disco a primeira coisa que fiz foi: OK, vou mudar. Para já peguei nas minhas coisas todas e saí daquele estúdio, ainda o tenho, mas estão lá outras pessoas, vim para este sítio. Gentilmente, as pessoas que cá estavam, e que agora estão aqui ao lado, receberam-me muito bem e fizeram-me sentir em casa.
Deixou-me logo muito mais feliz estar num espaço destes em que consigo ter luz do dia todos os dias, em que tenho plantas que vejo crescer, em que tenho a porta aberta e estou a trabalhar. Tudo isso mudou-me a forma de olhar para as coisas e de olhar para mim próprio. Depois, mesmo antes da pandemia fiz uma viagem longa para a Argentina, sozinho, que me fez bem porque vinha dessa ressaca desse primeiro disco. Tinha sido muito intenso para mim fazer aquilo e pôr tudo cá para fora. Era muita coisa: primeiro disco a solo, falar de sentimentos meus. Pus tudo cá para fora porque precisava mesmo de o fazer. Fiquei contente e depois comecei a tratar do problema, a viver a vida de uma forma um bocadinho diferente. As respostas foram-me chegando e essa viagem para a Argentina e Uruguai foi importantíssima.
A que cidades foi?
Estive em Montevideu e Buenos Aires. Adorei estar lá. Depois voltei e passado talvez um mês chegou cá a pandemia. Foi duro como foi para toda a gente, mas já ia num processo de construção muito positivo e passei o tempo todo aqui, sozinho, sempre a fazer coisas, a ouvir música, a curtir, a aprender, a jogar playstation. Se me perguntarem se nos últimos dois anos estive todos os dias feliz, não estive. Certos dias ficava mais abatido. Mas em geral acho que consegui lidar relativamente bem com isto. A instabilidade que nos criou a todos, as famílias que podem estar a passar muitas dificuldades, aqueles que perderam o emprego: isso sim causa-me instabilidade. Agora ter de ficar sozinho muito tempo não me fez diferença.
Falava há pouco de identificar o que não lhe estava a fazer feliz e de mudar. Estamos numa fase em que as pessoas estão a falar mais dos seus problemas e das suas fases mais sombrias, a normalizar esses períodos. Cada pessoa terá a sua maneira de ultrapassar isso, com especificidades próprias, mas no seu caso o que fez?
Acho que não existe realmente uma maneira, cada um tem a sua forma de encarar um momento desses. Aquilo que fiz foi parar e aprender a ter uma vida mais saudável, ler mais, aproveitar as pequenas coisas que às vezes no dia-a-dia não tiramos tempo para observar. As plantas foram algo bom para mim, chegaram aqui pequeninas e agora estão gigantes. Ver a vida a acontecer. Olhar para os amigos de outra maneira, não achar que tinha o mundo centrado em mim e que só tinha grandes problemas. Aprendi a relativizar um pouco mais as coisas e a pôr cá para fora coisas que me apoquentavam. Tive bons amigos que me ouviram, tive uma família que me recebeu sempre, fui conhecer coisas novas, li livros novos, li poemas em voz alta — nunca tinha feito isso, aprendi e fez-me bem.
Procurei uma vida saudável. A mim, isso ajudou-me. Tentei aceitar melhor as coisas como são, ajudou-me a sair de um sítio que estava demasiado atribulado para mim. Há quatro anos estaria aqui a falar exatamente como estou agora, não era uma pessoa mais nervosa do que agora sou, mas era mais triste do que sou. Na vida crescemos, há várias coisas que vão acontecendo com as quais não estamos habituado a lidar. É preciso aprender a lidar com elas, relativizar, aceitar que hoje estou mais triste, mas amanhã já não vou estar. É uma filosofia de vida que posso ter. Posso continuar a fazer as mesmas coisas, mas sendo mais cuidador de mim próprio. Normalmente, os resultados disso são positivos. Aprendi que às vezes as coisas são mais simples do que achamos. Há coisas inevitáveis, que são problemas a sério que temos de encarar. Depois há muitas outras coisas que achamos que são problemas gigantes e não são assim tão importantes.
Chegou a dizer numa entrevista ao Diário de Notícias, aquando desse primeiro disco, que uma coisa que não lhe estava a fazer bem era o consumo de álcool. A vida de um músico, a vida de estrada, de tocar à noite, de estar no tipo de ambientes em que um músico está, torna-o mais suscetível a vícios?
É preciso ter regras. É bom conhecer-me e saber os meus limites. Estou a falar, atenção, para mim próprio: foi o que senti para mim. É claro que quem estiver a tocar todos os dias vai estar em ambientes mais propícios, de festa, com um grupo de amigos a jantar, beber um bocadinho mais. Está-se mais propício a todas essas situações. Realmente o álcool é uma coisa que pode destruir a vida. Nunca tive um problema de álcool assim, destruidor, mas consegui perceber os meus limites.
Hoje em dia adoro beber um copo de vinho ao jantar. Aquilo relaxa-me e gosto de me sentir um bocadinho mais relaxado ao fim do dia, eu e toda a gente. Mas lá está, estou sempre à procura de conhecer os meus limites. Sei que beber vinho, beber álcool, dá uma boa sensação e um bom momento, mas depois há consequências disso que podem não ser muito boas. Lá está, é preciso saber os limites, as regras. Já tive muitos amigos na música que são super disciplinados, não bebem álcool ou bebem um copo de vez em quando e estão no meio de um concerto ou de uma festa. Ninguém nos obriga a nada, fazemos o que queremos. São também fases da vida, quando se é mais puto queremos andar mais nos copos, depois há uma fase em que não queres estar nos copos, depois voltamos…
A minha dúvida é se esse ambiente não estimula…
Cada vez menos. Tem tudo a ver com a disciplina, com o que queremos fazer. Nem sempre estamos alinhados. Vamos andando, vendo, conhecendo e corrigindo, vendo o que nos faz melhor no momento.
“Aprender música traz uma disciplina. Acho importante que os miúdos tenham uma base musical”
Tem dois filhos, certo?
Tenho.
Estão os dois ligados à música nesta fase?
Sim. O meu filho Sebastião está mais ligado à fotografia nesta fase, está na música, mas ligado muito à fotografia — de artistas e músicos — e à realização. É um artista super talentoso, tenho um grande orgulho nele. A minha filha Maria é violinista, estuda no Conservatório no Porto e está a fazer o caminho dela. É mais pequenina, tem 9 anos. Mas está a caminhar.
A música é claramente uma coisa de família, aqui.
Sim. Mas por acaso com a minha filha nem a chateio com música, é uma coisa que já está dentro dela, gosta.
Crescer com um pai músico pode ser suficiente para levar alguém a querer estar no mesmo meio? Deverá sabê-lo melhor do que eu.
Talvez, talvez. Isto é o que todos os pais dizem mas é verdade: no fundo só queremos é que estejam a curtir, que sejam felizes. Não sei se a minha filha Maria vai ser música. O Sebastião acredito que esteja no caminho que pode seguir, porque tem 19 anos e já está a entrar numa vida mais profissional. A minha filha Maria com 9 anos, por tocar violino não significa que queira seguir isso. Mas acho importante que os miúdos tenham uma base musical, saibam tocar um instrumento mesmo que não venham a ser músicos. Tal como é importante para mim irem para a natação para saberem nadar — foi a primeira atividade que tanto um como o outro fizeram, para mim foi obrigatório. Depois um escolheu futebol, ela escolheu violino e agora gosta de equitação também. Para mim é bom, tem contacto com os animais, acho porreiro.
No caso da música há um estímulo à criatividade, é por isso?
Há uma disciplina, é importante para toda a gente: treinar um instrumento todos os dias. Cada um é que sabe, eu faço o melhor que consigo e sei para eles. Parecem-me felizes e isso também me deixa feliz.
Está quase o concerto no Lux Frágil. Falámos deste disco e do tipo de coisas que quis explorar. Agora quem for ver o concerto, o que pode esperar?
Vai encontrar um espectáculo baseado quase todo neste disco, o Vol 1 Series – Madlib. Tem uma particularidade que não está no disco: estarão dois teclistas, já não apenas um. Portanto será Karlos Rotsen no piano, Rhodes e sintetizadores, Diogo Santos noutros sintetizadores e pianos, o José Garcia no baixo, o Eduardo Cardinho no vibrafone e o Tomás Marques no saxofone. E vai ser baseado neste disco, sendo que depois há muitos momentos de liberdade que fazem com que haja improvisação, com que existam mais solos.
Há uma tentativa de criação de ambientes. Temos as coisas ensaiadas para termos uma estrutura para tocar mas depois há momentos em que a resposta do sítio, das pessoas e a nossa — entre nós mesmos — vai fazer com que se crie alguma coisa. É um desafio assustador à partida porque pode correr mal, mas também pode correr bem. As músicas serão reconhecíveis mas existirão momentos que são irrepetíveis, quase, porque resultam do momento, são coisas que decidiremos fazer na altura. Se estou ali a tocar e digo ‘bora descer’, desce a dinâmica, ‘solo de Rhodes’… Há várias coisas que farão com que o concerto possa ir para a esquerda ou para a direita. Para quem gosta deste tipo de música, pode ser um concerto muito fixe. É uma grande viagem. Eu gosto muito, é uma liberdade diferente, um concerto diferente.
Ainda lhe falta fazer alguma coisa na música, 25 anos depois?
Falta-me tudo. Falta-me fazer mais discos, falta-me explorar coisas novas. Falta-me fazer mais discos com os Orelha [Negra], fazer mais discos com a Banda do Mar, fazer mais discos meus a solo, por exemplo de beats e de música ambiental.
De Banda do Mar, há mais discos em vista?
Às vezes falamos disso. Cada um tem as suas vidas. Também acompanho a Mallu [Magalhães] ao vivo e ela está a fazer a promoção do seu novo trabalho [o disco Esperança]…
Mas há-de acontecer?
Há-de acontecer. É natural, é como nos Orelha Negra em que não existe propriamente um plano de quando as coisas têm de acontecer. As coisas acontecem a seu tempo. Até lá é ir absorvendo, construindo a nossa personalidade musical e pessoal. E estarmos bem.