Vamos em seis volumes e a história é sempre a mesma. Começa com uma banalidade qualquer, mas, na página seguinte, já fomos apanhados. Seguimos a cabeça de Knausgård, não temos como aguentar a ideia de o perdermos de vista. Não há a exposição de factos nem o melodrama do derramamento de sentimentos. Há a explicação para a brutalidade da existência, e essa é a brutalidade de empurrar um carrinho de bebé – como todos nós; de amar – como todos nós; de ver o amor morrer – como todos nós. Que nos interessa, então, a sua história?
Com a saga A Minha Luta, cujo último volume está agora publicado em português, Knausgård propôs-se não só a narrar a sua vida, mas a entendê-la enquanto fazia desfiar o exercício da escrita. Ao longo deste monumental romance, dividido em seis livros, o autor focou-se nos pontos-chave da sua vida. Pelo caminho, deteve-se em detalhes, explicou-os, massacrou-os, mastigou-os – e nada disso afugentou leitores. Pelo contrário, o fenómeno Knausgård foi um foguete pelo mundo. Em causa está uma grande novidade na escrita literária, em que alguém, ao invés de mostrar a experiência humana como um conjunto de histórias atiradas, permite ao leitor entrar na sua cabeça à medida que experiencia a sua vida, que vai desde os grandes momentos transformadores à lassidão do quotidiano. O resultado é uma intimidade sem precedentes e um impacto colossal na vida do autor.
Repetimos a questão: que nos interessa esta história? Talvez todos os leitores, em algum momento ao longo destas 3552 páginas, se tenham feito esta pergunta, mas esta série de Knausgård lê-se num estado de embriaguez encantada, emocionada, brutalizada. Por vezes, até se contesta a utilidade – ou o interesse – de tudo aquilo, mas a pergunta dura pouco porque a embriaguez permanece.
Knausgård expõe quem o rodeia de uma forma de tal maneira despudorada que pode constranger. A sua ânsia de dizer é tal que o resultado foi evidente: ações judiciais de familiares para que os livros não fossem publicados, gente a pedir que lhe trocasse os nomes nos volumes, cortes de relações, zangas, crises conjugais. Para além dos problemas entre os Knausgård, o mundo também se viu a contestar os limites morais da literatura. Teria um autor o direito a espraiar a vida dos outros em páginas disponíveis aos olhos de qualquer um? Knausgård argumenta com a sua própria vida, não deixando de ter noção do mal que faz aos outros. Os volumes foram publicados na Noruega num espaço de dois anos, e este último, agora publicado em Portugal, ainda fala da receção do primeiro. É verdade que o autor não podia imaginar o impacto que a sua obra colossal teria, mas temia-o a uma escala menor. Neste último livro, escreveu sobre os tempos que precediam a publicação do primeiro:
“Pensar no assunto bastava para me deixar como que a arder por dentro. Tomavam-me um desespero, uma culpa e uma angústia abrasadores, e a única maneira de os repelir era pensar que ninguém sabia ainda de nada, que nada acontecera ainda, mas era uma ideia que ajudava cada vez menos, porque em breve chegaria o dia em que teria de passar o manuscrito para as mãos de Linda, e ela leria tudo o que eu escrevera sobre a nossa vida.” (p. 40)
Pode uma relação sobreviver à verdade absoluta, aos pensamentos retorcidos e secretos que existem sem que se possa evitar, mas que não são verbalizados porque se entende que têm de ser evitados? Knausgård escreve sobre isso muitas vezes, sobre a forma como o que achava sobre Linda Boström, mulher com quem casou e teve três filhos, pôs a relação em cheque. Ela teria a sua imagem dele, mas foi nos livros que ele despejou a sua imagem dela. E, na empreitada por gastar tudo o que mói, também atirou aos leitores a reação:
“Disse-me que o romance lhe parecia bom, que era horrível lê-lo, embora não tivesse outro remédio. Eu disse-lhe que era verdade que me sentira frustrado, mas que já [não] me sentia assim. Ela disse: Adeus, romantismo. E acrescentou: O que é certo é que todas as ilusões possíveis sobre a nossa relação desapareceram a partir de agora. A sua voz soava vazia de emoção, e dei-me conta, nela, de certa dureza, como se estivesse a dizer a si mesma que iria resistir.” (p. 928)
Não é que, n’A Minha Luta, os leitores sejam voyeurs, mas desde muito cedo na série que o leitor se pergunta como é que um romance sobrevive a este romance, e os solavancos conjugais descritos vão deixando intuir que os milagres não existem. Inevitavelmente, chega a pergunta: “Como foste capaz de escrever isto num romance, e depois dares-mo a ler?” (p. 929). É que, quando a verdade é má, a verdade em público pode tornar-se uma catástrofe. Numa carta dirigida a uma parceira anterior, Knausgård lá afirma que compreende “que o simples facto de uma pessoa se descobrir a si mesma num romance seja como sentir-se nua” (p. 119). Ao mesmo tempo, afirma que Linda não corta nem boicota, ainda que, no último volume, acrescente que lhe pediu para cortar dois episódios, tendo ele anuído e depois tido o desplante de dizer quais. Já Yngve, seu irmão, embora assinalando o desconforto, entende que não é sobre ele que Karl Ove escreve, sendo antes da sua própria experiência que a empreitada se trata.
O autor norueguês quebrou tradições literárias, expôs a sua intimidade de uma forma que desnorteou familiares, amigos e leitores. Aqui, a intimidade é a sua própria cabeça, muito mais do que o espaço de uma casa ou de uma cama. Fê-lo não se contendo. Aliás, é o próprio que diz o seguinte:
“(…) para se ser livre, não se pode ter os outros em conta (…). Escrever só é possível transgredindo o social. Se quisermos penetrar a realidade tal como ela é para cada um – e não existe outra realidade –, se realmente quisermos atingi-la, não poderemos ter em conta a perspectiva dos outros. E isso dói. Porque dói a quem não é tido em conta, e dói não entrar em linha de conta. O meu romance feriu todas as pessoas que me rodeaim, feriu-me a mim, como, dentro de alguns anos, quanto tiverem idade para o ler, ferirá também os meus filhos. Se o tivesse feito mais doloroso, teria sido mais verdadeiro.” (p. 947)
Sem este mote, o livro não seria possível, e a realidade operada pelo romance seria de tal forma outra que o próprio romance seria outro. A história da vida de Knausgård é tantas vezes banal – insípida, até – que só esse corte com a tradição literária, esse terreno novo por explorar, é que poderia gerar a onda de fanatismo e comoção que gerou. O autor justifica o lugar do romance como próprio para essa verdade, encarando-o como “um lugar onde podemos pensar o que de outro modo não pode ser pensado” (p. 916). Mas, regra geral, o pacto é outro: “o autor é livre de dizer o que quiser porque sabe que aquilo que diz nunca será, ou não deverá pelo menos sê-lo, referido a si mesmo, quer dizer, à sua pessoa privada” (p. 916). Knausgård quebra esse pacto afirmando que o compromisso com o romance não bastava. Em vez disso, queria comprometer-se com a realidade, e o que o eu do romance sentia era o mesmo que o autor do romance sentia, o que resultava na anulação do espaço privado. Consequentemente, Knausgård era responsável por tudo o que o romance dizia. Daí que o autor tenha temido não ser “digno de crédito” (p. 156), sabendo que nem sempre é possível confiar em si nem na sua memória, porque esta fica infetada pela escrita, deixando o autor de distinguir uma da outra. Claro que se poderá intuir que, nas descrições minuciosas que apresenta, haverá ficção. Afinal, nenhum cérebro irá registar com precisão conversas, chuvas e paisagens durante vinte anos. Portanto, o que Knausgård regista é a impressão que lhe fica, o que acha que as pessoas poderão ter dito, o que julga que poderá ter sido. Esta ideia de ficção não será per se uma mentira, mas simplesmente a forma como a memória pode criar a realidade.
Enquanto mostra o mundo à sua volta, também olha para si mesmo, embora sem o intuito de passerelle do eu a que a auto-ficção nos habituou. Ao mesmo tempo que nos dá tudo e apaixona, o autor parece ter uma visão distorcida de si mesmo. Fascina-nos com o seu talento, a sua cabeça singular e genial, complexa, que abre a dos outros, mas acha-se sem interesse e inferior a toda a gente. Durante uns tempos, a sua distorção consola. Se até ele se julga pouco, como não nós? Ainda assim, o desconforto perante esta imagem prevalece quando o lemos dizer que sentia que ninguém podia gostar dele ou que se sentia inferior aos outros em todas as situações, não apenas às pessoas que “pelo seu carisma eclipsavam todas as restantes” (p. 226), mas também a todos os outros com quem se cruzava. Geir Angell, amigo, disse o que era óbvio:
“A ideia que fazes da tua pessoa é a mais retorcida que alguma vez vi. Não te conheces a ti mesmo. Nunca te passou pela cabeça que os aborrecidos são os outros? Que são os outros que são falhos de originalidade e consciência, que são eles que não têm iniciativa e estão cheios de clichés?” (p. 227)
Lendo Knausgård e vendo a sua posição na sociedade e na literatura – não só norueguesa, mas mundial, neste momento –, podemos questionar o que lhe falta. Talvez um pai que não lhe tivesse inspirado medo a infância toda, alterando a imagem de si mesmo, destruíndo-lhe a auto-estima e a confiança? O impacto do pai do autor na sua vida é uma sombra permanente nesta série – que, aliás, começa com um longo volume dedicado à sua morte – e, de tempos a tempos, o autor avalia-o. Assim, é inesquecível a passagem em que afirma que a sua maior conquista enquanto pai foi entrar numa sala e ser ignorado pelas filhas. A falta de auto-estima do autor, um homem a que a unanimidade chamou sexy, é tal que torna possível esta passagem:
“Por causa do meu ar de idiota, com a minha barba e o meu cabelo comprido? Parecia um músico falhado de heavy metal, que se aproximava a passo de corrida dos cinquenta anos. Ah, a minha cara cheia, com as suas faces roliças, as suas rugas profundas e, para acabar, a minha barba rala.” (p. 316)
A sua relação com a ideia de verdade parece uma nova proposta de experiência humana – a sua versão é o esplendor dessa experiência. Knausgård mostra o que vê, e lá mais para o fim questiona se o que vê é a verdade. Ao mesmo tempo, como nenhum outro, assume a sua canalhice porque a vê como parte da verdade. Depois das descrições, lá pode questionar os benefícios, ainda que já seja claro há muito que essa aritmética foi expulsa do jogo literário:
“Quando comecei a leitura, compreendi que cometera um erro, intuindo o que as pessoas que me ouviam iriam pensar: não se podia tratar assim as crianças, eu era um mau pai, que pensava que admitir o mau que era me tornaria melhor, e que por isso procurava uma espécie de absolvição na literatura.” (p. 1078)
Contudo, não parece haver qualquer tentativa de redenção – só exposição de uma cabeça humana. E podemos perguntar-nos se o que Knausgård diz, bom ou mau, é mesmo a sua versão da verdade, ou então podemos deixar-nos ir no jogo que propõe – assumir que tudo o que diz é verdade, que as suas dúvidas sobre os factos são verdade. Os autores de auto-ficção têm sempre a tendência de se maquilharem para o olho público, seja por darem uma versão amena de si mesmos, seja porque, quando têm a ousadia de confessar as suas imoralidades, é isso mesmo que se vê: uma confissão e, portanto, uma procura de redenção. Knausgård desarma com o seu desenrolar de histórias, e quando não explica o que faz ainda choca mais. Ao mesmo tempo, chega a ser desarmante a imagem que dá de si, algures entre precoce, impotente e mau na cama, enfrentando tabus como mais ninguém o faz. Mais uma vez não procurando redenção ou justificações, aproxima cada vez mais o que faz de verdadeiro relato da experiência humana. Não há contemplações, há descrições como pancadas.
Eis que chegámos ao fim das 3552 páginas. Desde 2011, muito tempo correu, muita vida também. De Knausgård, sabemos o sucesso estrondoso que alcançou. Os filhos terão crescido, a vida não será a mesma. Da sua vida íntima, já algumas coisas vazaram. O que chegou agora aos leitores portugueses já não é novidade fresca e, ao contrário de um romance que não pretenda ter este alcance, a história não acabou – porque Knausgård não acabou. Durante estes anos, tocámos-lhe o coração, ou ele tocou-o para nós. Pudemos ser a sua cabeça durante muito tempo e o que esventrámos ficou à espera de mais esventração. Mas Knausgård deu-nos este diamante em bruto – a sua vida em bruto atirada para os leões – e a seguir voltou a ser o único ao leme dos seus dias. A relação dialógica que propôs chegou ao fim nos seus termos e quem a permitiu e atualizou não tem como reiniciá-la. Mas parece que ficou tanto por dizer. Vivemos a intimidade da sua cabeça, a vida continuou durante anos, os leões cá estão insaciados. Já não podemos falar mais?