Queria ser cavaleira, andar pelo mundo com espada e armadura, mas depressa percebeu que esse sonho jamais poderia ser real. Então, dedicou-se a outras criações, personagens sobrenaturais, mundos fantásticos. Percebeu que essa podia ser a sua vida. Ser escritora era apenas o plano B para Beatrice Salvioni mas, aos 28 anos, o primeiro romance já foi vendido a 32 países, deu-lhe o Prémio Scuola Holden e comparações a Elena Ferrante.
A Malnascida (publicado em Portugal pela Alfaguara) passa-se em Itália, nos anos 30, e é a história de Francesca, uma rapariga de 12 anos formatada para ser a menina perfeita. Por outro lado, Maddalena é olhada de lado, atribuem-lhe azares e desgraças, chamam-lhe Malnascida e ninguém quer aproximar-se dela. Ninguém, exceto Francesca. Esta improvável amizade ajuda cada uma delas a libertar-se dos seus medos e fantasmas. Juntas talvez consigam ter uma voz poderosa capaz de lutar contra as imposições de um regime fascista.
Apesar de já ter conquistado o Prémio Raduga, em 2021, com um conto, Il volo notturno delle lingue mozzate, Beatrice Salvioni ainda não tinha nenhum livro publicado. A Malnascida foi o projeto final do curso que fez na Scuola Holden, uma conceituada escola de escrita, na qual ganhou igualmente uma distinção.
As duas personagens principais há muito que pairavam nos universos inventados pela autora, sem que ela tivesse realmente dado conta. Em parte, certinha como Francesca; em parte, aventureira como Maddalena. Salvioni cresceu num colégio de freiras, uma realidade rígida onde sempre se sentiu deslocada. Todas essas memórias se juntaram às histórias que os avós contavam do tempo do fascismo e o resultado está num livro de estreia que continua a somar elogios. Falámos com a autora de A Malnascida, que confessa ser apaixonada por Fernando Pessoa, ela que fez uma breve visita a Portugal.
Tem 28 anos, este é o seu romance de estreia. Sempre sonhou ser escritora?
Ser escritora era o meu segundo emprego de sonho quando tinha uns nove anos. O primeiro era ser cavaleira. Queria viver aventuras, andar pelo mundo com uma espada e armadura, enfrentar dragões, esse tipo de coisas. Depois descobri que não era uma carreira viável nos tempos modernos, portanto encontrei outra forma de viver aventuras: inventando-as e escrevendo.
Lembra-se da primeira história que escreveu?
Penso que era sobre uma criança que estava perdida num cemitério e encontrava um fantasma. O fantasma ajudava-a a procurar a saída. Uma vez, no terceiro ano da escola primária, também me pediram para fazer um trabalho sobre as férias de verão. Escrevi sobre as férias nas montanhas e sobre ter sido raptada por um ogre, conseguindo escapar com a ajuda de um crocodilo. A professora deu-me má nota e disse que as férias não tinham sido assim. Perguntei: “Porque não? As minhas férias foram aborrecidas e isto não é aborrecido.” A partir daí, percebi que gostava de inventar coisas.
Todas essas histórias tinham um elemento fantástico. A Malnascida tem uma personagem que tem algo fora do comum, mas fica um pouco ao critério do leitor se é sobrenatural ou não?
Comecei por pensar em histórias de bruxas e na relação entre duas raparigas aparentemente muito diferentes. Uma diz sempre que não tem medo de nada, a outra vive cheia de medos. Depois pensei na importância de uma voz que fosse realmente poderosa e capaz de entrar na mente das pessoas. Aos poucos, comecei a perceber que era melhor que esse poder fosse uma coisa grandiosa, em vez de algo real, uma superstição que as pessoas à volta dela tinham.
O livro foi vendido para 30 países ainda antes de ser publicado em Itália. Como é que isto aconteceu?
Realmente não sei. A minha agente, Carmen Prestia, deve ter a resposta. Eu nem sequer sabia que o livro podia ser vendido antes de ser publicado. Foi surpresa atrás de surpresa. Terminei a primeira versão em 2021, foi o projeto final da Scuola Holden. Conheci esta agente, ela adorou a história, eu confiei nela e ela começou este pequeno milagre. Primeiro em Itália, na Giulio Einaudi Editore, que sempre foi uma das minhas editoras preferidas. Depois ligou-me e disse-me que tinha mandado para uma amiga em França e que ela tinha adorado. E a seguir, um país atrás do outro.
A Beatrice ainda nem tinha visto o livro?
Não, nada, foi muito rápido.
Escolheu a época do fascismo para situar a história, um período muito longínquo para si. Porquê?
Quando comecei a desenvolver a ideia na minha cabeça tinha estas duas raparigas que lutavam para que as suas vozes fossem ouvidas. Como tinha em mente as bruxas, pus-me a pensar num período em que uma história de bruxas nunca tivesse sido contada. Pensei no fascismo e pareceu-me natural, nunca me passou pela cabeça que a história se passasse hoje. Quando colocamos uma história no passado isso também nos ajuda a ter algum distanciamento e podemos olhar para ela com mais clareza. Ao mesmo tempo, há semelhanças entre passado e presente. Há paralelismos e, com algumas alterações, a história podia ser atual. Penso que o leitor reconhece a luta e fica a pensar no porquê de ainda acontecer o mesmo hoje.
Quando começou a escrever já tinha a história toda, do início ao fim, na cabeça?
Tenho de ter um projeto antes de começar a escrever palavras, tenho de saber exatamente o que quero. É fácil perder-me se não souber como quero que avance e termine a história.
Herdou muitas histórias dos anos do fascismo por parte dos seus avós. O que lhe contavam?
Contaram-me histórias da juventude deles quando eu era muito nova, portanto aí deixaram de fora as coisas que podiam assustar-me, por eu ser uma criança. Só mais tarde é que entendi a tragédia e o medo. Eles contavam as coisas como se fossem aventuras pitorescas e tentavam sempre fazer-me rir. O meu avô fugia de casa pela janela durante a noite e era perigoso, era 1943, havia recolher obrigatório. Ele tinha de ir visitar a namorada, portanto contava isto como uma aventura. Quando conheceu a minha avó, durante a guerra, era 1945 e decidiram casar e ir de lua de mel porque, segundo eles, “só se casa uma vez”. Apanharam um comboio, foram para os lagos e os caminhos de ferro eram perigosos durante a guerra mas preferiram arriscar. Deixaram-me sempre com a sensação de que não estavam a contar-me tudo. Claro que naquela idade não estavam.
O livro funciona como uma homenagem?
Sim, há bocadinhos deles e, é engraçado, depois de o livro ser publicado, o meu pai leu-o e disse-me que há uma cena na história [quando Francesca vai pela primeira vez a casa de Maddalena, Ernesto, o irmão mais velho, está em cima de uma mesa a servir de modelo, com um vestido de noiva colocado] que a minha avó [a outra avó] contava sempre. Obrigava o meu avô a vestir o vestido de noiva para ela o reparar. Eu estava tão orgulhosa desta cena e, afinal, não fui eu que a inventei, estava algures na minha memória.
A história passa-se em Monza, que a Beatrice conhece bem porque é a sua cidade natal. Mas para situar a história nos anos 30, que outra pesquisa teve de fazer sobre a época?
Há muitos livros sobre esse período, mas a maioria foca-se na guerra e na política, esquecem as pessoas comuns e o quotidiano. Eu estava mais interessada nessa parte e tive a sorte de tropeçar num livro que reúne entradas de diários de pessoas daquela época. Foi essencial para me colocar na cabeça das pessoas, mas foi muito estranho, por exemplo, ler as cartas que o Mussolini recebia de mulheres de todas as idades, de todos os extratos sociais, que declaravam o amor por ele. Era uma figura quase mitológica. Descobri também o arquivo de um pequeno jornal local, Il Cittadino, e li as reportagens que descreviam dias específicos que incluí no livro, como o Gran Premio ou o evento em que o regime disse às mulheres que tinham de entregar as suas alianças.
Há uma narradora, a Francesca, mas o título vem da outra rapariga, Maddalena, a quem todos chamam malnascida. Acabamos por ter duas protagonistas?
Acho que são indissociáveis. Não existem uma sem a outra e acho que, em parte, é porque ambas cresceram comigo. Quando terminei este livro, olhei para as histórias que tinha escrito antes e elas estavam sempre lá de alguma forma, mesmo com outros nomes ou outras caras. Uma cheia de sombras mas que não tem medo de nada, é mais corajosa, e outra que tem muitos medos. Acabam por ajudar-se uma à outra, a ligação é muito forte. Sempre soube que a história tinha de ser contada do ponto de vista da Francesca porque a outra personagem está afastada da realidade, é uma criatura estranha. É como na história de Sherlock Holmes: não podemos entrar na cabeça dele, porque ficaríamos perdidos, não perceberíamos nada. Precisamos do Watson e, da mesma forma, precisamos da Francesca.
Para nos guiar?
É isso. Podemos dizer que ela é a protagonista porque tem o arco narrativo maior e, no final, é ela que tem uma escolha definitiva. É ela quem muda mais, a Malnascida é o catalisador para as mudanças de Francesca, sem ela a Francesca não poderia fazer nada. Mas a Francesca também ajuda Maddalena a perceber que não está sozinha.
A personagem da mãe de Francesca é das mais intrigantes. É uma mulher linda que queria ser atriz, mas acaba por tornar-se esposa, mãe, perde um filho, todos os seus sonhos ficam pelo caminho. Porém, em vez de incentivar a única filha que lhe resta, castra-a.
É engraçado, muita gente diz-me que ela é a personagem mais odiada, ainda mais do que o fascista Roberto Colombo. Ela sempre disse à Francesca como é que tinha de se apresentar, é obcecada com a imagem perfeita e com a vergonha do corpo, porque o corpo pode ser perigoso. Ela introduz muitos medos na filha mas, por outro lado, ela tem outra vida em segredo. Por causa disso, tendemos a odiá-la. Ao mesmo tempo ela é uma figura trágica porque tinha tantos sonhos quando era nova e não conseguiu alcançá-los. O que ela faz é uma forma de rebelião porque, claro, não é a mulher perfeita daquela época. Ela devia ser a mãe perfeita, a dona de casa perfeita, uma mulher modesta. As mulheres que se preocupavam muito com a própria aparência eram olhadas de lado. Ela usa um vestido vermelho, maquilhagem como uma atriz, o cabelo curto, é a rebelião dela. Claro que é negativa, porque é só para o ego dela, é sobretudo um escape.
Estudou numa escola de freiras quando tinha a idade das suas personagens. Essa educação rígida influenciou a história?
É um pouco assustador que tenhamos sempre algo de nós em todas as personagens que criamos, até naquelas que odiamos, as más. As escolas primária e secundária foram um pouco infernais para mim. Era um microcosmo que refletia a sociedade. Toda a gente te conhecia e podia apontar o dedo, especialmente se não nos enquadrássemos. Portanto, há aqui elementos da minha experiência.
A Beatrice era uma Francesca ou uma Maddalena?
Talvez as duas, mas ao crescer tinha uma máscara mais parecida com a Francesca, tinha de ser a rapariga perfeita. Seguia as regras e não faltava às aulas. Se tivéssemos um teste de matemática, eu ficava a ver os meus colegas a saírem da escola e a irem para o parque mas, a mim, nunca me passou pela cabeça faltar. Arrependo-me um pouco disso porque nunca experimentei essa adrenalina. O que eu tinha de corajoso era subir às árvores, descer pelos montes de bicicleta, não tinha medo do perigo e até me orgulhava das cicatrizes, eram marcas de guerra. Claro que nunca contava à minha mãe.
Tem irmãos?
Não, sou filha única e comecei a odiar isso porque todas as responsabilidades recaíam em cima de mim. Depois do secundário, comecei a ser “malnascida” de certa forma, mais rebelde. Comecei a descobrir-me.
Encontrou uma Maddalena dentro de si ou cruzou-se com uma Maddalena na vida real?
Acho que temos sempre de encontrar uma Maddalena. Conheci uma amiga, que ainda é a minha melhor amiga hoje, no secundário. É um ano mais nova do que eu, mas éramos as duas um pouco diferentes do resto, um pouco estranhas. Comecei a perceber que isso não era assim tão mau e penso que foi graças a ela. Depois, na faculdade, quando começamos a alargar o nosso mundo, a conhecer outras pessoas, tudo é grande e novo. Fui estudar para Milão, ia e voltava de comboio, mas a visão do mundo já não era tão fechada como estando apenas na minha cidade natal. Portanto, fui-me descobrindo com essas experiências e penso que agora sou um pouco das duas [Francesca e Maddalena].
Quando foi para a faculdade, escolheu Filologia Moderna. Porquê?
Em Itália não há nenhum curso superior de escrita criativa. Foi o mais próximo que encontrei, não era a vertente de arquivista, mas mais editorial e de pensamento crítico.
Nessa altura já tinha a Scuola Holden [conceituada escola de escrita] em mente?
Sim, há muito tempo. Uma vez fui com a minha mãe à cabeleireira e estava aborrecida. Comecei a ler uma daquelas revistas péssimas de mexericos, mas lá no meio tinha uma entrevista a Alessandro Baricco, que é o criador da Scuola Holden. Descobri que ali era o sítio onde se podia falar de histórias o tempo todo e que te ensinavam a escrever, era o sonho mas eu era muito nova. Esperei para terminar o secundário e depois a faculdade, porque os meus pais apoiam-me mas continuam a ser tradicionais, queriam que eu tivesse um curso superior. Acabou por ser bom porque assim tive tempo para ficar mais madura, ler mais coisas. Na universidade fiz um curso de escrita à noite e foi a primeira vez que me disseram a verdade sobre o que escrevia, porque a minha família e os meus amigos diziam sempre que estava tudo muito bom.
Já a compararam a Elena Ferrante e A Malnascida a A Amiga Genial. É um elogio ou um obstáculo?
Não sei muito bem como me sentir porque a Ferrante é “a” Ferrante, é… “uau”. Este é o meu primeiro livro, portanto acaba por ser um obstáculo. É uma comparação incrível, mas ao mesmo tempo não é. Acho que, sobretudo com escritoras mulheres, tendemos a fazer comparações em coisas pequenas, como a amizade feminina. Pensamos logo em Elena Ferrante. Percebo, mas acho que não é assim tão linear. Também é uma decisão de marketing fazer essa ligação: se adorou este, vai gostar deste. É mais fácil chamar assim a atenção do leitor, mas acho que a discussão é maior do que isso, os temas são mais vastos e importantes do que uma amizade feminina.
Vem aí uma série de televisão?
Espero que sim. No ano passado fui algumas vezes a Roma falar com dois guionistas que estão a trabalhar no projeto, eu sou apenas consultora. Pensámos numa sinopse para a primeira temporada e, passo a passo, cada episódio.
Será para um canal italiano ou para o streaming?
Penso que a ideia é que seja para o streaming mas os direitos ainda não foram comprados. O projeto está em andamento, falta o financiamento e a distribuição.
Tendo em conta o final de A Malnascida, haverá um segundo volume?
Terminei a primeira versão de A Malnascida em 2021, foi o projeto final da Scuola Holden. Conheci a minha agente, que arranjou uma editora em Itália e vendeu os direitos para vários países, o livro foi publicado em Itália em março de 2023. Passaram dois anos desde que o terminei e portanto tive muito tempo, nesse intervalo, para escrever outras histórias. Escrevi duas. Uma passa-se nas montanhas, em 1830, e é sobre uma pequena comunidade onde começa a espalhar-se um feitiço só entre as mulheres. O responsável pela cidade quer cortar as línguas às mulheres.
Também tem línguas cortadas [numa cena com gansos para cumprir uma superstição] em A Malnascida.
É estranho, eu sei. Parece que é recorrente, o que é assustador… se calhar devia falar sobre isto na terapia. Esta história é de feitiçaria, de certa forma, e o outro projeto é uma experiência. É um young adult de fantasia, passa-se em Veneza no século XVI, com joias e magia. Para mim não estava nos planos uma sequela de A Malnascida. Apesar de o final ficar em aberto, o arco da Francesca está completo. Adoro finais abertos porque nos deixam a pensar mas, quando fui a Roma falar com os guionistas, eles perguntaram-me o que aconteceria depois. Confessei que realmente não sabia. Depois comecei a pensar nisso e estou atualmente a escrever o segundo livro. A época será entre 1940 e 1945, durante a guerra. Já escrevi bastante mas ainda não está acabado.
Nos seus agradecimentos de A Malnascida, agradece a alguém por lhe ter apresentado Pessoa. Que influência teve essa descoberta do poeta português?
Uma das editoras que trabalhou comigo no livro ofereceu-me o Livro do Desassossego e eu apaixonei-me por ele. Lê-lo é uma experiência quase mágica, é como se estivéssemos a pairar sobre a cidade enquanto falamos da vida, talvez estejamos a vaguear pela cidade quando já não estamos assim tão sóbrios. Há uma parte que me ficou na cabeça em que ele olha para a carne numa loja e começa a pensar no próprio corpo e na decadência, é incrível. Ler Fernando Pessoa foi uma descoberta transformadora.