As perguntas sucedem-se sem grandes pausas, com um tradutor ao lado para passar a mensagem: “A casa dele é arrendada? Quanto paga de renda?” As respostas a uma das inspetoras da Autoridade das Condições do Trabalho (ACT) são curtas, rápidas. “Sim”, “150 euros”, traduz a “mediadora cultural”. Afinal, pela fila que já se adensa, hão de passar cerca de 300 trabalhadores, todos eles questionados sobre os contratos de trabalho, os documentos de identificação (que muitos guardam no telemóvel), os salários que auferem, as horas que trabalham, onde moram. Cerca de 30 viverão naquela quinta de Odemira com nome de promessa, para onde rumam dezenas de trabalhadores que veem em Portugal uma oportunidade para melhorar a vida que deixam para trás, em países como Nepal, Bangladesh, Paquistão e Índia.
Harkirat, 23 anos, é um deles, mas ao contrário de muitos — Portugal é considerado um dos países onde é mais fácil obter um visto de residência e, por isso, ponte de entrada na Europa de muitos — chegou a território europeu através da Letónia, onde conseguiu um visto para estudar gestão. Só ficou quatro meses — “Lá é difícil encontrar alojamento, trabalho”. Em Portugal, essa realidade é diferente — há trabalho, muito trabalho para esta população, sobretudo nos meses de verão, na época alta da apanha dos frutos vermelhos nas estufas de Odemira.
Harkirat, que está naquela empresa há quatro anos, começa cedo, às 7 da manhã, mas às 15h30 costuma estar despachado (ao Observador, diz que não tem feito horas extraordinárias). Não se queixa das condições nem do trabalho, que lhe dá entre 850 a 900 euros por mês, um valor que lhe permite, por vezes, enviar uma parte à família que deixou na Índia, há quatro anos.
Ali, junto à vedação que impede a entrada de jornalistas na herdade identificada pela ACT — e já por esta referenciada —, ao lado dos técnicos da Segurança Social que vão registando as respostas, uma a uma, Harkir at é uma espécie de tradutor. Aproveita a presença de jornalistas para se informar sobre o SEF — “Sempre vai ser extinto?”, pergunta, preocupado com um amigo que, ao lado, pede que se informe sobre o porquê de a mulher, ainda na Índia, estar há oito meses à espera de uma marcação para poder viajar para Portugal.
Os papéis de entrevistador-entrevistado voltam a inverter-se. “Recebe subsídio de refeição?”, perguntamos. Sim. De férias também. Mas quando a pergunta é sobre o subsídio de Natal surpreende-se. “Era suposto?”
ACT suspeita de empresa de prestação de serviços. “É o grande problema da imigração em Portugal”
Inspetores da ACT, técnicos da Segurança Social, tradutores do Alto Comissariado para as Migrações, ou de uma ONG, a Taipa, militares da GNR, jornalistas, vão-se juntando no posto da GNR de Vila Nova de Milfontes, aos poucos. São 7h45 da manhã e Carlos Graça, diretor da Unidade Local do Litoral e Baixo Alentejo da ACT, diz ao que vem: a visita será a uma empresa de grandes dimensões, a Amazing Promise, que se dedica à produção de frutos vermelhos, como mirtilos e amoras.
Não foi escolhida ao acaso. Tem um “histórico” de irregularidades. “Não atuamos de forma aleatória. Os alvos são direcionados em função de critérios e experiências anteriores. A empresa tem um nível de infração relevante. Um dos prestadores de serviço [com quem colabora] está referenciado”, viria a explicar mais tarde.
Na inspeção, a ACT identificou quatro empresas prestadoras de serviço, que são, muitas vezes, verdadeiros calcanhares de Aquiles para a tarefa de fiscalização. Uma delas já estava referenciada e a inspeção veio comprovar irregularidades que são, para já, suspeitas, enquanto o trabalho de cruzamento de dados — entre a informação transmitida pelos trabalhadores, os registos da empresa e as bases de dados da Segurança Social — não as confirmar ou desmentir.
“Foi verbalizado por alguns trabalhadores que fará subdeclaração do salário. O montante salarial que declara para efeitos de Segurança Social e tributários seria inferior àquilo que é pago aos trabalhadores, o que traz vários problemas”, diz Cristina Rodrigues, subinspetora-geral da ACT, que coordena a autoridade laboral naquela visita surpresa. Na prática, estes trabalhadores dirigiram-se ao SEF para completar a legalização “e o trabalho declarado não era correspondente ao que diziam”. Cristina Rodrigues enquadra a ação nas alterações da chamada “agenda do trabalho digno” que, entre outras medidas, pretende apertar o cerco ao trabalho não declarado.
Estas empresas de prestação de serviços causam verdadeiras dores de cabeça a autoridades como a ACT: tão depressa se formam como desaparecem. É, nas palavras de Carlos Graça, “o grande problema da imigração em Portugal”: redes de exploração de tráfico humano que estão frequentemente ligadas a empresas de prestadores de serviços.
“Este tipo de empresas têm práticas que vão desde a criação de regimes contributivos falsos, algumas têm atividade zero… procuramos cruzar dados e a faturação é zero, a sua sede social é uma casa particular qualquer. E, no entanto, chegam a ter mais de 1.000 trabalhadores declarados, chegam quase diariamente a declarar a qualificação de pessoas. Fazem declarações de regimes contributivos completos de 30 dias que depois não são pagas. E há relatos de trabalhadores que vêm do país de origem com dividas de 10 mil, 15 mil euros com estas empresas”, relata. Muitas vezes, estas empresas garantem aos produtores mão de obra mais barata do que se estes a contratassem diretamente. Tudo a prejuízo do trabalhador.
Um problema já identificado pela ACT há dois anos, ao Observador, numa ação de fiscalização no rescaldo da cerca sanitária em Odemira que expôs as condições em que vivem muitos imigrantes em Portugal. Dois anos depois, continua a ser dos maiores problemas a envolver a comunidade migrante que, muitas vezes por desconhecimento de alternativas, cai nestas redes sem saber.
Harkirat, que tem ao lado os amigos Prince e Lovepreet, também indianos no início dos seus 20, conhece muitos trabalhadores que vêm sem conhecer as empresas que os contratam, através de prestadores de serviços que operam à margem da lei e não lhes fazem os descontos legais. “Muitos vêm, não conhecem a empresa, caem nessas armadilhas”, lamenta.
Recentemente, a ACT fez uma participação-crime ao Ministério Público e à Polícia Judiciária contra 93 empresas (não só em Odemira), “que envolvem largos milhares de trabalhadores e só a dívida à Segurança Social passa os 100 milhões de euros”, indica Carlos Graça, que garante que a autoridade está frequentemente em ações de fiscalização.
O que as autoridades averiguam na fiscalização é se os trabalhadores estão regularizados, se têm contratos de trabalho conforme a lei, se as empresas procedem aos respetivos descontos e contribuições sociais. Os resultados só serão conhecidos após um moroso processo de cruzamento de dados.
O Observador pediu à ACT dados sobre o número de ações realizadas desde o início do ano, bem como as irregularidades detetadas, mas aguarda resposta. “Neste momento procuramos atuar de forma transversal. Estamos em permanência em articulação com uma multiplicidade de entidades, desde SEF, Judiciária, Ministério Público, Segurança Social, ACM. Temos consciência que se passam aqui fenómenos muito maus mesmo, e que detetamos coisas que não lembram muitas vezes ao diabo”, atira Carlos Graça. Cristina Rodrigues também não diz se estas ações vão multiplicar-se nos próximos tempos. “Andamos por aí”, afirma. Para que o ‘efeito surpresa’ não seja comprometido.
Uma promessa maravilhosa
A fila de carros — tirando o da GNR, descaracterizados — intimidaria qualquer um. Ao ver o aparato que chega à propriedade da Amazing Promise, uma das responsáveis da empresa atira: “O que se passa?” Outra permanece minutos ao telefone. Não que a ação seja a primeira na empresa, já habituada a visitas-surpresa. Carlos Graça deixa o aviso aos quatro responsáveis que entretanto se reúnem: se a GNR detetar alguma fuga, agirá. A ordem é que todos os trabalhadores se desloquem para o exterior do escritório, com os respetivos documentos de identificação.
“Agradecia ter a vossa colaboração. Se não colaborarem leva muito mais tempo. Queremos causar o menos transtorno possível. Gostaríamos que alguém nos acompanhasse”, pede Carlos Graça. Os responsáveis mostram total disponibilidade.
“Ficas a coordenar a equipa que vai para o escritório”, combinam os inspetores da ACT, vestidos com vistosos coletes amarelos. Muitas vezes os tradutores que acompanham a equipa não chegam e é preciso recorrer a trabalhadores imigrantes que arranhem no português ou no inglês (nem todos os técnicos da Segurança Social compreendem o inglês).
É aí que aparece Harkirat, o jovem que saiu da Índia há quatro anos por não ver um futuro à sua frente. “Há muita corrupção. Acontece muito teres de pagar para conseguires arranjar um trabalho”, conta. Depois de se identificar e de responder a todas as perguntas, junta-se aos amigos Prince, 25 anos, três anos naquela quinta, e Lovepreet, 24, há cinco anos, que ainda têm dificuldades em expressar-se em inglês. Prince e Lovepreet dizem algo a Harkirat em hindi. Os três querem queixar-se dos preços das rendas, que consideram altas em Longueira, no concelho de Odemira, onde vivem. Pedem-lhes entre 125 euros e 150 euros por um quarto que têm de dividir com três pessoas, às vezes cinco. “Para nós é muito”, desabafam.
Harkirat quer aprender a falar melhor português. Lamenta que a empresa onde agora trabalha tenha deixado de dar aulas — deu há dois anos, mas hoje pouco mais sabe dizer do que “bom dia” ou “boa tarde”. Não tem a certeza se algum dia vai retomar os estudos de gestão. Sabe, sim, que quer “explorar a Europa”, ver de perto as paisagens verdes e montanhosas da Suíça. É para isso (e para visitar a família na Índia) que poupa. Mas, para cumprir o sonho, as paisagens serão outras: as das extensas estufas alentejanas da “Amazing Promise” ou de outras paragens (talvez mais maravilhosas) que lhe prometam um salário justo.