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A maioria das vítimas foi sequestrada e transportada num veículo disponibilizado por oficiais de Marinha, que ficaria rotulado como a ignóbil “camioneta da morte”. No meio de mais ou menos elaboradas efabulações sobre as razões que levaram à matança, ainda hoje subsistem dúvidas sobre as suas causas e o que aconteceu aos executantes e aos mandantes. Por exemplo, no meio de uma sessão de investigação no Arquivo Histórico da Marinha sobre a Revolta dos Marinheiros de 8 de Setembro de 1936, tropecei com o processo do guarda-marinha de Administração Naval Benjamim Rodrigues Pereira, responsável por ter facultado aos revolucionários a tal «camionete». Segundo os autos analisados, só a 2 de Setembro de 1936 foi condenado a 1 ano de prisão, tendo o tribunal dado por provada a sua “participação nos actos criminosos da noite de 19 para 20 de Outubro, porém sem intenção criminosa e somente com culpa”. Mas o que é realmente se passou naqueles conturbados momentos?
Em Março de 1921 no panorama político nacional surgira o PCP – Partido Comunista Português juntando militantes da extinta Federação Maximalista Portuguesa e sindicalistas revolucionários, nomeadamente arsenalistas. Ao contrário do que acontecia no resto da Europa, o partido pró bolchevique português não surgira de uma dissidência do Partido Socialista mas evoluíra directamente de estruturas anarco-sindicalistas discordantes da linha maioritária da CGT. Das mesmas águas emergira igualmente uma estrutura revolucionária terrorista conhecida como a Legião Vermelha, alimentada pela febricitante actividade das Juventudes Comunistas.
Nessa agitada cena social, a 7 de Julho aparecera o jornal Imprensa da Manhã, fortemente subsidiado pelos plutocratas Alfredo da Silva e Fausto de Figueiredo, e afecto ao sector dos chamados liberatistas (seguidores do tenente-coronel Liberato Pinto). O jornal, de pendor revolucionário, animava as hostes afins e provocava a efervescência popular. Nas suas páginas e nas de outros pasquins cresciam os boatos, as calúnias, os assassinatos morais, para instilar o ódio e instigar a canalha das ruas. Depois de terem perdido para o sidonismo as massas populares, os jacobinos da facção “democrática” do PRP – Partido Republicano Português procuravam recuperá-las agora, servindo-se da alavanca propagandística propiciada pelas fracassadas revoltas monárquicas.
Nos sectores burgueses, fortemente influenciados pela “loja” Montanha, o Grande Oriente Lusitano com o apoio do seu grão-mestre, Sebastião de Magalhães Lima (o “irmão” João Huss criara um denominado “movimento de salvação pública”, onde convergiam António Luís Gomes, José de Castro, Jaime Cortesão, Alfredo de Sá Cardoso, João de Deus Nogueira Ramos, Francisco António Correia, Amílcar Ramada Curto, Leonardo Coimbra e outros “livres-pensadores”. Como regista Rocha Martins em Vermelhos, Brancos e Azuis, a meio de Outubro de 1921, através da “loja” Liberdade e Justiça, admoestaram António Granjo, o seu “irmão” Buffon, com uma fatwa (chamavam-lhe prancha), avisando-o, a propósito da sua actuação política durante a greve da Carris, de que “não é ameaçando o povo, com as espingardas da Guarda Republicana, que […] se defendem os interesses do povo contra os grandes exploradores”.
Contudo, a verdade é que uma parte importante da GNR estava contra Granjo, sobretudo após o coronel Liberato Pinto ter sido condenado por desvio de fundos e ter circulado o rumor de que a corporação iria ser desarmada. E quando a 30 de Setembro de 1921 eclodiu uma sublevação dos radicais da Marinha, são sobretudo as forças do Exército que reprimem a intentona, prendendo os cabecilhas que entretanto pareciam ter já abortado o movimento, desistindo da tentativa de insurreição total. Dela faziam parte Manuel Maria Coelho, um homem do 31 de Janeiro de 1891 e delegado do Governo na estranha Missão Técnica Luso-Alemã (1914) defensora dos interesses da Alemanha no Sul de Angola, Procópio de Freitas, Camilo Sena e Oliveira e José Cortez dos Santos. É interessante referir que o coronel Manuel Maria Coelho fora também o autonomeado comandante de um destacamento misto de civis e militares que durante o combate à Monarquia do Norte, se apoderara de Guimarães. Como lembra o general Alberto Ilharco nas suas célebres Memórias, o seu segundo era o então tenente-coronel Liberato Pinto. Como todos se atribuíssem ajudas de custo extraordinárias, o general Alberto Ilharco mandou-os apresentar no quartel-general e dissolveu o destacamento. Mas a medida disciplinar seria quase de imediato anulada quando da mudança de Governo, em que Liberato Pinto aparece como chefe do gabinete do novo ministro da Guerra, o coronel António Maria Baptista, conhecido no milieu como o Batistinha.
[o trailer da minissérie da RTP “Noite Sangrenta”, de Tiago Guedes e Frederico Serra:]
Nas comemorações do “5 de Outubro” desse ano, Granjo fora insultado durante a habitual romagem aos túmulos do almirante Carlos Cândido dos Reis e de Miguel Bombarda no Alto de São João, entre “morras à reacção” e aos “jesuítas”. Entretanto, todos os detidos que haviam protagonizado a intentona de 30 de Setembro último eram postos em liberdade pois, segundo Granjo, “só pela brandura se consegue governar”. Mas esse acto de clemência e apaziguamento de pouco valeu ao Governo. Logo após a mencionada ameaça da maçonaria, a 19 de Outubro, lá rebentou a anunciada revolução, encabeçada outra vez pelo coronel Manuel Maria Coelho, pelo capitão-de-fragata César Procópio de Freitas, pelo major Cortez dos Santos e pelo capitão Camilo e Oliveira, da GNR. Dando início ao programa, pelas 05h30 da manhã, a artilharia da Guarda, posicionada na Rotunda, e os canhões do Vasco da Gama “falaram”. A própria Polícia de Segurança do Estado parecia estar envolvida na revolta.
O comandante que substituíra João Pedroso de Lima na GNR, Abel Hipólito, não conseguia fazer-se obedecer pelos seus subordinados que se recusavam a combater contra os camaradas. Do lado do Governo, apenas se mantinha firme um diminuto grupo de soldados de Sapadores de Caminho-de-Ferro, sob as ordens do tenente-coronel Raul Esteves, lá para os lados do Cemitério dos Prazeres. Argumentando que “se encontrava sem meios de resistência e defesa em Lisboa”, Granjo, sem mais delongas, apresentou a sua demissão a António José de Almeida. Para o indomável republicano tinham sido 50 dias infernais.
A nova golpada insurreccional era a terceira “outubrada” e o sub-regime revolucionário por ela implantado ficaria para a História como o “sanguinário outubrismo”. O Presidente da República não ficou muito animado com a perspectiva de ter de reconhecer formalmente os revolucionários; na sua reconhecida integridade pessoal, preferia a demissão. A delegação revolucionária que o visitou, Jacinto Simões, Alberto da Veiga Simões e Camilo e Oliveira, face à resistência de Almeida em anuir às suas pretensões, mandou retirar-lhe a segurança pessoal, constituída por soldados da GNR. Durante a tarde, foi a vez de Manuel Maria Coelho, seu velho correligionário, o pressionar; Almeida respondeu-lhe: “mandem-me fuzilar, mandem-me prender, mandem-me exilar, mas eu não me desonro”. Mas pelas onze da noite, um agitado Armando Agatão Lança dá-lhe conta de que a “matança já começara”.
Tanto bastou para que o ainda Presidente aceitasse o governo que os revolucionários lhe impingiam, liderado pelo coronel Manuel Maria Coelho, tendo-lhes exigido apenas que repusessem a ordem de imediato. Com efeito, ao cair da tarde, radicais da Marinha, mancomunados e escudados em correligionários da GNR, e com o apoio de agitadores civis, nomeadamente ex-formigas-brancas e terroristas da recém-criada Legião Vermelha, liderada por José Melo Aguiar, protagonizaram os horrores da “noite sangrenta” em que várias figuras políticas republicanas foram assassinadas com requintes de malvadez pouco habituais entre nós.
Uma noite de perseguições, sequestros e tiros
Entre as personalidades que caíram nesse dia sob o terror revolucionário, encontrava-se o ex-chefe do Governo António Granjo que, depois de ter procurado refúgio em casa do seu vizinho e adversário político Francisco da Cunha Leal, denunciado por uma porteira, fora de lá retirado à força. Cunha Leal solicitara a intervenção de um oficial revolucionário, o capitão Henrique de Sousa Guerra que lhe prometera que acorreria de imediato a sua casa. Em vez dele, apareceu uma camioneta com os algozes. Depois de agredido repetidas vezes, foi levado ao covil dos revolucionários no Arsenal da Marinha, onde foi supliciado até à morte. Os seus assassinos foram marinheiros e soldados da GNR acaudilhados pelo cabo Abel Olímpio, conhecido como o “Dente de Ouro”, que detinha o poder de facto sobre o bando que, a bordo do tal veículo, conduzia as vítimas para o abate. O transporte, que ficaria conhecido como a camioneta “fantasma” ou “da morte”, fora disponibilizada pelo tenente Bento Mergulhão, estando formalmente às ordens do guarda-marinha Benjamim Pereira.
O mesmo processo de abate aconteceu com os dois heróis do “5 de Outubro”, António Maria Machado Santos e José Carlos da Maia, sequestrados e “embarcados” igualmente na camioneta “da morte”, que percorreu Lisboa à procura de vítimas para a imolação revolucionária. Carlos da Maia foi também levado ao Arsenal onde acabou executado pelas costas, com um tiro na nuca e Machado Santos nem lá chegou pois foi assassinado no percurso, em plena Avenida Almirante Reis, próximo do Intendente.
Cunha Leal, que só à força se tinha separado de Granjo, fora ferido por três tiros e ficara em estado crítico. Mas nada parecia satisfazer a canalha sans-culotte, inebriada pela atmosfera de “tomada da Bastilha”, inspirada provavelmente pelos relatos de episódios semelhantes das guerras civis protagonizadas pelos comunistas por essa Europa fora e de que A Batalha e o Bandeira Vermelha se faziam arautos.
Várias seriam ainda as vítimas dos assassinos, sem que os oficiais responsáveis pelo golpe tivessem conseguido, ou querido, detê-los. Entre elas foram executados o capitão-de-fragata Carlos Freitas da Silva, ex-chefe-de-gabinete de Carlos da Maia, e o coronel Alexandre Botelho de Vasconcelos. No mesmo dia, foi também assassinado o taxista Carlos Gentil que não se coibiu de criticar desassombradamente os crimes na Taberna do Constante, na Rua Anchieta, ao lado da livraria Bertrand. Denunciado por um bufo, foi arrastado para fora por uma canalha revolucionária e linchado no meio da rua.
Sintomaticamente, José Júlio da Costa, o assassino de Sidónio Pais, fora libertado do Hospital Miguel Bombarda por um bando de cerca de três centenas de arruaceiros armados. Segundo Rocha Martins, José Júlio da Costa estaria protegido, com a conivência do Governo emergente, por um grupo de militantes “democráticos”, onde pontificavam “Francisco Ferreira de Macedo, António Rodrigues, irmão de Daniel e Rodrigo, e [Manuel] Leite Maciel que dão ao matador de Sidónio certas quantias para os seus gastos, como se quisessem agradecer-lhe o rendoso emprego no governo ultramarino […] ou pretendessem calar-lhe a boca, não fosse denunciar contactos mais chegados”.
António José de Almeida, informado, como vimos, por Agatão Lança dos crimes, ficara completamente desvairado. No meio da estupefacção generalizada, cresceu a natural repulsa e reprovação pelos assassinatos da noite anterior e alguns ministros indigitados, convidados para o Governo revolucionário, recusaram-se a aceitar o cargo. Sentia-se que a República continuava envenenada pelo negativismo revolucionário, pelo ateísmo corrosivo e pela demagogia rasca.
Teorias da conspiração ou alijar responsabilidades?
Muitos, manipulados pela propaganda afecta ao PRP, acreditavam piamente que tinham sido a reacção monárquica, clerical ou mesmo o grande capital os autores morais da “coisa”. E, bem alicerçado em quem detinha o verdadeiro poder de influência, seria esse o mito conspirativo que ficaria para a História; era a tese ideológica, desculpativa dos “pobres diabos trabalhados por agentes que se escondiam na sombra”. Esta iníqua teoria da conspiração, ao que parece inicialmente “imaginada” pelo governador civil de Lisboa, José Falcão Ribeiro e desenvolvida pelo então director da Polícia de Segurança do Estado, Raul de Barbosa Viana, destinava-se a salvar a honra dos republicanos envolvidos e, por inerência, do próprio regime.
Nos dias de hoje, aquela narrativa ainda é acalentada por Fundações e associações envolvidas activamente no reescrever da História, tendo o argumento sido recuperado numa torpe versão televisiva, difundida há alguns tempos, a procurar atirar areia para os olhos dos incautos portugueses. A versão original foi enriquecida, em Maio de 1926, com uma confissão “revista” do “arrependido” Olímpio, o “Dente de Ouro”, à viúva de Carlos da Maia. No depoimento, Olímpio envolvia a “padralhada”, nomeadamente o padre ex-pensionista Maximiliano de Lima, seu conterrâneo e de que alguns suspeitavam ter ligações ao tenente-coronel Joaquim Marreiros, director da polícia política e “outubrista” confesso. E, para enriquecer o “embrulho” conspirativo não faltavam, claro, vários “capitalistas”, entre eles Alfredo da Silva.
O objectivo da “conjura”, de acordo com a nova versão posta a circular, teria sido “vingar o regicídio e a implantação da República”. Assim o afirmaria igualmente ao Diário de Notícias, em 19 de Janeiro de 1923, o ex-director da Polícia de Segurança do Estado, Barbosa Viana. Mas segundo relata Raul Brandão em Memórias: Vale de Josafat, também António José de Almeida dizia “estar cada vez mais desconfiado que o dedo de Espanha andou no 19 de Outubro». Na mesma onda escreveu o reviralhista Afonso Bourbon e Menezes, quando em 1929 publicou Os crimes de 19 de Outubro: Revelações e interrogações sensacionais. Na sua lógica jacobina retoma a “confissão” do cabo Olímpio, apresentando como mandantes o monárquico Gastão de Melo de Matos e o padre Lima que, com “dinheiros de Espanha”, teriam pago ao “Dente de Ouro”.
Estas teses conspirativas, aparentemente forjadas por um sector da maçonaria, e obviamente do agrado dos extremistas que estiveram por detrás do clima socio-político da revolução de 19 de Outubro de 1921, não explicam no entanto a conduta dos oficiais envolvidos nos crimes, fosse por cumplicidade activa ou fosse por negligência ou omissão. Nem tão pouco o facto de Alfredo da Silva, um dos ditos mandantes segundo a confabulação, ter escapado à morte por um triz, depois de agredido e baleado em Leiria, no seu caminho de fuga para Espanha. Como não parece terem sido os cabos Abel Olímpio e Manuel José Carlos e o sargento Heitor Gilman os únicos assassinos materiais. O cabo Manuel Carlos sempre manteve que os mandantes dos crimes tinham sido oficiais, tendo fornecido os seus nomes durante o processo judicial em que o coronel António Óscar de Fragoso Carmona fora o Promotor.
Com efeito, lida a sentença, o “Dente de Ouro”, secundado pelo marinheiro José Félix, dirigiu-se ao comandante José de Freitas Ribeiro, revolucionário do sangrento 14 de Maio de 1915, gritando-lhe que “autoridade moral tem você para nos condenar? Você não se lembra de me ter mandado assassinar o comandante Nunes da Silva?”. Referia-se ao episódio em que o capitão de mar-e-guerra Joaquim Nunes da Silva quando comandava o navio Almirante Reis sofrera uma tentativa de execução durante a revolução de 14 de Maio de 1915, tendo sucumbido aos ferimentos. A insurreição do 14 de Maio foi provavelmente a mais sanguinolenta de toda a história da República e fora curiosamente liderada por três antigos monárquicos apoiantes de João Franco, entretanto adesivados à República pela antecâmara da Maçonaria: José Norton de Matos, Jaime Leote do Rego e José de Freitas Ribeiro.
Pesadas as várias hipóteses, julgo que será bem mais plausível encontrar na raiva e na frustração da canalha à solta, estimulada pela humilhação sofrida às mãos do sidonismo pelos marinheiros, e manipulada por jornais e agentes agitadores que sabiam bem o que faziam, o motivo e a razão para toda aquela infâmia. Afinal, Machado Santos e Carlos da Maia, tal como o seu ex-chefe-de-gabinete, Freitas da Silva, e o coronel Alexandre Botelho de Vasconcelos, tinham sido apoiantes de Sidónio. E Granjo, que pouco antes enfrentara a ralé nas ruas, era chefe do único partido que conseguira ganhar nas urnas aos “democráticos”. Também não é despiciendo recordar igualmente o “aviso” que os comunistas lhe tinham feito no Bandeira Vermelha de 7 de Maio de 1921: “todos sabemos o resultado que nos deu o tal comércio livre decretado pelo governo de António Granjo, porque é preciso que os governos fiquem sabendo de uma vez para sempre que não é impunemente que tripudiam com a avalanche enorme de trabalhadores.”
O que as vítimas tinham em comum é que todas elas, republicanos da primeira hora, eram pela liberdade de expressão de todos os cidadãos, incluindo os monárquicos, e pela acalmação com os católicos; nenhum deles tinha estado próximo dos regicidas, das perseguições religiosas ou de outras que reclamassem vingança. Toda a trama do mito prevalecente parece ter sido feita a partir do facto de Alfredo da Silva ter sido financiador do jornal Imprensa da Manhã o qual, a par de O Mundo, fora um dos órgãos que mais instigara a turbamulta, chegando mesmo alguns dos seus jornalistas e outros empregados a participar nos assassinatos. Mas qual a admiração? Só a crendice no “processo da luta de classes” permite suspeitar ver num apoio daquele tipo um tenebroso maquiavelismo reaccionário, onde afinal só há objectivos mesquinhos de garantir protecção mediática-política e, se conveniente, estimular agitação social que favoreça os interesses imediatos do capitalismo especulador. Não foi sempre assim em todas as épocas, desde Marcus Licinius Crassus aos George Soros dos nossos dias, passando pelos Rothschild profiteurs das guerras napoleónicas, emulados de maneira tão patente pelos nossos furriéis da indústria do presente?
O rescaldo da revolução de Outubro
Por reacção à repulsa popular gerada pelo extremismo e pela selvajaria da “noite sangrenta” de 19 de Outubro, o Governo da Junta revolucionária demitiu-se duas semanas depois, carregando com ele o peso da responsabilidade moral pela matança. Mas Cunha Leal, no funeral de Granjo, dirá que “o sangue correu pela inconsciência da turba – a fera que todos nós, e eu, açulámos, que anda à solta, matando porque é preciso matar! Todos nós temos culpa! É esta maldita política que nos envergonha e me salpica de lama”. Por seu lado, Raul Proença escreverá na Seara Nova que “mais uma vez a mais perigosa das utopias levou este país à epilepsia da desordem”.
Entretanto, como sempre acontecera em momentos de maior agitação política ou comoção social, a Inglaterra, a França e a Espanha tinham enviado navios de guerra para protecção das suas representações e dos seus súbditos. E por cá permaneceram durante 25 dias, numa clara afronta à soberania nacional; e só saíram depois do Governo (que sucedeu ao de Coelho) ter anuído a um diktat dos três países. Corria até entre alguns criativos apoiantes “democráticos” a ideia de que fora a Espanha a subornar os revolucionários assassinos para provocarem o caos e a anarquia para que o país vizinho tivesse condições internacionais favoráveis a uma intervenção armada.
Na cena política portuguesa de então, nem a estupefacção causada pela “noite sangrenta” impedia a violência de continuar. A 31 de Outubro, o consulado americano em Lisboa foi atacado à bomba por anarquistas que protestavam assim contra a condenação à morte de Nicola Sacco e Bartolomeo Vanzetti, no Estado americano do Massachusetts. O comité federal das Juventudes Sindicalistas tinha então como secretário-geral Fernando de Almeida Marques e dele faziam igualmente parte militantes como Raul dos Santos, José Maria Esteves e David de Carvalho. Na sua sede, na Calçada do Combro, em Lisboa, ir-se-ia dar na madrugada de 29 de Dezembro de 1921 uma brutal explosão, resultante de um acidente durante o processo de fabricação de mais bombas artesanais.
No meio de toda esta agitada comoção, acabou por ser encarregado de formar novo Governo o ministro das Colónias do Executivo demissionário, o coronel Carlos de Maia Pinto, vindo a tomar posse a 5 de Novembro. Nesse mesmo dia, Gomes da Costa fora mais uma vez contactado por José Eugénio Dias Ferreira para encabeçar uma “conspiração patriótica” contra os outubristas a que, aparentemente, António José de Almeida teria dado o seu acordo. Durante uma homenagem a Machado Santos, a 20 de Novembro de 1921, o General discursou e disse: “a República ameaça fazer a bancarrota, degenerando num falso parlamentarismo, com uma política de facção. […] A palavra República […] converteu-se em propriedade exclusiva de uma oligarquia de profissionais ambiciosos, irrequietos e insaciáveis”. Maia Pinto consegue de Almeida a dissolução do Parlamento e propõe a realização de novas eleições para Janeiro seguinte. No dia 22 de Novembro, liberais, “democráticos” moderados e dissidentes reconstituintes “alvaristas” acordaram um “bloqueio à colaboração” com o Governo, alegadamente ainda integrado por ministros “infectados pelo outubrismo”. A oposição reclamava um urgente saneamento das finanças e a necessidade de procurar a todo o custo harmonizar os interesses do capital com os do trabalho. O Executivo de Maia Pinto não iria perdurar muito; após 41 dias no poder cessaria funções a 16 de Dezembro de 1921.
Para dar um golpe final no período revolucionário, tirando partido da estupefacção e do repúdio que ainda perduravam no país sobre os acontecimentos da “noite sangrenta”, António José de Almeida resolve que é altura de ir buscar gente não afecta ao outubrismo. E faz mais; vai escolher um tribuno respeitado, pelas ideias, pela eloquência e pela experiência mas que, acima de tudo, saíra daqueles terríveis momentos insurreccionais moralmente prestigiado pela lhaneza e coragem com que dera guarida e solidariedade a António Granjo que até era seu adversário político. Era agora a vez de Francisco da Cunha Leal ocupar a presidência do Governo.
Político em ascensão, apesar das suas frequentes dissidências, oscilações e realinhamentos, pela experiência vivida na comoção do 19 de Outubro, passara de radical de esquerda a liberal mais ou menos conservador. Era militar, engenheiro, homem conhecedor de Finanças e viria a revelar-se uma incontornável figura de referência nos anos vindouros. O seu Governo, constituído segundo o modelo dito de “concentração partidária”, tomou posse a 16 de Dezembro de 1921. Instala a sede do Executivo em Caxias, para melhor se isolar da agitação da capital. Procura manter a ordem e conter os impulsos golpistas da GNR e da Marinha; para isso concentra à volta de Lisboa, e posteriormente em Santarém, as forças militares do denominado Campo Entrincheirado.
Quando a 27 de Dezembro começam a circular com mais intensidade boatos de uma nova revolta, Cunha Leal decide chamar Gomes da Costa para chefiar a tropa, com Abílio Valdez de Passos e Sousa como chefe do Estado-Maior. Mas o indomável Gomes da Costa não se deixa convencer nem manipular pelo Governo. Dias depois, a 5 de Janeiro de 1922, na sequência de uma entrevista que dera ao Opinião em que afirmara que “andam a mangar com a tropa” levará 20 dias de detenção em Caxias dados pelo ministro da Guerra, Fernando Freiria. Sintomaticamente, para fugir às trapalhadas golpistas em que o procuravam envolver Dias Ferreira, Vieira da Rocha, Jacinto Simões ou Pedro Fazenda, Gomes da Costa irá procurar obter uma comissão nas Colónias. Contando com a pronta aquiescência do governo (interessado em respirar de alívio), consegui-la-á em 15 de Julho de 1922, sendo nomeado para uma “inspecção extraordinária” às colónias do Oriente de onde irá regressar quase dois anos depois, a 7 de Maio de 1924.
Cunha Leal apela à cooperação das “forças vivas” no programa de estabilização social e financeira que o seu Executivo se propõe levar a cabo mas acabará por se desgastar na preparação das eleições. Quando vê rejeitada pela tal plataforma de liberais, “democráticos” e reconstituintes, que era, por via parlamentar, o seu sustentáculo no poder, a inclusão nas listas eleitorais de “independentes” (alguns, membros das chamadas “forças vivas”) propostos pelo Governo, Cunha Leal decide pôr o seu lugar à disposição. As eleições legislativas que tinham estado previstas para o dia 8 de Janeiro, realizaram-se afinal a 29 de Janeiro de 1922 e os “democráticos” voltaram às vitórias: 74 deputados contra 34 liberais, 17 reconstituintes, uns surpreendentes 13 monárquicos (que conseguiram em Lisboa mais de 35% dos votos), católicos e independentes. Face ao resultado eleitoral, Cunha Leal demitiu-se após 53 dias na chefia do Governo.
Farto do ciclo vicioso em que se tinham tornado as goradas alternativas liberais, Almeida resigna-se a convidar então Afonso Costa a regressar ao país e assumir a chefia de um novo Executivo. No fundo, partilhava da opinião de Cunha Leal para quem “o Partido Democrático era o astro central em torno do qual giravam os outros partidos”. Acabava por ser quase uma obrigação prática, pois “sendo a única peça sólida do regime, ninguém podia governar contra ele nem sem ele”. Mas Costa, ainda assustado com os acontecimentos da revolução dezembrista de Sidónio, e mais recentemente da “noite sangrenta” do outubrismo, nega-se a regressar. Perante o impasse, pela segunda vez, o Presidente decide recorrer a António Maria da Silva para assumir a chefia do Governo do país. Antigo cabecilha da Carbonária e então vice-grão-mestre do GOL, dotado de uma inquestionável manha política, “honesto mobilizador de desonestos”, após a posse, em 6 de Fevereiro de 1922, procurou desenvolver um pendor conciliador, de centro-esquerda.
Consciente de que Portugal estava farto de tragédias, de violência e de instabilidade radical, mandou retirar à GNR as armas pesadas e obrigou-a a uma cura de emagrecimento, reduzindo-lhe os efectivos de 14.341 para 9.627 homens. E dispersa os seus efectivos pela província procurando transformá-la de “guarda pretoriana” do regime em “polícia rural”. Pelas mesmas razões, o Corpo de Marinheiros sai de Lisboa para Vila Franca de Xira. Em compensação, Silva encostou-se ao Exército, doravante entendido como o garante da Ordem e da Autoridade na vertente interna. É provável que as alterações outubristas tenham calado fundo na consciência do veterano conspirador carbonário, como acontecera efectivamente com Cunha Leal. Para ele, como para muitos correligionários seus, o inimigo interno mais perigoso já não eram os desavindos monárquicos ou os “caciques clericais» mas os “revolucionários vermelhos”, emuladores dos bolcheviques.
Para melhor os controlar, a 21 de Outubro de 1922, a Polícia de Defesa Social, criada e colocada na dependência do Governador Civil de Lisboa por Cunha Leal dois dias antes de se demitir, passará a designar-se por Polícia Preventiva e de Segurança do Estado. No Parlamento, que reabrira a 23 de Fevereiro, Cunha Leal pede o restabelecimento da pena de morte. E o Governo do antigo carbonário Silva, no meio dos ecos das bombas e atentados da Legião Vermelha e das múltiplas ondas grevistas promovidas pela CGT e pelo recém-surgido PCP, na tentativa de fechar algumas frentes de acosso, já namoriscava com alguns sectores da Igreja. Aparentemente, parecia ter terminado a “epilepsia da desordem” a que Raul Proença aludira.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia