Quando chegou ao final dos 40 minutos — rigorosamente cronometrados –, Jair Bolsonaro confessou aos jornalistas William Bonner e Renata Vasconcellos que poderia ficar no estúdio mais duas horas à conversa. Dificilmente estaria a falar a sério: o atual presidente do Brasil inaugurou esta segunda-feira uma ronda de entrevistas que o Jornal Nacional da TV Globo (o mais importante noticiário televisivo do país) está a fazer aos principais candidatos às eleições presidenciais agendadas para 2 de outubro e os 40 minutos foram totalmente preenchidos com temas quentes, desde as críticas de Bolsonaro ao sistema eleitoral até à sua política ambiental na Amazónia, passando pelo modo como lidou com a pandemia e pelos escândalos que envolveram ministros do seu Executivo.
Durante toda a entrevista, o clima foi de tensão, com Bolsonaro a acusar os jornalistas de mentir, a contradizer-se várias vezes e a irritar-se com frequência.
Inicialmente, nem era certo se Jair Bolsonaro iria ou não à entrevista. A Globo chegou a dar conta de que o gabinete de Bolsonaro tinha recusado realizar a entrevista nos estúdios do Jornal Nacional, no Rio de Janeiro, pedindo antes que a entrevista acontecesse em Brasília — algo que a televisão recusou, o que lançou dúvidas sobre se Bolsonaro seria ou não entrevistado. Posteriormente, o gabinete de Bolsonaro anunciou que o presidente aceitaria ser entrevistado nos estúdios da TV Globo.
A poucos minutos de entrar no estúdio, Bolsonaro mostrava-se sorridente nos camarins da TV Globo. Mas os sorrisos durariam pouco. No início da emissão, os jornalistas anunciaram que as diferentes entrevistas desta semana (a Bolsonaro vão somar-se Ciro Gomes, Lula da Silva e Simone Tebet) se vão debruçar sobre os principais temas de cada campanha. No caso de Bolsonaro, o incumbente confrontado com o balanço do mandato que agora termina, as perguntas forçaram-no a jogar à defesa durante praticamente todo o tempo da entrevista.
À defesa: credibilidade do voto eletrónico, pandemia e corrupção
A entrevista arrancou logo em alta rotação, com um conjunto de perguntas sobre as suspeitas que, à semelhança do que fez Donald Trump nos Estados Unidos, Jair Bolsonaro tem lançado sobre o sistema eleitoral brasileiro, criando ainda antes das eleições de outubro um clima de desconfiança em relação aos resultados eleitorais no caso de ditarem uma derrota sua (é, aliás, isso que indicam as sondagens). Questionado sobre se, com isso, pretende criar as condições para uma insurreição, Bolsonaro desviou o assunto e respondeu sempre no condicional: desde que as eleições sejam limpas, vai respeitar os resultados.
Contudo, deixou claro que não acredita que as eleições serão limpas.
Para sustentar as suas suspeitas, Jair Bolsonaro recorreu a dois argumentos que tem repetido ao longo dos últimos meses. Lembrou uma auditoria feita aos resultados eleitorais de 2014 a pedido do PSDB que concluiu que “as urnas são inauditáveis” e lembrou que, em 2018, o sistema do Tribunal Superior Eleitoral do Brasil foi atacado por um pirata informática. Todavia, Bolsonaro não disse que as autoridades eleitorais já explicaram que, ao contrário do que acontecia até 2014, atualmente todas as urnas eletrónicas brasileiras já são auditáveis — nem lembrou que a justiça brasileira confirmou entretanto que o tal ataque de um hacker às eleições de 2018 não interferiu em nenhum dos dados centrais do escrutínio dos votos.
“Se você pode colocar uma tranca a mais na sua casa para evitar que ela seja assaltada, você vai fazer ou não? Então esse é o objetivo disso que eu tenho falado sobre o Tribunal Superior Eleitoral”, afirmou Bolsonaro, depois de confrontado com as perguntas dos entrevistadores. No entanto, o presidente brasileiro foi incapaz de afirmar taxativamente que vai respeitar os resultados das eleições, repetindo apenas a afirmação condicional: “Desde que as eleições sejam limpas e transparentes.”
Bolsonaro vai respeitar resultados eleitorais? “Desde que as eleições sejam limpas e transparentes”
Mas o principal tema a obrigar Jair Bolsonaro a defender a sua atuação na entrevista foi a pandemia da Covid-19, durante a qual o presidente brasileiro questionou a gravidade da doença, criticou os confinamentos e desvalorizou a vacinação. O segmento da entrevista sobre a pandemia ficou marcado pela defesa de Bolsonaro quanto à sua célebre frase relativamente à vacinação: “Se tomar vacina e virar jacaré não tenho nada a ver com isso.” Para Bolsonaro, tudo não passou de uma “figura de linguagem” — e o presidente garante que fez a sua parte no combate à pandemia.
“Comprámos mais de 500 milhões de doses de vacina. Só não se vacinou quem não quis”, disse Bolsonaro. “A primeira vacina do mundo foi dada em dezembro de 2020. Em janeiro no Brasil já estávamos vacinando.”
Questionado sobre a hesitação na compra das vacinas da Pfizer, que esperou mais de três meses por uma resposta do governo brasileiro em relação ao negócio, Bolsonaro colocou as culpas na farmacêutica: “Não houve suspensão da minha parte. A questão da Pfizer é que no contrato estava escrito ‘não nos responsabilizamos por qualquer efeito colateral’. Outra coisa, a Pfizer não apresentou quais seriam os possíveis efeitos colaterais. Daí eu usei uma figura de linguagem, ‘jacaré’.”
Bolsonaro também recusou qualquer responsabilidade pelo caos na região de Manaus devido à falta de abastecimento de oxigénio nos hospitais. O presidente brasileiro afirmou, por outro lado, que houve “desvios” de dinheiro enviado a governadores que não foram investigados. E, questionado sobre se o facto de ter imitado doentes com falta de ar e de ter feito pouco da doença lhe custará um julgamento pela história, Bolsonaro recusou abordar o assunto e disse que não fez nada de errado. E insistiu: “Fizemos a nossa parte.”
Quanto à economia, Jair Bolsonaro foi confrontado com uma série de indicadores que mostram como o país se encontra em pior situação do que há quatro anos, mas atribuiu as culpas à pandemia de Covid-19, à seca do ano passado e à guerra na Ucrânia. “As promessas foram frustradas pela pandemia, por uma seca enorme que tivemos no ano passado e também pelo conflito da Ucrânia com a Rússia”, disse.
Ainda assim, Bolsonaro elogiou a economia brasileira em comparação com o resto do mundo. “O Brasil vai ter uma inflação menor que a Inglaterra ou os EUA”, disse. “A taxa de desemprego tem caído no Brasil”, acrescentou. “Os números da economia são fantásticos tendo em conta o resto do mundo”, afirmou ainda, dizendo que se assumiria responsável caso a situação no Brasil fosse única e não houvesse a conjuntura internacional.
Já na reta final da entrevista, Bolsonaro foi questionado sobre como pretende chegar aos eleitores que se sentem traídos pela sua aproximação ao “centrão”, o termo usado para descrever os partidos de centro. “Você está me estimulando a ser ditador”, respondeu o presidente brasileiro aos jornalistas, salientando que os partidos de centro representam 300 dos mais de 500 deputados do Congresso — pelo que é preciso negociar com esses partidos.
“Os partidos de centro fazem parte da base do governo para que possamos avançar com reformas”, disse Bolsonaro.
Ao ataque: “fake news” dos jornalistas e porque é que ninguém fala de outros países
No arranque da entrevista, Jair Bolsonaro foi confrontado com o facto de já ter insultado juízes brasileiros e de lançar suspeições sobre as autoridades eleitorais — mas defendeu-se, acusando o jornalista de fake news. Porquê? Porque não insultou “ministros” (expressão usada no Brasil para os juízes), insultou apenas um. Em causa está o magistrado Alexandre de Moraes, juiz do Supremo Tribunal Federal e presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a quem Jair Bolsonaro chamou “canalha” no ano passado.
Segundo Bolsonaro, o insulto surgiu apenas porque “a temperatura subiu” e porque as decisões de Moraes eram “contestáveis”. Contudo, garantiu que tudo está “pacificado” e que a página foi “virada”. Aliás, Bolsonaro salientou mesmo que houve um “contacto amistoso” entre ele e Moraes na tomada de posse do juiz enquanto presidente do TSE — pelo que tudo já estará no passado.
O tema da conservação ambiental e, em especial, da Amazónia — frequentemente considerada o “pulmão do mundo”, devido à importância daquela floresta tropical para a regeneração de oxigénio na atmosfera terrestre — esteve naturalmente presente na entrevista, devido ao modo como Bolsonaro tem feito o Brasil recuar nos seus compromissos climáticos. O desempenho climático do Brasil era classificado, em 2018, como “insuficiente” pelo Climate Action Tracker, mas atualmente as políticas de Bolsonaro já fizeram o país cair para a categoria de “altamente insuficiente“. Ainda assim, o atual presidente brasileiro garantiu que está a tentar mudar a imagem do país no que toca à preocupação climática.
“O Brasil não merece ser atacado dessa forma”, disse, assegurando que o país preserva dois terços das suas áreas verdes. Questionado sobre a crise de incêndios e desflorestação na Amazónia, Bolsonaro afirmou que “a Amazónia é do tamanho da Europa ocidental, cabe uma França, uma Itália, um Portugal, um montão de países” — e salientou que a fiscalização é um processo complexo na região. E perguntou ainda porque não se fala de outros países, incluindo França, Espanha, Portugal ou os EUA, onde há incêndios frequentes. “Grande parte é criminoso. Grande parte não é criminoso”, disse.
Bolsonaro deixou ainda um outro ataque ao exterior. Confrontado com a ineficácia da sua ação climática, o presidente brasileiro lembrou que atualmente vários países europeus se estão a voltar novamente para os combustíveis fósseis para fazer face à crise energética originada pela guerra na Ucrânia.
A promessa: continuar no mesmo caminho
Durante o minuto final, Jair Bolsonaro elencou algumas das bandeiras do seu mandato, incluindo a queda dos preços dos combustíveis e a atribuição de apoios financeiros no valor de 600 reais a 20 milhões de brasileiros pobres. Questionado, na entrevista, sobre o que pode prometer aos brasileiros, Jair Bolsonaro garantiu: “Continuar exatamente na política que vínhamos fazendo desde 2019.”
A frase: “Acontece”
Na entrevista, Bolsonaro foi ainda confrontado com uma sucessão de escândalos que ocorreram no Ministério da Educação do seu governo, que já teve vários ministros ao longo dos últimos quatro anos e que se viu mergulhado em escândalos de corrupção. Questionado sobre os critérios que usa para escolher os seus ministros, Bolsonaro respondeu sem hesitar: “As pessoas se revelam quando chegam.” “Por muitas vezes, depois que a pessoa chega, a gente vê que ela não leva jeito para aquilo”, afirmou ainda, acrescentando: “Acontece.”
Atualmente, Jair Bolsonaro está em segundo lugar nas sondagens. Dados do Instituto Datafolha do final da semana passada apontavam para a liderança de Lula da Silva (Partido dos Trabalhadores), com 47% das intenções de voto, e para o segundo lugar de Bolsonaro, com 32%. Em terceiro lugar, Ciro Gomes (Partido Democrático Trabalhista) reúne 7% das intenções de voto e Simone Tebet (Movimento Democrático Brasileiro) apenas 2%.
As eleições presidenciais brasileiras deste ano estão agendadas para o dia 2 de outubro. À semelhança do sistema eleitoral português, no caso de nenhum dos candidatos conseguir obter mais de 50% dos votos, haverá lugar a uma segunda volta entre os dois mais votados no dia 30 de outubro.
Jair Bolsonaro, atual presidente do Brasil, é recandidato pelo Partido Liberal (PL), numas eleições que ficam marcadas pelo regresso de Lula da Silva (antigo presidente brasileiro entre 2003 e 2011), depois de ter estado preso durante quase dois anos, entre 2018 e 2019, na sequência de uma condenação no processo Lava Jato (posteriormente anulada pelo Supremo Tribunal Federal).
Na terça-feira, é a vez de o candidato Ciro Gomes ser entrevistado na TV Globo. Segue-se Lula da Silva, na quinta-feira, e Simone Tebet, na sexta-feira.