Enviado especial do Observador em Doha, no Qatar
Não é fácil por estes dias ter um ruído à volta maior do que aquele que existiu, existe e vai continuar a existir sobre a realização do Campeonato do Mundo no Qatar. Ou melhor, ruído há sempre. Nas concentrações de Portugal, Argentina e Brasil, por terem alguns dos melhores jogadores do mundo. No estágio da França, após mais uma baixa por lesão e logo a do Bola de Ouro Karim Benzema. No entanto, tudo isso acaba por ter como base contextos conjunturais e não propriamente estruturais. O Irão acaba por ser assim uma exceção dentro dessa regra, numa fase em que o movimento pelos direitos humanos que tem como rosto Mahsa Amini assume uma proporção cada vez maior maior e que morreram mais de 300 pessoas entre as mais de 15.000 detenções. E é isso que coloca também Carlos Queiroz num papel diferente daquele que esperava ter.
Numa conversa com jornalistas portugueses na antecâmara do arranque do Mundial, o técnico que voltou em setembro ao Irão depois de uma primeira passagem de oito anos entre 2011 e 2019 recordou por mais do que uma vez as quatro décadas desde que começou a fazer projetos de desenvolvimento do futebol de formação em Portugal quando não estava ainda nos quadros da Federação. A partir desse momento, por altura das primeiras experiências que poucos conhecem entre os infantis dos Olivais e os iniciados dos Belenenses antes de ser adjunto da equipa de seniores do Estoril (1983/84), iniciou uma carreira com menos títulos do que por certo gostaria mas com bem mais experiências distintas do que poderia imaginar. E foi uma viagem quase de extremos, que tão depressa o colocou na liderança do Real Madrid ou como número 2 de Alex Ferguson no Manchester United como em clubes dos EUA ou do Japão e em seleções africanas.
Entre todas essas passagens, e de forma quase incontornável também pelo país que é, a passagem pelo Irão tornou-se a mais simbólica a par do bicampeonato mundial de Sub-20 por Portugal que serviu de rampa de lançamento para tudo o resto e também aquela que lhe permite bater esta segunda-feira um recorde que mais ninguém alcançou: ser o primeiro treinador a marcar presença em Campeonatos do Mundo realizados em quatro continentes, entre África (Portugal em 2010 na África do Sul), América do Sul (Irão em 2014 no Brasil), Europa (Irão em 2018 na Rússia) e Ásia (Irão em 2022 no Qatar). E apesar de ter aquela resposta quase formatada de “o desafio mais complicado é aquele que se segue”, Queiroz tem nesta altura a missão mais exigente de sempre em mãos olhando para todo o contexto que se vive no país.
O regresso a Portugal com o futuro tratado no United e as negociações com o Qatar
“O primeiro em África foi um Mundial a meia dúzia de quilómetros da terra em que eu nasci, foi a primeira razão da minha opção para voltar à Seleção Nacional. Conta muito quando a nossa Seleção nos chama para cumprir um objetivo e mostram essa confiança, porque primeiro dizemos que sim e depois pensamos como fazer o trabalho, mas naquela circunstância, ter saído do Manchester com os projetos que tinha à minha frente a curto prazo já acordadas para o meu futuro dentro do Manchester, só foi possível seguir esse caminho porque o Mundial era disputado perto da minha terra. Foi essa questão emocional e afetiva que me fez abraçar esse projeto porque caso contrário não teria saído”, recordou em exclusivo ao Observador sobre a competição em 2010 em que Portugal empatou com a Costa do Marfim (0-0), goleou a Coreia do Norte (7-0), teve outra igualdade com o Brasil (0-0) e caiu nos oitavos com a Espanha (0-1).
“Em 2014, fizemos uma competição com um mérito suficiente para estarmos na segunda fase, até o futebol que praticámos com a Argentina. Só podia haver um vencedor mas duas coisas fizeram a diferença: o árbitro e o Messi. O Messi com um passo de magia fez um golo que só ele poderia fazer mas antes há um penálti e uma expulsão que é uma coisa escandalosa e que poderia ter-nos dado o ponto que precisávamos porque antes há o lance na área da Argentina com o Ashkan [Dejagah]. O facto é que não conseguindo a qualificação é preciso também considerar que não fomos bons o suficiente e há que continuar a trabalhar. Foi isso que aconteceu de 2014 para 2018″, recordou sobre a fase final no Brasil, em que o Irão começou por empatar com a Nigéria (0-0), perdeu nos descontos com a Argentina (0-1) e foi derrotado pela Bósnia (1-3).
“O trabalho foi aprofundado, os estágios foram mais intensos, o número de jogo aumentou, uma geração nova de jogadores que tinha aparecido em 2014 começava a crescer e tivemos outra vez aquilo que se costuma dizer como o morrer na praia, aquela pequenina diferença do golo anulado, do penálti… Mas não é justo nem correto falar do trabalho de desenvolvimento que houve com as questões casuais ou casuísticas que vão acontecendo. O que é mais correto é dizer que não chegámos lá apesar de estarmos à beira da praia e a conclusão é que o Irão não foi bom o suficiente e que tinha de continuar a trabalhar mais e melhor”, contou sobre um Mundial de 2018 na Rússia em que começou com uma vitória nos descontos com Marrocos (1-0), perdeu com a Espanha (0-1) e empatou nos descontos na “final” com Portugal (1-1).
“O jogo contra Portugal é dos mais dramáticos da minha carreira porque tínhamos de ganhar, estava na nossa mão nos minutos finais. Portugal perdeu o controlo do jogo, perdeu o controlo de si próprio e nós nos últimos 25/30 minutos dominámos, criámos as oportunidades até ao momento precioso que às vezes faz ou não a diferença entre o ganhador e o perdedor que é quando na pequena área com a baliza praticamente aberta o Taremi falha a oportunidade de golo. Fizemos três excelentes jogos, muito superior ao que tínhamos feito em 2014 porque a história dos três jogos foi de competitividade com qualquer das equipas e estamos a falar de Marrocos, que tinha sido campeão de África, Espanha e Portugal. Ficou o sabor amargo porque não tivemos forças para continuar e passarmos. Em 2019 tivemos a Taça da Ásia e escrevia-se uma nova página mas não fui eu que trabalhei a equipa. Esta história não é de progresso mas sim de estagnação, embora tivesse evoluído de forma significativa no aspeto da experiência e da maturidade”, acrescentou.
Em paralelo, Queiroz comentou também ao Observador a realização da prova no Qatar e deixou também uma revelação sobre aquilo que poderia ter acontecido. “A decisão de trazer o Mundial para o Qatar apanhou de surpresa o mundo mas, conhecendo quem dirige o futebol no país, como conheço pessoalmente o sheik Ahmad [Al Thani], sei que são apaixonados pelo futebol. Pela perspetiva que têm sobre o que deve ser o desporto e a sociedade têm construído e preparado este país com infraestruturas que são incomparáveis para a qualidade de vida das suas pessoas e gentes. Por tudo o que têm feito pelo futebol, mereciam esta oportunidade. Não é só o que eles têm feito no próprio país, é o que o Qatar faz em termos de sponsorização apoiando o futebol internacional. Este esforço e projeto de fazer o Mundial no Qatar, que no início todos tinham reservas, aconteceu”, referiu o treinador português.
“Desde o princípio que não tive dúvidas porque, conhecendo as pessoas, sabia da determinação e vontade de fazer bem. Com um detalhe: tudo o que está feito não são dinossauros que serão abandonados, a nível de infraestruturas, campos de treino e campos de futebol. Tudo tem a ver com a própria melhoria da condição de vida da população do Qatar. Os parques desportivos que são anexos às instalações mostram isso mesmo. Há uma perspetiva de curto prazo que é o evento, mas analisando a médio e longo prazo a herança social, desportiva e cultural é uma coisa única para o seu povo”, acrescentou a esse propósito.
“Antes de abraçar o projeto do Irão, estava em Doha em negociações com a própria Federação do Qatar e o que estava em cima da mesa era a realização de um Mundial aqui na Ásia, no Qatar. Eram projetos com esse sonho, com essa ideia, que me levaram a estar aqui em conversações com a Federação e com o príncipe. Vale a pena dizer e recordar, porque as pessoas às vezes têm memória curta, que este Mundial acontece em 2022 depois de uma tragédia universal sem precedentes que foi a crise da Covid-19. Tenho algumas dúvidas, quase certezas, que se a decisão do Mundial não tivesse sido no Qatar este Mundial não teria sido possível acontecer agora. Isso foi devido ao empenho e às soluções que o Qatar pôs em prática que permitiram que se realizasse. Em qualquer outro país, tinha sido em 2023 ou 2024 ou cancelado”, concluiu.
O técnico com mais vitórias em seleções A que passou antes por EUA, Japão e Real
Até aqui, ao longo de uma autêntica montanha russa de viagens, de experiências e de projetos em alguns casos inesperados sobretudo pelo contexto em que surgiram, Carlos Queiroz tornou-se maior do que o grande projeto que funcionou como cartão de visita para o trajeto que se seguiria: a entrada na Federação, a revolução da pirâmide da formação, a mudança estrutural para que chegasse mais qualidade e quantidade à equipa principal na altura ainda com uma base forte nas associações e no papel das provas entre distritos para criar fornadas que depois seguiam juntas até ao último patamar dos Sub-21, o bicampeonato mundial de Sub-20 que foi o grande feito da Seleção até ao Campeonato da Europa de seniores em 2016 (seguido da Liga das Nações) e dos títulos na última década nos Sub-19 e Sub-17. E tudo começou com uma viagem para a liga norte-americana após passar pela Seleção A e pelo Sporting (onde ganhou uma Taça e uma Supertaça).
A primeira experiência no estrangeiro ao serviço dos New York/New Jersey Metrostars durou apenas quatro meses, seguindo-se a passagem pelo Japão até entre novembro de 1996 e novembro de 1997 no comando do Nagoya Grampus Eight, onde conquistou uma Supertaça. De seguida, Queiroz teve as primeiras experiências em seleções, começando nos EAU e passando depois pela África do Sul, onde o seu legado seria recordado mais tarde, em 2010, durante o Mundial. A passagem pelo Manchester United como número 2 de Alex Ferguson em 2002/03 acabou por funcionar como trampolim para a época em que liderou o Real Madrid com uma vitória na Supertaça, regressando depois a Old Trafford onde permaneceria até 2008. Daí para cá, apenas seleções: Portugal, Irão e mais recentemente Colômbia e Egito até ao regresso ao Irão.
Contas feitas, o português conseguiu 130 vitórias em 233 jogos por seleções (62 pelo Irão, 26 por Portugal, 13 pelo Egito, dez pelos EAU, dez pela África do Sul e nove pela Colômbia), sendo o técnico com mais vitórias em seleções A e o terceiro ntre os que conseguiram mais de 100 vitórias por seleções a nível de percentagem de triunfos (55%) apenas atrás do brasileiro Mário Zagallo e do alemão Joachim Löw. Olhando apenas para o trajeto no Irão, e em 103 encontros, Queiroz leva 62 vitórias, 28 empates e apenas 13 derrotas, o que explica também a aposta da Federação do país a menos de três meses da fase final deste Mundial do Qatar. Ainda assim, e entre a veia de globetrotter, não esquece Portugal mesmo num contexto ardiloso em que os jogadores são pressionados de todas as formas para se tornaram quase um símbolo da revolução com milhares de montagens e críticas nas redes sociais quase que a “picar” para uma tomada de posição (sendo que Carlos Queiroz reserva para o pós-Mundial mais comentários sobre isso).
“Um dia convidei Eusébio para jantar com os jogadores, quase fui corrido…”
“Saudades de falar de futebol? Não, aquilo que acho é que antes de um evento como este não vale a pena falar de coisas que não serão para já resolvidas… Mas antes de mais, deixem-me só expressar a minha gratidão perante esta manifestação de simpatia da vossa parte. Estou comovido que a imprensa portuguesa esteja aqui também. E aqui estamos, uma jornada longa da minha vida e mais um Campeonato do Mundo”, começou por referir num encontro com os jornalistas portugueses no Qatar realizado no hotel onde se encontra a equipa do Irão se encontra a estagiar. “Este Campeonato do Mundo é quase um exercício sem rede porque as equipas não têm quase preparação a curto prazo, ainda mais num grupo a começar logo”, destacara antes numa conversa com a imprensa portuguesa presente no Qatar realizada no hotel de estágio do Irão.
“Não temos o benefício de ter mais quatro dias para olhar e ver o que fazer, mas é o que é. O ambiente é o mesmo mas num registo diferente, num Mundial diferente jogado em novembro e dezembro. Será tudo diferente. Para o Irão o nosso Campeonato do Mundo imediato é a qualificação, como em 2014 e 2018. Tentar fazer o melhor para somar pontos. Depois de estarmos lá será uma festa e jogo a jogo, tentando sempre ganhar. Para Portugal esta competição vai num momento único da história do futebol português. Nunca tantos jogadores em condições e qualidade extraordinária se juntaram num determinado momento, oferecendo a qualidade que sempre teve mas acima de tudo a profundidade de soluções. Desta vez Portugal reúne as condições todas. Pode ser campeão? Sim. Todos podem, mas Portugal tem uma fórmula explosiva. Tivemos sempre grandíssimos jogadores mas sem a maturidade e vivência do futebol internacional que hoje existe”, comentou a propósito do lançamento da prova olhando também para a Seleção.
“O conceito de geração de ouro não foi nominal, foi uma filosofia de trabalho que deixou uma herança, um legado técnico. Não é tanto falar dos jogadores, que eles merecem, mas sim de um legado técnico que ficou na Federação. Podia contar algumas histórias… Quando cheguei à Seleção A como técnico principal lembro-me de ter convidado para jantar e encontrar-se com os nossos jogadores um senhor chamado Eusébio da Silva Ferreira e foi um escândalo, quase que fui corrido da Seleção Nacional. Eram contextos. As pessoas não eram más nem boas, é assim. Se em 1982 ou 1984 dissesse que na estrutura estariam jogadores que passaram pela Seleção como profissionais, diriam que era maluco ou tinha andado a beber. O importante é ter sentido que o legado técnico que ficou foi compreendido, melhorado e aperfeiçoado e que ano após ano foi subindo. Como dizem os americanos, from many comes one. O famigerado projeto para reestruturar o futebol português, que foi quase a minha cova e que contribui até hoje para estar lá o buraco para onde me querem atirar, foi o que permitiu que ano após ano houvesse mais qualidade e quantidade”, destacou.
“Outra história: quando emigrei depois do Artur Jorge, chegaram a perguntar-me quando dava entrevistas e dizia que era português se não podia dizer que era brasileiro porque até falava bem português… Hoje, ser treinador português em qualquer parte do mundo passou a ser uma coisa normal para toda a gente mas no início não era assim, foi preciso fazer projetos de qualificação dos treinadores…”, contou.
Em paralelo, Queiroz abordou também as situações de Ronaldo e Pepe, os jogadores que estiveram com o técnico no Mundial de 2010 na África do Sul. “As grandes estrelas dão grandes contributos às seleções. Mas, como todos, como Pelé ou Maradona, todos têm os seus momentos. Com estes dois jovens, a abordagem do treino e competição é diferente, com respeito, consideração e bom senso necessário para tirar o melhor partido dos dois jogadores, que deram grande contributo e continuam a ter papel importante. Agora, não se pode gerir um jogador de 37 anos da mesma maneira que se gere um de 20 ou 21 anos para tirar as melhores condições. Entrevista de Ronaldo? Estou um pouco afastado. Não me surpreende porque o contexto do clube não é o mesmo. O ambiente de trabalho, como na vida, têm o seu progresso, umas mais agradáveis, outras menos. A contratação de Cristiano como jogador é uma coisa, como elemento que podia chegar ao clube para fazer a viragem da filosofia dos últimos anos são coisas diferentes. O Cristiano chegou e não viu a mesma mentalidade, a mesma forma de estar. Encontrou dificuldades na adaptação e rotinas num clube que foi sempre ganhador e que está a tentar levantar-se perante dois ou três clubes muito à frente. Não se corrige isto em seis meses ou num ano, demora quatro a sete anos. Mas não afeta a Seleção”, disse.
Também Taremi, avançado do FC Porto que é hoje a grande referência do Irão, foi defendido pelo técnico. “Creio que é quase o jogador 27 da Seleção Nacional… É uma geração que apareceu, que me foi ouvindo quando dizia que tinha de aprender a falar português. Eles estiveram sempre lá, só não tinham era o cartão dos milhões. Pedia o favor para levá-los para a Europa para terem uma oportunidade mas como não eram os jogadores dos milhões que são hoje… Em Portugal quando se marca um golo pelo FC Porto é tocar no coração de três ou quatro milhões de benfiquistas e mais um 1,5 milhões de sportinguistas. Quando se marca um golo pelo Sporting é tocar no coração dos outros. É normal que um jogador de que de repente tem tanto sucesso em Portugal e que é um excelente jogador, depois de conseguir algumas vitórias para o FC Porto é normal que a imprensa de Lisboa não goste da notícia… Sempre foi assim. Melhor jogador do Irão? Não, não é. Há um jogador que é muito melhor e mais importante que é a equipa”, salientou.
E como tem sido trabalhar no atual contexto social do Irão? “Eles [jogadores] estão completamente focados na preparação da equipa. Era uma tontice pensar que num mundo aberto com as redes sociais fosse possível desenvolver estratégias de blindagem. O que fazemos é ter os jogadores informados e educados em relação à sua postura e missão ao serviço da seleção para tomarem de forma responsável as suas decisões. É uma estratégia de convicção. Há coisa mais complicadas de perceber, por exemplo era como se o Ronaldo que tem milhões de seguidores a dizer I love you de repente começar a ser criticado. Estamos a representar a seleção, 90 milhões de pessoas. Estamos numa missão e ninguém nos perdoaria se ao serviço da seleção não estivéssemos completamente focados, mas claro que temos sentimentos. Não me parece que Portugal venha jogar ao Qatar para o Partido Socialista porque é ele que está no governo. É por isso que estamos aqui, para fazer do Mundial uma festa. Precisamos de alegria. Final ideal? A que mais desejaria era entre Irão e Portugal, com respeito pelo meu amigo Paulo Bento. Bem, a Coreia do Sul podia ir às meias”, rematou.