“Acho que sou a pessoa menos preocupada com este espetáculo. Eu sei que devia ser a mais.” Não é possível depreender pelo tom se, ao proferir estas palavras, Fernando Ribeiro está a tentar ocultar o nervosismo ou se está a ser genuíno, antes de subir ao palco para liderar mais uma vez os Moonspell, a banda portuguesa de metal que se tornou uma das mais bem sucedidas a nível internacional à base de convicções inabaláveis. E foi esse percurso que os levou a uma das maiores noites da carreira ao fim de 32 anos de atividade, estreando-se em nome próprio na MEO Arena, acompanhados pela Orquestra Sinfonietta de Lisboa. É devido à monumentalidade da data que se questiona se Fernando Ribeiro, líder e vocalista da banda, está a querer convencer-se de que este é apenas mais um momento entre muitos de uma história repleta, já que após os últimos acordes soarem no Parque das Nações, os Moonspell voltam à estrada para mais uma digressão europeia. Apesar de já terem tocado na maior sala do país, nunca tinham-no feito nestas circunstâncias — ainda para mais acompanhados de outros 45 músicos, guiados pela batuta do maestro Vasco Pearce de Azevedo.
“A minha mãe disse-me que o meu pai veio de Viana do Castelo fazer uma surpresa, não podia perder ‘o concerto da tua vida’. Toda a gente [a dizer] ‘tu mereces, tu trabalhaste para isto’, mas sinceramente não trabalhei exatamente para isto. Trabalhei, fui trabalhando, as coisas foram acontecendo, fomos fazendo uma coisa boa, sabemos reconhecer uma boa oportunidade, como foi o caso deste convite, mas há sempre a noite a seguir, há sempre o amanhã — e eu trabalho muito não é para o presente, mas para o futuro imediato”, conta ao Observador, que se deslocou horas antes do concerto para acompanhar a preparação do derradeiro momento.
No backstage, foi possível ver Fernando Ribeiro e Pedro Paixão, teclista e guitarrista, pasmarem-se ao descobrir que tinham no catering uma caixa de bolas de berlim do Natário (famosa pastelaria de Viana do Castelo), assim como assistir às sessões de maquilhagem. Dado tratar-se de uma noite especial, será que haveria corpse paint — um tipo de pintura facial associada ao black metal? “Já lá vai o tempo, isso ficava-nos mal”, admite o vocalista, lembrando-se dos primeiros tempos da banda. “Isso fica melhor nos noruegueses. Nessa altura, não tínhamos lápis preto, tínhamos de usar azul, mas as fotos eram a preto e branco”, confessa entre risos, antes de se retirar para aquecer a voz — algo que faz antes de todos os concertos e que dura, pelo menos, uma hora.
O lado oculto da lua
Esta ausência de nervosismo pode ser explicada não só pela experiência acumulada da banda, como pelas circunstâncias que rodearam este “Opus Diabolicum”, nome oficial do espetáculo, retirado de uma das mais antigas canções da banda. Afinal de contas, a data já tinha sido anunciada um ano antes, como parte das celebrações das três décadas de existência dos Moonspell, o que lhes deu tempo de preparação.
“Conseguimos trabalhar nele, conseguimos fazê-lo com calma. O tempo é uma coisa muito preciosa na música. Tal como com as outras bandas, os outros projetos, outros espetáculos, faz-se tudo sempre a correr, e a preparação deste espetáculo teve um ritmo muito, muito bom para todos nós”, aponta nos bastidores. Assim se entende melhor também a descontração palpável durante o ensaio/soundcheck, com momentos de amena cavaqueira — chegámos a ouvir as flautas jocosamente interpretando trechos de famosas peças clássicas — intercalados com a necessária concentração para mais de 50 pessoas tocarem em simultâneo no mesmo palco e com o dramatismo que a música do grupo impõe.
O facto dos Moonspell darem este concerto suportados por um pequeno exército de cordas e sopros pode ser encarado como uma conquista, mas não uma anomalia. O casamento entre o clássico e o metal está longe de ser novidade, já que uma fatia considerável de subgéneros de música pesada vai beber inspiração direta ou indiretamente à tradição erudita de séculos passados — principalmente no que toca à pompa, ao assomar dos instrumentos em prol da grandiosidade.
Mas uma coisa é compor música com orquestrações — digitais ou não, sendo que os Moonspell já experimentaram ambas as formas. Outra, é tocar ao vivo com uma orquestra, o que requer todo um trabalho de preparação, não só para que tudo se integre harmoniosamente, como para pensar em arranjos originais para músicas que não foram concebidas com esse propósito. Aí, talvez o exemplo paradigmático deste desafio seja “S&M”, projeto que juntou os Metallica à Orquestra Sinfónica de São Francisco para um concerto em 1999. À distância de 25 anos, as opiniões ainda hoje dividem-se quanto ao sucesso de tal iniciativa, visto que o thrash metal dos anos 80 e a fase hard rock dos 90s dos californianos não eram, à partida, as sonoridades que mais beneficiariam de acompanhamento sinfónico. O caso dos Moonspell, porém, é diferente.
Do seu começo a tocar black metal de raiz pagã e ocultista à evolução para um estilo mais elegante e gótico que hoje os caracteriza, até mesmo alguém pouco familiarizado com este tipo de música consegue verificar com relativa facilidade que praticamente todo o catálogo dos Moonspell pede uma simbiose com a música clássica. Foi sob essa premissa que se perguntou como foi preparar os arranjos orquestrais concebidos pelo pianista, cineasta e autor Filipe Melo.
“Cresci a ouvir Metallica, mas não sou grande fã do S&M, para ser honesto. Aliás, apostámos mais no nosso gosto pelo clássico — Mussorgsky, Prokofiev, Stravinsky, Mahler, Gustav Holst”, enumera Fernando Ribeiro. “Das experiências metaleiras com orquestra, gostamos muito de coisas mais underground, tipo o Septicflesh, que são gregos e têm um maestro e um arranjador formado em Inglaterra, na própria banda, e fazem coisas incríveis. Também gostei da experiência do black metal com orquestra dos Dimmu Borgir… Mas, os nossos arranjos feitos pelo Filipe Melo procuraram ser um pouco mais mediterrâneos, mais melódicos até, e não ser aquilo, provavelmente, que as pessoas esperam”, aponta. Só restava então ver isso posto à prova.
Um concerto onde não ficou “pedra sobre pedra”
Perante uma MEO Arena muito bem composta, mas não cheia, às 22:00 em ponto subia a orquestra para o palco, seguindo-se o seu maestro. Sem percussão — é uma Sinfonietta, ou seja, de tamanho mais reduzido que uma orquestra sinfónica —, esta ficou a cargo de Hugo Ribeiro, baterista e membro mais recente dos Moonspell. A panóplia de instrumentos, ladeada pelos coros vestidos de monge em hábitos azuis, lançou-se em vagas primeiro subtis, depois cada vez mais ameaçadoras, melodias interrompidas em staccato e sob ritmos marciais prenunciando o tema que dominaria a primeira fase do concerto: 1755.
O fatídico dia em que Lisboa quase acabou e a Europa entrou em choque com a capacidade de destruição da própria terra para com os seus habitantes dá nome e inspiração a um dos mais recentes (e também celebrados) álbuns dos Moonspell. Curiosamente, a primeira canção apresentada pela banda em formato orquestral para a sua Alcateia nesta noite foi uma que não precisou de novos arranjos. Isto porque foi com “Em Nome do Medo” — original do álbum “Alpha Noir”, refeita em versão sinfónica e operática para “1755” — que arrancaram, não sendo assim uma surpresa, mas a versão definitiva desta música. Com Fernando Ribeiro carregando a lanterna dos afogados, não precisaram de guitarras distorcidas para criar um tsunami arrepiante de som, pontuado pelo canto sonoro do público no refrão.
Foi dada a bitola e raramente o nível de intensidade baixaria desde então, até porque a partir daí entrariam o baixo de Aires Pereira e a guitarra de Ricardo Amorim, pondo o metal em destaque — ainda que, lamentavelmente, as seis cordas de Amorim por vezes fossem engolidas na montanha de instrumentação, única mácula num concerto que conseguiu extrair um som quase perfeito de uma sala de reputação infame. Com máscara de médico da peste e perante canhões de fumo, Fernando Ribeiro gritou “Não, não deixará pedra sobre pedra // Não, não restará ninguém sobre a terra” na faixa-título — algo que tanto poderia referir-se à magnitude do terramoto como à intensidade do concerto. Já em “In Tremor Dei”, as filas da frente foram chamuscadas pelas colunas de fogo no palco, não fosse o seu refrão “Lisboa // Em chamas // Caída, tremendo em Deus”.
Se a sequência de temas do “1755” mostrou um casamento perfeito entre as duas sonoridades em contraste em cima do palco — e onde os coros mais se salientaram também — foi o que se seguiu que inspiraria mais curiosidade. “Vai haver coisas que as pessoas não vão estar à espera, até músicas que nós colocámos no alinhamento que se calhar não são muito expectáveis. Claro que vão ficar coisas de fora, mas tentámos um pouco aproximar-nos mais da raiz, da influência de música clássica de que gostamos, pelo menos enquanto ouvintes”, avisou-nos Fernando Ribeiro antes do concerto.
Dessa forma, temas com habitual lugar garantido das setlists — “Opium”, “Night Eternal” e “Mephisto”, por exemplo — foram substituídos por algumas surpresas, como “Proliferation”, música instrumental aqui readaptada para orquestra, com direito a um freak-out dos sopros e a uma sequência retumbante em pedal duplo a lembrar os mestres russos antes mencionados pelo vocalista.
“Preparados para uma noite muito especial under the spell?”, perguntou Fernando Ribeiro antes de avançar para o combo “Breathe (Until We Are No More)” e “Extinct”, temas também eles já compostos com orquestra — mas que, diga-se, não pareceram ser das escolhas mais inspiradas para esta noite, em particular a segunda. Já “Finisterra”, habitual estrondo, pareceu ainda mais apocalíptica e alucinante com síncopes sinfónicas, ao passo que “Scorpion Flower” e “Everything Invaded”, de teor mais gótico, também beneficiaram do casamento entre melancolia e agressividade.
A reta final do concerto, contudo, representaria a sublimação da noite, quando os Moonspell foram até meados dos anos 90. Primeiro, “Vampiria”, com todo o seu excesso, subiu a patamares ainda mais lúgubres com a orquestração, entre devaneios belalugosianos e passagens vorazes de fome transilvânica, enquanto se acendiam canteiros de fogo. Já “Alma Mater”, hino absoluto da banda, viu as cores de Portugal brilhar em palco enquanto Fernando Ribeiro empunhava uma bandeira nacional. “Virando costas ao mundo // Orgulhosamente sós // Glória antiga // Volta a nós” é uma letra que pode ter envelhecido mal perante o atual panorama político, mas nem as conhecidas simpatias políticas do seu vocalista dão azo a grandes dúvidas, nem esta era a noite para tal reflexão. O que ficou foi a simbiose entre black metal de pendor folclórico e sinfonia que, lá está, trouxe à memória as sonoridades dos Dimmu Borgir antes assinaladas.
Sob uivos de toda a plateia, “Full Moon Madness” veio mesmo mostrar que a lua ainda não perdeu qualquer poder encantatório do seu feitiço, e o que se sucedeu foi talvez a melhor versão jamais tocada deste tema. Com geisers de faíscas apenas rivalizados na intensidade pela forma selvática como Fernando Ribeiro foi atacar os pratos da bateria, terminou uma noite especial, monumento ao trabalho de uma das maiores bandas do país. Afinal, Fernando, havia razões para ficar ansioso.