“Quem estimar a moderação dourada / escapará, seguro às sordícias de uma casa / degradada; e escapará, regrado, ao palácio / causador de inveja”, canta Horácio numa das suas odes incluídas na Poesia Completa, agora traduzida por Frederico Lourenço. E assim termina essa ode: “Em situações angustiantes, mostra-te corajoso / e forte. Sabiamente, também, diante / de vento demasiado favorável, encurtarás / as velas inchadas.” Porém, não é do grande poeta latino que quero falar – a edição da Quetzal merece toda a atenção e os encómios que alguém, mais habilitado do que eu, lhe dedicará – mas desse cronista horaciano que foi Rubem Braga (1913-1990), praticante ativo nas milhares de crónicas que escreveu da “moderação dourada” recomendada por Horácio.
Quem ler as crónicas reunidas em Desculpem Tocar no Assunto (ed. Tinta-da-China) concluirá que a tristeza é o sentimento que as modula. Mas a tristeza de Braga não é triste, pesada, depressiva. É suave, terna, tranquila. Uma tristeza quase alegre, reconfortante. Uma tristeza que não bate, aconchega. E nestas crónicas a tristeza nunca é despejada a balde sobre os leitores. É aspergida como o incenso de um turíbulo imaginário, um vago perfume que penetra a consciência do leitor. Porque se a alegria é a melhor coisa que existe, é sabido que sem um pouco de tristeza não há samba, não há crónica.
A tristeza é apenas uma das qualidades do cronista-só-cronista Rubem Braga. Há, em todas estas crónicas, outras da mesma família: a timidez, por exemplo. “Sou um homem de natural tímido, e ainda mais no lidar com mulheres” ou “embora escreva com certa desenvoltura sobre amores e damas, sou, na vida prática, um pavoroso tímido”, escreve o cronista, embora, na verdade, seja pouco interessante apurar se era uma característica do homem, uma timidez sincera, ou um artifício literário, porque, tal como a tristeza, uma vez transposta para a página, ela é atenuada e a sua natureza é subtilmente transformada.
Timidez e tristeza, quando escritas, transformam-se. Transportar o que se vê, o que se sente ou o que se é para a crónica já é ultrapassá-lo, transfigurá-lo, vencê-lo. Quando o tímido verbaliza a timidez consegue dominá-la. Falar da tristeza é um pouco como apagar-lhe os contornos, reduzi-la a dimensões assimiláveis pelo espírito. De tão repetidas – e tristeza e o adjetivo triste devem ser as palavras mais usadas por Rubem Braga nestas crónicas – tornam-se objetos portáteis, táteis, amuletos que cobrem os textos e os tingem de melancolia.
Na crónica A Viajante, sobre uma mulher que não chegou a entrar na vida do autor (outro motivo recorrente em Braga), assoma esse sentimento de moderada melancolia, de aprendizagem da resignação, ouve-se o doce murmúrio das águas que correm e do tempo que passa. É uma crónica que poderia ter sido escrita por Ricardo Reis – o heterónimo de Pessoa, discípulo de Horácio, que, curiosamente, “vivia” no Brasil quando Rubem Braga começou a escrever as suas crónicas na imprensa brasileira.
Noutra crónica, Um Sonho, evoca-se a pureza de uma recordação que não deve ser corrompida por expressões fortes como “mulher nua”. A recordação de emoções intensas é um abrandamento bem-vindo, desejável, do vivido. A única euforia admissível é a que já se começa a dissipar – “alguma coisa tão limpa e tão suave, além de qualquer desejo, apenas o sentimento da vida mansa daquela pele de um dourado pálido” – ou aquela cuja potência é pressentida no que não aconteceu.
Os momentos de maior exaltação (palavra bastante anti-braguiana) nestas crónicas são aqueles dominados pela imaginação e que são, por esse motivo, à sua maneira, a maneira de Braga, tristes. Imaginação que ergue, de raiz, o que não aconteceu, que inventa o que poderia ter acontecido e que refaz o que aconteceu, mas que, à distância, do tempo e do verbo, perdeu o ímpeto, a força original. É tudo – as alegrias e as tristezas, os êxtases e as deceções – nivelado por essa aurea mediocritas horaciana, de modo que o mundo descrito se começa a parecer física e espiritualmente com o cronista: o mundo tem o rosto do Braga, o bigode do Braga, mais tarde os cabelos brancos do Braga, a melancolia do Braga. Assim se consuma a vingança do escritor, uma vingança que ilusoriamente se confunde com renúncia: “Então tive uma grande pena de minha alma e de meu corpo, e de todo mim mesmo, pobre máquina de querer e de sentir as coisas. Ponderei o meu ridículo e a minha solidão, e pensei na morte como um suave desejo.”
Apesar de o cronista dizer que, se tivesse imaginação, escreveria novelas e não “croniquetas de jornal”, é através destas e da imaginação que as habita que se vinga da vida, da realidade. De repente, o “medíocre homem que vive atrás de uma chata máquina de escrever”, transforma-se, por sugestão de um humilde pé de milho, num “rico lavrador da Rua Júlio de Castilhos;” congemina vinganças violentas em que, em “[c]erta madrugada, perdidamente bêbado e desesperado com o olhar cobiçoso e irónico do jogador de damas, eu entraria em seu boteco fúnebre e berraria: “você vai primeiro! Você não me enterra!” – e lhe meteria um punhal na barriga”; ou imagina uma chamada telefónica de, entre todas as mulheres, Rita Hayworth. Parte de um lugar de aparente impotência – o do observador ou testemunha de coisas cujo mistério lhe escapa – como na crónica Homem Olhando a Janela Alta, onde “atrás de uma árvore sem graça um homem sem graça olha uma janela alta” para chegar ao fim dono e senhor de si, da árvore, da janela e da graça.
Nestas crónicas da imaginação, a que chamaremos “conjuntivas”, passa-se da observação para a imaginação solta, do que é para o que seria, e a manifestação de um desejo até se pode tornar a própria crónica (Meu ideal seria escrever). Mas estas crónicas não obliteram a preciosa atenção ao real. É que o cronista não vive apenas de sentimentos, vive também dos objetos que os despertam, embora o mais importante sejam precisamente os afetos e as sensações que o ligam ao mundo material, como se lê nas crónicas Inventário, As Luvas, Coisas Antigas (sobre guarda-chuvas) ou Os Embrulhos do Rio. O valor das coisas não reside nas coisas em si mesmas, mas na corrente emocional que as une aos indivíduos. Na crónica O Funileiro, o objeto desligado da sua antiga função, usado para fins meramente decorativos, está morto, é um emblema vazio, a sua essência e o seu significado humanos foram corrompidos.
Como qualquer cronista, ainda para mais um que toda a vida escreveu crónicas e apenas crónicas, Rubem Braga tem temas recorrentes, os clássicos da arte: a falta de assunto (na crónica semi-ácida que abre este volume), a passagem do tempo, o anúncio das estações do ano (“tenho cantado a primavera todo ano, assim como as demais estações, conforme é uso e costume das pessoas que escrevem o ano inteiro, e obedecem às tradições deste ofício”) e a própria arte da crónica. “Imprudente ofício”, diz Braga, “este de viver em voz alta.” Um ofício que liberta e condena o cronista a um cansaço que, também ele, é absorvido pelo tecido orgânico da crónica: “para instaurar uma vida mais simples e sábia, então seria preciso ganhar a vida de outro jeito, não assim, nesse comércio de pequenas pilhas de palavras, esse ofício absurdo e vão de dizer coisas, dizer coisas”.
Mas a crónica é esse ofício absurdo com o qual o artesão das palavras tem de se reconciliar: “Há homens que são escritores e fazem livros que são como verdadeiras casas, e ficam. Mas o cronista de jornal é como o cigano que toda noite arma sua tenda e pela manhã a desmancha, e vai”, escreve Braga em Manifesto. Esse movimento transitório, a precariedade física do género, fazem das crónicas objetos de um determinado tempo aos quais o leitor se afeiçoa (a espera do leitor, afim da espera amorosa, para ler a crónica diária ou semanal), vestígios materiais de uma época, sendo também documentos de uma sensibilidade particular, a do autor. A filosofia da crónica segundo Braga está, de forma implícita, em A Borboleta Amarela, conjunto de três crónicas em que o cronista persegue uma borboleta amarela, símbolo de boa sorte. Todo o cronista persegue uma borboleta amarela que um dia desaparece. E todos os dias, ao acordar, tem de procurar outra borboleta amarela. Mesmo que não a borboleta não exista. Ou ainda mais se a borboleta não existir. Porque é essa – a que não existe – a mais desejada, a mais amada.
O momento braguiano por excelência é o do reencontro fortuito e fugaz com alguém ou alguma coisa que se amou intensamente no passado. Ou com a memória – ou imaginação – dessa pessoa ou objeto. Esse sentimento vivo, um tanto desbotado pelo tempo, é mais belo do que a chama do momento em que se viveu ou que, não se tendo vivido, se imaginou. Quando o sentimento já não queima: “Mas à noite, quando volto para casa, a cabeça de gesso me espera – imemorial, neutra, severa, apenas quase triste. E a minha ternura é toda sossego e pureza” (O Gesso); “Com certeza não a verei mais, e não ficaremos os dois nem decepcionados nem sentimentais, apenas com uma vaga e suave lembrança um do outro, lembrança que um dia se perderá” (As Luvas).
Porém, nenhuma outra crónica de Rubem Braga o ilustra tão bem quanto A Primeira Mulher do Nunes, que não faz parte desta coletânea, mas pode ser encontrada em 200 Crónicas Escolhidas, o contínuo best-seller do autor no Brasil. Nesta crónica, escrita em 1957, o cronista apaixona-se pela ideia de uma mulher, a tal “primeira mulher do Nunes” que ele nunca viu e de que todos lhes falam: “enfim, a primeira mulher do Nunes ficou sendo um mito, uma estrela perdida para sempre em remotos horizontes e que jamais cheguei a avistar.” Então, intervém a imaginação, através da qual o cronista dá vida seja a borboletas amarelas ou à primeira mulher do Nunes: “Talvez fosse mesmo ela que estivesse pousada hoje, pelo meio-dia, na Praça Serzedelo Correia, simples, linda e tranquila. Assim era a imagem que eu fazia dela; e tive a impressão de que seu rápido olhar vagamente cordial e vagamente irónico tentava me dizer alguma coisa, talvez contivesse uma espantosa e cruel mensagem: “eu sei quem é você, eu sou Marissa, a primeira mulher do Nunes; mas nosso destino é não nos conhecermos jamais…”
Só acho que Rubem Braga não acertou no nome. A primeira mulher do Nunes chamava-se Lídia. E a mensagem não era cruel. Era uma exortação suave à aurea mediocritas.