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A última remodelação de Salazar. Preparada ou resultado de um homem diminuído?

Há 50 anos, a 19 de agosto de 1968, uma segunda-feira, Salazar fez a última remodelação dos seus governos. Já tinha caído da cadeira e perderia o poder pouco depois. Ensaio de Fernando Martins.

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Com 79 anos incompletos, no início de 1968, ou mesmo antes, Oliveira Salazar era já, e segundo alguns testemunhos, um “homem doente” (por exemplo, na entrada de 15 de janeiro de 1967 do seu Diário, Franco Nogueira referiu-se a “um Salazar diferente”). Mais do que as capacidades físicas, seriam as aptidões intelectuais que se encontravam, ou se encontrariam, diminuídas. Naturalmente, e noutras circunstâncias, este facto seria irrelevante. Porém, e no caso de um chefe de Governo, tratava-se de uma ocorrência da maior importância. Sobretudo, quando o cargo, o poder e o prestígio de Salazar eram cobiçados, havia décadas, por rivais que com ele haviam diretamente colaborado em sucessivos Governos e/ou em vários órgãos e instituições que davam forma e significado ao Estado Novo. De qualquer modo, a diminuição das capacidades de Salazar, a ter-se verificado, manifestou-se não em termos genéricos, quotidianamente, mas em pequenos detalhes que só foram equacionados após o seu internamento na “Casa de Saúde de Benfica”, na noite do dia 4 de setembro, como resultado direto, mas não necessariamente único, do acidente sofrido no Forte do Estoril na manhã do dia 3 de agosto.

Antes do Verão de 1968, os sinais de decadência física e, sobretudo, mental do chefe do Governo, terão sido notados por todos os ministros, incluindo os mais distraídos quando na reunião de Conselho de Ministros realizada no dia 12 de junho de 1968, um Salazar “muito pálido, esmorecido […]” repetiu “as mesmas coisas que” dissera na véspera “como se fossem inteiramente novas”. Relatou detalhadamente um incidente que se tornou célebre ocorrido dias antes no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, e após o qual o presidente do Conselho e dois outros membros do Governo decidiram que Maurice Béjard deveria ser expulso de território nacional, tendo sido ainda proibidos os espetáculos que a companhia de bailado dirigida pelo mesmo Béjard tinha agendados [Franco Nogueira, Um político confessa-se (Diário: 1961-1968), 3.ª ed., Porto, 1987, p. 301].

Antes do Verão de 1968, os sinais de decadência física e, sobretudo, mental do chefe do Governo, terão sido notados por todos os ministros, incluindo os mais distraídos quando na reunião de Conselho de Ministros realizada no dia 12 de junho de 1968, um Salazar “muito pálido, esmorecido […]” repetiu “as mesmas coisas que” dissera na véspera “como se fossem inteiramente novas”.

Foi, porém, neste contexto, e já depois do acidente ocorrido a 3 de agosto, que Salazar concluiu uma remodelação governamental de que se falava e que, virtualmente, vinha sendo preparada desde, pelo menos, finais de janeiro de 1967 [“Parece seguro que Salazar começou a tratar de uma remodelação ministerial. […]” Idem, ibidem, p. 218]. O novo Governo tomou posse no Palácio de Belém na tarde de 19 de agosto, uma segunda-feira. Foi o último Executivo de Salazar, recomposto 36 anos depois da sua tomada de posse como presidente do Conselho ainda durante a vigência da “Ditadura Nacional”, a 5 de julho de 1932.

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Sobretudo para os indefetíveis de Salazar e do “salazarismo”, o novo Governo foi interpretado como uma solução que “denotava a decadência do homem” e (por que não?) do político. Consideraram-no formado por segundas figuras políticas, sem prestígio e sem obra, tecnocratas destituídos de “formação humanista” e, pior que tudo, quase todos “marcelistas”. Ou seja, o último Governo formado por Salazar não era um Governo “salazarista”, tanto pela falta de qualidade política e humana de muitos dos seus membros, como pelo facto de ter, em vários postos chave, alguns homens com credenciais “marcelistas” e não “salazaristas”. Seria ainda, e acabou por ser, segundo as mesmas vozes, o Governo que abriu o caminho para a sucessão de Salazar e do “salazarismo”, entregando o poder ao seu velho rival, o professor catedrático da Faculdade de Direito de Lisboa, Marcello Caetano. Retrospetivamente, esta avaliação pode parecer ser a mais correta. Afinal, semanas depois, a 27 de setembro, para formar o seu primeiro Governo, Marcello Caetano aceitou ser presidente de um Executivo em que a grande maioria dos ministros fora escolhida pelo seu antecessor.

Esta interpretação política e moral que “salazaristas” como Manuel Maria Múrias [(introd. e coord.) Salazar, Lisboa, 1989 e De Salazar a Costa Gomes, 2.ª ed., Lisboa, 1998] ou Franco Nogueira [op. cit., e Salazar. VI vol. O Último Combate (1964-1970), s.e., s.l., s.d..] fizeram da conduta de Oliveira Salazar aquando da derradeira remodelação governamental por ele protagonizada é ainda hegemónica, ou prevalecente, tanto no universo historiográfico como na esfera do senso comum. Este facto é relativamente fácil de explicar: por um lado, poucos têm sido os estudiosos do “salazarismo” e de Oliveira Salazar que analisaram de forma sistemática e aprofundada as circunstâncias que rodearam a formação do último Governo de Salazar e o significado político que lhe pode ser dado, nomeadamente quanto aos seus propósitos; por outro lado, a imagem de um presidente do Conselho fisicamente decadente a tomar decisões de grande relevância política serve as interpretações “antissalazaristas” do “salazarismo” por revelar aquilo que seria o beco sem saída, político e também moral, em que aquele se enfiara ao menos nos últimos anos da sua existência.

O poder passou a ser sobretudo de Marcello Caetano

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No entanto, para perceber o significado político que rodeou a formação do último Governo do “salazarismo”, e a não ser que dados hoje desconhecidos um dia possam demonstrar o contrário, pouca ou nenhuma relevância deve ser dada ao estado de saúde de Oliveira Salazar tanto antes como depois do acidente por si sofrido a 3 de agosto de 1968. Em primeiro lugar, porque o longo processo de escolha dos novos membros do Governo e de afastamento de alguns ministros que exerceram funções até meados de agosto de 1968 assemelhou-se a outras remodelações longamente ponderadas e preparadas, em particular as ocorridas nos anos de 1944, 1947, 1950 e 1955. Em segundo lugar, porque a remodelação de agosto de 1968 teve presente os problemas políticos com que o País, o regime e o próprio Governo se confrontavam, mas que necessitavam de uma solução havia, ao menos, largos meses: problemas e desafios transversais mas, especialmente, na área da Defesa, da segurança interna, da Educação, das Finanças e da política “ultramarina”. Por último, a remodelação governamental do Verão de 1968 fez-se não iludindo completamente, antes pelo contrário, o problema da inadiável e inevitável grande questão com que o “salazarismo” se confrontava havia já alguns anos, dada a avançada idade do presidente do Conselho, e que se previa que se manifestaria num prazo cada vez mais curto: a substituição de Oliveira Salazar, nomeadamente por eventual incapacidade, parcial ou total, para continuar a exercer as suas funções de chefia do Governo. Portanto, a “última remodelação” de Salazar só não foi absolutamente normal pelo facto de o problema da sua sucessão se ter colocado a partir da noite do dia 4 de setembro de 1968 e não alguns meses mais tarde.

A “lealdade a toda a prova não é […] um fator de somenos”

[Franco Nogueira, op. cit., p. 281]

No fim de agosto de 1965, a política de Defesa e o seu titular, o general Manuel Gomes de Araújo, eram o principal alvo setorial e individual das críticas dirigidas ao Governo. A preparação e condução das ações bélicas nos teatros de “ultramarinos” mereciam críticas cerradas nos meios militares e civis afetos ao regime. Sendo difícil determinar a objetividade das críticas, uma vez que podiam querer atingir o ministro independentemente dos deméritos ou méritos da estratégia adotada e executada nos teatros de operações em Angola, Moçambique e na Guiné, certo é que no Verão de 1967 a política de Defesa e o seu titular pareciam ser o elo mais frágil da estratégia política Governo e, portanto, capazes de despoletar uma crise que levasse à remodelação do Governo.

Não admira, por isso, que os problemas na área da Defesa e a necessária remodelação governamental que aqueles suscitariam fossem vistos por alguns como uma oportunidade para alterar certos aspetos da estratégia e da estrutura de Governo. Franco Nogueira, por exemplo, considerava, no Verão de 1967, que uma mera mudança de nomes seria insuficiente. Era o “sistema” de governação que deveria alterar-se independentemente da introdução de “uma novidade ou outra.” Salazar pensava eventualmente da mesma maneira. Porém, e como os factos o provaram, para o presidente do Conselho o momento certo para avançar com uma remodelação do Governo tardou a chegar.

Independentemente do como, do quando e do para quê, tal como era colocada no fim de agosto de 1967, a questão da remodelação era particularmente interessante uma vez que revelava alguns equívocos e várias certezas sobre a forma como a política de Defesa era conduzida em plena “guerra colonial” e, sobretudo, sobre o modo como Oliveira Salazar olhava para a política de Defesa e para os méritos e deméritos do titular daquela pasta. Não interessa agora discutir, ou sequer avaliar, se uma vez chegados ao Verão de 1967 a política de Defesa, tal como era prosseguida na “Metrópole” e no “Ultramar”, era mais ou menos meritória, ou mais ou menos criticável, respondendo assim, melhor ou pior, às exigências de uma guerra de contrainsurgência que se iniciara em Angola em março de 1961 e depois alastrara a outros dois territórios “coloniais”. Sabe-se, porém, que política e militarmente as opções do general Gomes de Araújo que, diga-se, eram também as de Salazar, mereciam muitas críticas, sendo o general acusado, por exemplo, de não compreender a “guerra de subversão”. Também se sabe que as relações pessoais e políticas entre o presidente Américo Thomaz e Gomes de Araújo eram más. Aquele queixava-se deste a Salazar (ao ponto de sugerir que a pasta de Defesa devia ser entregue a um civil), mas, também, a vários ministros e a alguns membros da elite política do Estado Novo que pertenciam ao núcleo duro dos conselheiros políticos do Chefe de Estado e/ou do presidente do Conselho.

Política e militarmente as opções do general Gomes de Araújo que, diga-se, eram também as de Salazar, mereciam muitas críticas, sendo o general acusado, por exemplo, de não compreender a “guerra de subversão”. Também se sabe que as relações pessoais e políticas entre o presidente Américo Thomaz e Gomes de Araújo eram más.

Porém, o general Gomes de Araújo tinha ao menos um mérito que se não era extraordinário era, ao menos, singular: a “sua lealdade e dedicação” ao chefe do Governo eram “totais”. Salazar (re)conhecia este facto que, só por si, garantia a permanência de Gomes de Araújo no cargo de ministro da Defesa, ao menos enquanto não se verificassem uma de duas possibilidades: militar e politicamente a estratégia usada na prossecução da guerra tornava-se desastrosa e ou insustentável; ou surgiria por fim no firmamento militar do “salazarismo” alguém que, independentemente de igualar ou superar Gomes de Araújo no modo de pensar e fazer a guerra, daria todas as garantias de uma total dedicação e fidelidade política ao chefe do Governo. Portanto, e para Salazar, que desejaria continuar a “dormir tranquilo”, embora fosse necessário que política e tecnicamente o titular da pasta da Defesa estivesse à altura dos desafios colocados por uma conjuntura militar muito difícil, tal condição não era suficiente para poder sobraçar aquela pasta. E era assim porque Salazar via o ministro da Defesa e o topo da pirâmide da hierarquia militar como uma estrutura política que, antes de ser capaz de fazer a guerra de contrainsurgência de forma competente, deveria ter sobretudo uma capacidade inquestionável para proteger – prevenindo ou reprimindo – o chefe do Governo e o regime político de quaisquer tentativas golpistas.

Se estes cuidados tinham sido uma constante nas preocupações políticas de Salazar desde a sua chegada ao poder em abril de 1928, mais se reforçaram após o fracasso da “abrilada” em 1961 (uma ampla conspiração militar contra Salazar, e não contra o Estado Novo, arquitetada pelo então ministro da Defesa, general Júlio Botelho Moniz, e uma parte importante das chefias das Forças Armadas portuguesas), e a intensificação, alargamento e arrastamento da guerra na África “portuguesa”. Embora, como notou José Medeiros Ferreira, o fracasso da “abrilada” e o início da “guerra colonial” tenham contribuído para reforçar o domínio do poder civil sobre o poder militar, submetendo efetivamente este àquele em termos nunca vistos na história do Estado Novo, não deixa de ser verdade que Salazar, até pela forma relativamente moderada como tratou o problema político, sobretudo no Exército, após a “abrilada”, não deixou de ter presente que era nas Forças Armadas e, sobretudo, naquele seu ramo, que se jogava não só a possibilidade de fazer com maior ou menor êxito a guerra em Angola, Guiné e Moçambique, mas, sobretudo, a eventualidade de garantir a segurança, a integridade e a própria existência do Estado Novo.

O ministro da Defesa Gomes de Araújo na inauguração da então Ponte Salazar

Não foi por isso surpreendente que o ministro da Defesa, o general Gomes de Araújo, tenha sido um dos ministros-chave do Governo que sobreviveu absolutamente incólume à remodelação governamental de agosto de 1968, apesar de todas as críticas de que era alvo, tanto da parte do presidente da República, como de colegas do Governo, como finalmente, de camaradas das Forças Armadas (Gomes de Araújo não era Santos Costa mas parecia-se cada vez mais a Santos Costa). Não foi também por acaso que seria um dos poucos ministros que Marcello Caetano substituiu quando, a 27 de setembro de 1968, sucedeu a Salazar na presidência do Conselho. Fê-lo por considerar que Gomes de Araújo, independentemente dos seus méritos e deméritos como chefe militar, seria para o novo presidente do Conselho e para o “marcelismo” um obstáculo a uma necessária, como desejada, transformação das Forças Armadas num instrumento político leal e, portanto, “antisalazarista”. Mas voltando um pouco atrás, politicamente, em agosto de 1968, Salazar era o seguro de vida de Gomes de Araújo e, em boa medida, o general era o seguro de vida do presidente do Conselho. Substituído aquele, o ministro da Defesa tinha que sair do Governo porque não só ninguém o defendia como por todos era atacado. Desde o presidente da República a “salazaristas” como Franco Nogueira, passando, naturalmente, pelos “marcelistas”, todos desejavam vê-lo afastado como ministro da Defesa. Os outros ministros em pastas-chave que sobreviveram à remodelação de 19 de agosto foram Franco Nogueira no Ministério dos Negócios Estrangeiros e Silva Cunha no Ministério do Ultramar. Eram personalidades cuja fidelidade política a Salazar era inquestionável (tanto quanto qualquer fidelidade política o pode ser), embora ambos ambicionassem substituí-lo. Porém, e por um conjunto de circunstâncias alheias a Marcello Caetano, nomeadamente a proteção que beneficiavam do presidente da República, acabaram por permanecer à frente das respetivas pastas.

Finalmente, sublinhe-se que embora houvesse no Verão de 1967 um problema político na área da Defesa, e sendo certo que esse problema envolvia, mesmo que apenas indiretamente o titular da pasta, Salazar não se sentiu obrigado a resolver imediata e isoladamente este problema. Apenas um ano mais tarde agiu e avançou para a remodelação que envolveu outros departamentos do Governo, fossem eles civis ou militares (os ministros do Exército – um sério adversário de Gomes de Araújo – e da Marinha, ao contrário do ministro da Defesa, foram sacrificados porque para Salazar não podia ser de outra maneira).

“[…] haverá crise governamental em breve. Tão depressa me parece que sim – como não”

[Franco Nogueira, op. cit., pp. 281-282]

Pelo menos entre agosto de 1967 e agosto de 1968, multiplicaram-se os rumores sobre quando e como se faria a remodelação; sobre quem sairia e entraria no Governo; ou as consultas informais feitas por conselheiros políticos de Salazar a notáveis do regime, a membros do Governo ou a candidatos a membros do Governo, sobre quem deveria sair do Executivo, quem para ele devia entrar, ou, até, transitar de pasta. Esta conduta antecedeu quase todas as remodelações feitas desde 1944 o que parece indicar aquilo que tanto podia ser uma cortina de fumo lançada ciclicamente por Salazar e pelos seus conselheiros mais próximos para avaliarem a situação política e o comportamento de atuais ou putativos futuros membros do Governo, como para criarem dificuldades àqueles que, no Governo e/ou no regime, quotidianamente conspiravam com os propósitos mais variados mas inerentes ao combate político. De qualquer modo, esta realidade tornou evidente, ao menos no Verão de 1967, que não apenas membros do Governo na área militar mas, também, na esfera civil, seriam substituídos. Não sendo possível determinar em que termos as notícias postas a correr sobre uma inevitável “crise ministerial” que conduziria a mudanças no Governo condicionaram o comportamento de muitos, ou de alguns, dos seus membros dentro e fora do Executivo, o que parece ser verdade é que as crises ministeriais prolongadas e os rumores recorrentemente tornados públicos de que uma remodelação governamental era inevitável, apenas faltando saber quando ocorreria e quem afetaria, reforçavam o poder real e simbólico do chefe do Governo durante o período prolongado de indecisão que precedia o publicação da remodelação em Diário do Governo.

Marcello Caetano, por exemplo, aquando da remodelação de 1950 criticou Salazar por arrastar os processos de escolha de novos ministros. Como esse arrastamento, aparentemente sem razão, caracterizou muitas outras remodelações, aquela crítica aplica-se a todas elas. Caetano considerava que os atrasos, contradições e hesitações paralisavam setores do Governo e da Administração Pública, desmotivavam ministros no exercício de funções e dificultava o recrutamento de novos membros do Executivo. Em parte, esta leitura dos factos feita por Marcello Caetano corresponde à verdade. Porém, aquele que foi o sucessor de Salazar parecia não perceber que estes períodos prolongados de indecisão que fizeram parte da vida política entre 1944 e 1955 e, depois, em 1968, existiam não para servir o regime ou o País, mas para fortalecer o poder de Oliveira Salazar, pôr em evidência as suas qualidades políticas e, sobretudo, o seu papel de árbitro de fações e de personalidades conflituantes. Ou seja, justificavam e legitimavam politicamente Salazar, mesmo quando recuou ou alterou nomeações à última hora, como sucedeu na remodelação de 1947.

Estes períodos prolongados de indecisão que fizeram parte da vida política entre 1944 e 1955 e, depois, em 1968, existiam não para servir o regime ou o País, mas para fortalecer o poder de Oliveira Salazar, pôr em evidência as suas qualidades políticas e, sobretudo, o seu papel de árbitro de fações e de personalidades conflituantes. Ou seja, justificavam e legitimavam politicamente Salazar.

Recorde-se que a partir de 1944 apenas duas importantes remodelações governamentais foram resolvidas rapidamente tendo em conta os padrões do “salazarismo”. A primeira teve lugar no Verão de 1958 e resultou da crise política ocorrida no seio do regime após as eleições presidenciais de junho de 1958, virtualmente muito mais importantes por afastarem Craveiro Lopes da chefia do Estado do que por terem demonstrado a popularidade de Humberto Delgado e a incapacidade que o regime teria para disputar com êxito eleições verdadeiramente livres e justas. A segunda, sui generis, ocorreu na Primavera de 1961, conheceu várias fases, podendo-se alvitrar que só ficou concluída em dezembro de 1962 quando Salazar foi substituído pelo general Gomes de Araújo como ministro da Defesa e Adriano Moreira deu o seu lugar a Peixoto Correia à frente do Ministério do Ultramar, pasta para a qual fora nomeado em abril do ano anterior.

A remodelação iniciada na Primavera de 1961, recorde-se, foi consequência direta e imediata do fracasso da “abrilada” e, embora menos, dos acontecimentos político-militares ocorridos em Angola em fevereiro e, sobretudo, março de 1961. Portanto, quando não dependiam da sua vontade, as crises políticas que impunham remodelações do Governo resolviam-se rapidamente (ou tão rapidamente quanto possível). Embora vitais, estas remodelações não tinham para Salazar, nem podiam ter, o propósito de todas as outras: dividir e diminuir o poder dos outros, reforçando, se possível na mesma proporção, o seu poder. Ora a remodelação de 19 agosto de 1968 foi remodelação feita à sua medida, satisfazendo os seus propósitos.

“[…] ou se faz agora […] ou nunca mais se faz”

[Oliveira Salazar na reunião de Conselho de Ministros de 10 de julho de 1968, in Franco Nogueira, op. cit., p. 306]

No Conselho de Ministros realizado no dia 10 de julho de 1968, foi aprovada a construção da barragem de Cabora-Bassa em Moçambique. O assunto vinha-se arrastando naquele órgão havia um par de meses. O País, o regime e o Governo encontravam-se divididos sobre se se devia avançar, ou não, para a construção da maior barragem e centro de produção de energia hidroelétrica na África Subsaariana. A obra tinha grandes implicações no plano técnico, económico, financeiro e político-militar. Se os ministros da Economia e das Finanças, Correia de Oliveira e Ulisses Cortez, se terão pronunciado naquela reunião do Conselho de Ministros contra a construção, os ministros dos Negócios Estrangeiros (Franco Nogueira) e do Ultramar (Silva Cunha) terão apoiado incondicionalmente a sua construção, desvalorizando os custos económicos e financeiros do projeto e sublinhando os ganhos políticos. Gomes de Araújo, por seu lado, terá afirmado que as Forças Armadas possuiriam meios para assegurar a defesa do vasto perímetro dedicado à construção da barragem, proteger as colunas motorizadas de abastecimento da obra e, mais tarde, garantir a segurança da barragem e das linhas de alta tensão que levariam a energia elétrica produzida de Moçambique até à África do Sul. Salazar encerrou a discussão afirmando que ou bem que a barragem se construía “agora, neste preciso momento, ou nunca mais se faz[ia].” E porquê? Porque naquela conjuntura havia um cliente, a economia sul-africana, para a energia hidroelétrica produzida em Cabora-Bassa. Uma vez que a economia de Moçambique, visto o seu atraso, tardaria décadas em ter capacidade para consumir a energia produzida em Cabora-Bassa, havia que aproveitar a disponibilidade e o compromisso demonstrados pela África do Sul no momento em que se manifestaram e como se manifestaram.

Lusa/LUSA

Porém, erguer aquela barragem tinha razões e consequências tão ou mais importantes do que as que teriam sido aventadas por Salazar na reunião do Conselho de Ministros de 10 de julho. Do ponto de vista internacional, construir um empreendimento como o de Cabora-Bassa pretendia dar um sinal inequívoco de que o Estado português, e não apenas o Governo ou o regime, continuariam comprometidos com o princípio e a prática de preservar a soberania portuguesa nas suas “províncias ultramarinas”. Mas a construção de Cabora-Bassa não pretendia comprometer apenas Portugal com o projeto e, portanto, com a intenção, de permanecer em África (ou, pelo menos, em Moçambique). Envolvia nesta escolha a África do Sul e, desejavelmente, importantes interesses económicos e financeiros de grandes empresas internacionais que financiariam e edificariam a barragem e um conjunto amplo de outras infraestruturas a jusante e a montante que eram necessárias para a produção e distribuição de energia hidroelétrica. Pensava-se em Lisboa, que estes interesses económicos, dada a dimensão do projeto, poderiam, ou iriam, colaborar com as autoridades portuguesas e moçambicanas no esforço de convencer governos e opiniões públicas acerca dos méritos da “política colonial” portuguesa.

Mas é do ponto de vista da política interna que a decisão de construir a barragem deve ser considerada verdadeiramente importante e decisiva. Em primeiro lugar porque teve implicações no rumo, no ritmo e, depois, nas soluções encontradas para remodelar o Governo no mês de agosto. Uma vez tomada aquela decisão, algumas figuras destacadas do Estado Novo, a começar por Salazar, que defendiam uma política “ultramarina” cautelosa, ou conservadora, assente numa estratégia reformista de pequenos passos e que apenas a médio-longo prazo equacionava a possibilidade de uma autodeterminação dos territórios e populações “coloniais”, presumiram que decidida a construção da barragem seria virtualmente impossível, a partir do interior do regime, e numa conjuntura pós-Salazar, mudar radicalmente a política “colonial”.

Esta perceção daquela que seria a evolução política do regime não só no curto mas também no médio-prazo, nomeadamente quanto à questão “colonial”, permitia que, em primeiro lugar, a remodelação governamental de 19 de agosto se consumasse recorrendo, ainda que não exclusivamente, a um pequeno núcleo de ministros rotulados de “marcelistas”, mais jovens, com ideias mais “avançadas” em ministérios como os das Finanças e do Interior, ao mesmo tempo que reforçava a possibilidade de a sucessão de Salazar se poder fazer de maneira relativamente tranquila, abrindo assim a possibilidade para que Marcello Caetano sucedesse a Salazar, não pondo em causa a continuidade do regime, um conjunto de políticas que se consideravam ser a pedra angular daquele, nomeadamente na esfera “ultramarina” e, finalmente, abrindo a porta, senão a uma conciliação do “marcelismo” e dos “marcelistas” com os restantes setores e personalidades do Estado Novo, pelo menos a uma situação de cooperação entre personalidades e setores desavindos.

Ainda que Salazar nunca tenha pensado retirar-se pelo seu próprio pé da presidência do Conselho, a remodelação governamental de 19 de agosto de 1968 pretendeu criar condições para fortalecer e refundar o regime através, por um lado, de uma tomada de decisão que pretendia impor aquilo que Portugal também devia ser a curto e a médio prazo geopoliticamente e, por outro, propondo a reconciliação das famílias e personalidades políticas da “situação”.

A nomeação, em junho de 1968, do “marcelista” Baltazar Rebelo de Sousa para governador-geral de Moçambique, onde iria ter um papel ativo na supervisão da então já prevista, mas ainda não formalmente decidida, construção da barragem de Cabora-Bassa, foi um elemento mais do que simbólico deste seu propósito. Portanto, ainda que Salazar nunca tenha pensado retirar-se pelo seu próprio pé da presidência do Conselho, a remodelação governamental de 19 de agosto de 1968 pretendeu criar condições para fortalecer e refundar o regime através, por um lado, de uma tomada de decisão que pretendia impor aquilo que Portugal também devia ser a curto e a médio prazo geopoliticamente e, por outro, propondo a reconciliação das famílias e personalidades políticas da “situação”.

Recapitulação e síntese muito breves

A última remodelação governamental conduzida por Oliveira Salazar foi um acontecimento político da maior relevância, com causas diversas e propósitos variados. Mas por trás desta realidade, uma outra emergia com dois objetivos claríssimos que dependiam essencialmente do facto de para o ainda chefe do Governo ser evidente que a sua substituição estava próxima. Que objetivos eram esses? Em primeiro lugar, definir e impor um rumo, ou uma estratégia política, ao regime e ao País que sobrevivesse à sua saída de cena, sendo que esse rumo, ou estratégia, dependiam da decisão de construir a barragem de Cabora-Bassa tomada em reunião de Conselho de Ministros de julho de 1968. Em segundo lugar, reformar o Governo e a governação nele e nela incorporando “marcelistas”, “independentes” e “salazaristas”. Fê-lo por estar convencido de que só assim seria possível refundar e reforçar o regime através da reconciliação, ainda que mais formal do que real, das suas diferentes sensibilidades e personalidades. É claro que a prazo, e como se sabe, este projeto fracassou. Mas ao historiador, e não só, também compete identificar e analisar as intenções, as suas causas e os seus propósitos.

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