São 10h58, dois minutos antes da hora marcada. Numa das mesas da esplanada do Quiosque do Oliveira, no Príncipe Real, em Lisboa, onde tantas vezes se instala, Miguel Guilherme tem uma chávena já vazia à sua frente. Levanta-se para me cumprimentar. “Quer um café?”, pergunta. Sentamo-nos enquanto explica que vive ali desde janeiro de 2006. Deixou o Chiado, na Rua da Emenda, e instalou-se num bairro mais calmo de Lisboa onde ainda é possível “conhecer os comerciantes, ter uma farmácia e um café”.
Passa por aqui todos os dias, tem uma rotina que cultiva e lhe dá estabilidade e, ao longo dos seus 65 anos, foi encontrando forma de ter “momentos de paz, em que não se faz nada. Ou parece que não se faz nada, mas estamos a sarar por dentro algumas coisas.”
Não foi exatamente o que aconteceu nos últimos meses, enquanto esteve a gravar os seis episódios de Operação Papagaio, o novo capítulo dos Podcast Plus do Observador, este sobre um grupo de surrealistas e revolucionários que elaboraram um plano louco para derrubar Salazar — até um deles ser assassinado pelos companheiros.
“Eu sabia algumas coisas, mas não conhecia a história. Parece até que há uma grande ingenuidade, mas uma grande coragem ao mesmo tempo. O Gavroche é, para mim, o personagem mais interessante e não ficou na história. É aquele aventureiro, filho único, pais ricos, que foge ao molde e acaba em Paris num circo. Vai decaindo. Tocou-me imenso porque ele é o motor daquilo tudo”, explica.
Amplamente reconhecido graças aos papéis em séries como Conta-me Como Foi, filmes como Filha da Mãe ou às representações em teatro de obras de William Shakespeare, Samuel Beckett ou Bertolt Brecht, a sua voz é inconfundível. “Isso é porque já chateio as pessoas há muito tempo.”
Miguel Guilherme, assim é conhecido profissionalmente (Miguel Guilherme Guerra Neves de Almeida, nome de batismo), nasceu em Lisboa a 15 de novembro de 1958. As memórias mais antigas e claras remontam aos três ou quatro anos, quando vivia no Areeiro. “Lembro-me perfeitamente de, no Natal, o meu pai ter a mania de apanharmos aqueles autocarros double-deckers e de subirmos ao segundo andar para ver as luzes de Natal no Chiado. O meu pai nunca andava de autocarro, mas achava graça àquilo.”
Com o pai também ia ao Jardim do Campo Grande andar de barco no lago. Anos mais tarde, chegou a praticar remo no Clube Náutico.
Foi o primeiro de três filhos. Do irmão do meio não chega a ter dois anos de diferença e é quatro anos mais velho do que a irmã. Quando eram miúdos, a margem de idades parecia-lhes enorme. “Coitadinha da minha irmã, passou ali muito tempo sozinha, mas também era lixada. Tinha de se impor, claro.” Quando se juntavam os primos, as contas ficavam ainda piores: cinco rapazes e apenas uma rapariga. “Depois, quando crescemos, isso acabou por lhe dar um certo estatuto, ela era a coqueluche.”
O verão era quase todo passado na Arrábida, onde dois tios tinham casas e terrenos. “Atravessávamos a serra sozinhos, íamos ao Portinho da Arrábida. Estávamos em casa à hora do jantar e deixavam-nos andar. Hoje em dia seria impensável. Mas, naquela altura, se ficássemos em casa, destruíamos tudo, tínhamos de ir para a rua.
Aos sete anos, nos Olivais, ia para a escola a pé com o irmão. No percurso de quilómetro e meio, por vezes “lá vinha porrada”: “Às vezes era para nos roubarem, mas muitas vezes era só porque sim. Mas, se eu chegasse a casa com um olho negro, ninguém se importava muito. Íamos ao médico ver se estava tudo bem e a coisa ficava por ali.” Nos Olivais misturavam-se muitas classes sociais, “umas mais abastadas e outras bastante pobres”. “Quando éramos crianças andávamos à pancada, mas aos 15 anos já éramos todos amigos.”
Por essa altura já Miguel Guilherme tinha entendido e aceitado a sua situação familiar. Os pais separaram-se quando tinha seis anos, um “estigma brutal” nos anos 60. “Nós [os irmãos] sobrevivemos no meio daquela instabilidade. Não havia qualquer tipo de cuidado com a estabilidade emocional das crianças naquela altura — e éramos de classe alta.”
As dúvidas e a incompreensão eram muitas, mas Miguel e os irmãos não chegavam a verbalizá-las. “Tínhamos medo de questionar. Ninguém nos batia, não havia violência física, mas uma criança estava muito sozinha no meio daquilo. No meu caso foi bastante traumático.” Na escola escondia o que se passava por vergonha e porque não conhecia ninguém na mesma situação.
Ficaram a viver com a mãe, embora o pai continuasse presente. “Mais para a frente, a coisa estabilizou mas, no início, houve consequências financeiras. A minha mãe era doméstica, não sabia fazer nada. O papel das mulheres era ficar em casa, era assim e não se revoltavam, eram totalmente dependentes dos homens. Mulheres com carreira eram mal vistas. Mesmo na vizinhança, havia respeito cara a cara, mas desdém pelas costas.”
O pai refez a vida amorosa, mas a mãe não. “Até porque não era bem visto, era uma sociedade muito preconceituosa.”
Aos 13 anos tinha ideias claras sobre política. “Ou, pelo menos, tão claras quanto um miúdo dessa idade pode ter. Sabia que vivíamos numa ditadura e queria ardentemente que isso acabasse.” Chegou a ser detido por colar cartazes da CDE (Comissão Democrática Eleitoral), mas era um militante discreto. “Nunca consegui pertencer a um partido político porque era incapaz de seguir o guião. Apoiava as forças de extrema esquerda mas com uma grande ignorância. Achava que eram melhores do que o Partido Comunista, mas a maioria era louca e oportunista.”
No pós 25 de Abril, com uma explosão de novos partidos e ideais, as opções eram inúmeras. “Tinha simpatias trotskistas, achava que eram uns gajos porreiros porque pediam a libertação da mulher, a liberdade sexual, fumar ganzas, eram mais soltos.”
Nessa altura, só respirava política — tanto que apenas se aventurou uma vez com amigos numa ida a uma discoteca aos 14 anos e só voltaria à vida noturna aos 26. A sua carreira podia ter seguido por aí, mas nunca se filiou num partido. “Talvez tivesse uma rebeldia de pensamento que não me permitisse pertencer a um.”
Na escola era “médio/mau”, mas em Letras era bom aluno. Aos 15 anos sabia que iria para Letras ou para Germânicas, acabou em Antropologia. “Porquê essa escolha? Boa pergunta. Pergunto-me isso todos os dias.” Frequentou o curso, na Universidade Nova, em Lisboa, durante dois anos. Nessa altura já fazia teatro e era impossível conciliar as duas coisas. Essa paixão, que acabaria por ser a sua carreira, descobriu-a em 1979.
“Soube que, no Teatro da Comuna, iam fazer audições para uma escola que produziria depois atores para entrarem no grupo. Fizemos umas provas, porque havia muita gente a querer entrar, e eu fiquei. Éramos uns 30 e depois acabei por entrar no grupo como profissional.” Até aí, nunca tinha feito nada do género, nem sequer teatro amador. “Na altura, estava a estudar para um exame brutal [que juntava exames a três cadeiras, dois exames num ano] e foi quando soube disso. Pensei que seria bom para conhecer pessoas, era uma espécie de escape.”
Quando deixou a faculdade, estava tão deslumbrado com a representação que não mediu bem a instabilidade da profissão. “Os primeiros seis ou sete anos foram muito duros, ganhava muito pouco dinheiro.” O primeiro papel remunerado apareceu foi quando entrou na Comuna, uma substituição na peça Um Homem é um Homem, de Brecht. “Foi em 1979. Ganhava sete contos por mês. Não tinha dinheiro para nada.”
Ao longo da carreira no teatro fez O Dragão, de de Eugène Schwartz; À Espera de Godot, de Samuel Beckett; Vai Ver se Chove, de George Courteline; ou, ainda no ano passado, A Peça Para Dois Atores, com Luísa Cruz. A estabilidade financeira chegou graças à publicidade, onde fazia voz off, mas só aos 28 anos é que conseguiu sair da casa de família e ir viver sozinho. “Não havia casas para alugar. Aí é que surgiu a grande ideia dos empréstimos bonificados. Em vez de alugar, as pessoas compravam. Aluguei uma casa em Xabregas, ao pé de uma oficina e em frente ao cemitério, por 30 contos por mês, e mesmo assim foi uma sorte. Era uma brutalidade, vivia aflito.”
Nunca pensou desistir, mesmo tendo voltado à faculdade aos 31 anos. Aí percebeu que devia ter ido para História, mas não teve “vontade de ferro” para conciliar estudos e vida profissional.
Um anúncio de eletrodomésticos nos anos 80 abriu-lhe as portas para uma série de colaborações com Herman José: Humor de Perdição, Herman Enciclopédia ou Herman 98, por exemplo, Ainda assim, nunca sentiu que lhe tivessem colado o rótulo de ator cómico. “Criamos rótulos para as coisas para falar delas mas eles dissipam-se na prática. O que interessa é a qualidade, não tanto o género.”
Nunca sentiu angústia com a possibilidade de não ter trabalho no mês seguinte. As inquietações sempre foram outras. “Por exemplo, aparecerem-me coisas que eu não achava interessantes, mas tinha de as fazer. Ou o facto de a carreira ter altos e baixos, ser considerado bom ou não. Houve momentos em que fui esquecido, estava um bocado no limbo, apesar de estar a fazer uma data de coisas.”
A carreira de ator é cíclica e aceitar isso exigiu aprendizagem. “Os atores, quando chegam aos píncaros, acham que vão ficar lá sempre, o que é uma armadilha gigantesca. Cheguei a achar isso.” Aprendeu a deixar o ego à porta dos trabalhos e esse exercício é muitas vezes solitário. “Um ator, quando já é minimamente conhecido, ninguém lhe diz nada, ninguém dá conselhos. Na juventude discutíamos noites a fio sobre o que era ser ator, isso era formador. Com o tempo as pessoas começam a ficar mais cínicas e a atenção é desviada para outras coisas.”
Já o admitiu várias vezes: não consegue separar a vida pessoal da profissional. Porém, garante que mesmo as personagens mais atormentadas que fez nunca lhe tiraram o sono. “Nunca caí na armadilha de achar que era aquela pessoa, isso é ridículo.”
Ainda assim, para preparar a personagem do filme Quando Troveja (1999) percebeu que estava a beber demasiado. “Mas não fiz de propósito. O realizador, que era na altura alcoólico, não bebia e eu bebi imenso. Na estreia estava bêbado, mas nunca filmei bêbado. Fazia experiências, whisky, vodka, bebia a conversar e quando dava por mim estava bêbado.”
Drogas e álcool eram hábitos comuns nos sets. “Os anos 80 e 90 eram caóticos. Era um terror para os encenadores e realizadores, hoje em dia seria impensável trabalhar assim.” Porém, no Teatro da Comuna havia regras de ouro, era “tipo mosteiro, não podia ir a discotecas”. Mas frequentava bares: Frágil, Três Pastorinhos, Majong, no Bairro Alto [onde chegou a morar] que era o ponto de encontro de muitos atores. Houve uma fase em que nunca ia logo para casa quando saía do trabalho. “Deitava-me às quatro ou cinco da manhã mas tinha uma rotina, as coisas não eram descontroladas.”
Como é que nunca se deixou levar pelos excessos, que estavam mesmo à sua frente? “Sempre fui muito careta. É interessante estar na fronteira, estar a ver o outro lado, mas nunca escorreguei para uma coisa na qual não tivesse hipótese de voltar para trás.”
Teve papéis que não conseguiu dominar — “é terrível perceber que falhamos um personagem e ter a plena noção quando estamos a interpretá-lo” —, mas também foram esses que lhe deram mais ferramentas para corrigir e fazer melhor. Teve outros que lhe deram imenso gozo. Não quer nomear nenhum, todos fazem parte da sua história.
Diz que ainda quer fazer dois ou três bons papéis até ao fim da carreira, mas acha difícil. “Encontrar os papéis certos, que funcionem na perfeição, não é fácil. Até porque neste meio é tudo um trabalho de equipa, com encenadores, realizadores, elenco, equipa técnica. Depende de muita coisa. Não é um trabalho solitário como um escritor que escreve um livro sozinho, por exemplo.”
O lado mais pessoal e familiar está arrumado numa gaveta com muitos capítulos que gosta de manter privados. Nunca teve filhos, mas teve enteados, e histórias felizes. Vive rodeado de livros e na pandemia teve de construir uma estante para acolher os mais de 300 títulos que comprou nessa fase. São agora cerca de 1600, organizados por temas e, dentro dos temas, por ordem alfabética.
“Leio vários ao mesmo tempo. Agora tenho em mãos o Crime e Castigo [Fiódor Dostoiévski], que li quando era mais novo, e A Nossa Família [de Rebecca Wragg Sykes], um livro sobre os neandertais.” Não passa os livros a outra pessoa quando os termina porque é um colecionador. Sabe, no entanto, a quem vai deixá-los como herança. “Quando morrer, estou-me nas tintas, mas a única coisa que me faz confusão são os livros, o que também é um bocado parvo. Temos de gozar as coisas à bruta enquanto cá estamos.”
Continua a ter respeito pela religião católica, mas diz que não tem fé. “Tive a epifania de voltar à fé aos 48 anos e tentei durante alguns anos, aprendi muitas coisas, mas cheguei à conclusão de que não acreditava em coisas essenciais que eram defendidas.”
Quatro cafés, vários cigarros (hábito que não conseguiu largar, mas agora com tabaco aquecido), uma chuva miudinha e mais de duas horas depois, a conversa já passou pela capacidade de lidarmos com a finitude da vida, as obras de Michel de Montaigne, a vida em cenários de guerra, séries, filmes de Wim Wenders e o pó de estrelas (referido por Shakespeare) de que seremos todos feitos. Tudo para desembocarmos nos catos, um tema que parece completamente desfasado de tudo o resto — e é mesmo. Ou, pelo menos, era até à pandemia, já que Miguel Guilherme não tinha uma única planta em casa.
De repente, por um acaso, como descreve tantos acontecimentos da sua vida, comprou um cacto. Depois comprou outro e quis começar a vender. Na empresa que já tinha, juntou a função de florista. Em dois ou três viveiros compra catos como retalhista e depois vende em mercados — no Príncipe Real ou na Estrela, por exemplo.
“No primeiro mercado, vendi 30€.” Ainda não conseguiu recuperar o investimento, mas está perto, garante. Só vende cactos de que gosta realmente. “Envasados, porque os vasos também fazem parte da estética, e os cactos podem ir dos 10€ aos 160€, porque já não vendo mini cactos.”
De certa forma, está a cumprir um sonho de criança, quando queria ser florista ou talhante. A segunda opção fascinava-o porque adorava ver os talhantes a cortar a carne, mas nem por isso gosta de cozinhar. Com os confinamentos começou a experimentar, mas “coisas básicas no forno, arroz ou massa”. Não é uma coisa que lhe dê prazer e muito menos lhe garanta descontração. Essa sensação consegue-a nos mercados onde é apenas o florista.
Aos 65 anos, Miguel Guilherme é organizado na forma como gere o dia a dia, precisa de uma rotina “para ter uma ilusão de segurança e controlo”. Isso, explica, dá-lhe espaço para ser criativo no trabalho. Diz que tenta não ter nostalgia em relação ao passado, mas o início da carreira de ator traz-lhes as memórias de “vibração e entrega totais, que também estavam ligadas ao contexto que se vivia na época”.
Não pensa na reforma, garante que um ator quer trabalhar até conseguir. Faz pilates e caminha para se manter ativo; está prestes a começar uma série da RTP, Finisterra; vai participar num filme de João Canijo no próximo ano; e pretende continuar a dedicar-se ao negócio dos catos sozinho. “Isto é um projeto muito pessoal”, explica.
Se quisesse, todas as semanas tinha mercados mas agora tem de se dedicar plenamente aos trabalhos de ator que tem entre mãos. Quer dizer, hoje não. Para já, a rotina continua no bairro do Príncipe Real. Depois do café no sítio do costume, dirige-se à farmácia, onde toda a gente o conhece. De jeans pretos, ténis brancos e óculos Ray-Ban, ninguém, tirando ele, lhe cola o rótulo de “careta”.