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"Abbey Road": há 50 anos os Beatles seguiam a caminho do fim

Esta sexta-feira é lançada a reedição do último álbum gravado pelos Beatles, um dia depois do aniversário redondo. João Bonifácio lembra um disco imperfeito, mas perfeitamente clássico.

Os mitos dizem que quando os quatro membros dos Beatles saíram das gravações de Abbey Road, lançado faz agora 50 anos, já não podiam ver-se à frente, que nunca na vida fariam outro disco juntos – esta foi a versão oficial durante muitos anos, corroborada pelos factos: Let It Be sairia depois de Abbey Road mas Let It Be já estava gravado; os Beatles, quando saíram de gravar Abbey Road, já sabiam que era o fim.

Só que há umas semanas, Mark Lewisohn, perito no quarteto de Liverpool, anunciou que não era bem assim. Lewisohn encontrou uma gravação de uma conversa entre John Lennon, Paul McCartney e George Harrison que demonstra que não era suposto que Abbey Road, cuja reedição sai esta sexta-feira, dia 26, fosse o seu último encontro em estúdio: os rapazes planeavam ainda mais um disco – ou até dois.

A cassete da conversa, gravada a 8 de setembro de 1969, só existe porque Ringo Starr não podia estar presente na reunião, de modo que os restantes três resolveram gravar-se e mandar a Ringo o registo da conversa. Lennon propõe novo disco com igual número de canções escritas por ele, McCartney e Harrison. McCartney, que está embriagado, diz que as canções de Harrison só recentemente melhoraram. Lennon diz que não pode haver mais más canções, o que é entendido como um ataque a McCartney; ainda propõe que escrevam um disco de Natal.

[“Here Comes the Sun”, na versão remisturada de 2019:]

Isto altera a forma como sempre se olhou para as últimas gravações dos Beatles – que eram vistas como uma espécie de statement artístico de quatro indivíduos no topo do mundo mas que já não podiam ver-se à frente. E agora, como é suposto olharmos para aquela que foi a maior banda de rock’n’roll do mundo?

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À data do lançamento, Abbey Road não se tornou instantaneamente num disco consensual – temos a ideia que a passagem da entidade Beatles pela Terra foi um passeio, gradualmente cada vez mais histérico, pela carpete vermelha da unanimidade, mas quando mergulhamos na história as coisas tornam-se mais complicadas: houve quem chamasse “complicado em vez de complexo” a Abbey Road, quem defendesse que as canções individualmente não eram extraordinárias, quem dissesse que lhe faltava chama.

Cinquenta anos depois, a reputação de Abbey Road cresceu e uma boa parte dos críticos e dos fãs mais recentes coloca-o ao lado do White Album, por exemplo. Mas as opiniões menos abonatórias da época são compreensíveis se pensarmos que só nos dois anos anteriores os quatro de Liverpool haviam editado Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band (1967), Magical Mystery Tour (1967), o White Album (1968) e Yellow Submarine (1969), sendo que os dois últimos são prodígios de invenção, pese embora, em ambos os casos, haja canções francamente abaixo do mito.

Foi provavelmente contra a ausência de invenção que os críticos se manifestaram, embora não seja correto dizer que não havia invenção em Abbey Road – o que não havia era tanta invenção declarada como nos dois discos anteriores, em que os Beatles não só manifestamente exploraram todas as valências que um estúdio podia trazer à pop como brincaram com a música que foram encontrando nas suas viagens pelo nosso lindo e então menos poluído (e menos quente) globo.

"Come together" é seguido por "Something" – Lennon e McCartney acreditavam que esta era a primeira grande canção escrita por George Harrison, mas isso dirá mais acerca da fragilidade dos egos dos compositores que do talento de Harrison.

Quando fizeram Abbey Road, os Beatles já não eram a mesma banda que havia composto “Love me do” – o que significa que se por um lado Abbey Road é um disco de canções, em que não há manifestações tão óbvias de avanço cultural por experimentação como havia em discos anteriores, a verdade é que essas canções já não se limitam a uma progressão de blues com uma melodia bonita por cima.

Um bom exemplo é “Carry that weight”, que abre logo com aquele espantoso refrão que dá, de imediato, lugar à secção de sopros, que – por sua vez – é substituída por um solo de guitarra antes de surgir o que poderia ser uma middle section de uma canção com uma estrutura convencional; arranjos sumptuosos varrem toda a canção, que não chega a acabar – simplesmente começa “The end” (a penúltima canção do disco). (“Carry that weight” está incluída no medley que ocupa quase todo o lado B.)

A melodia do refrão é convencional, cada elemento separado até pode não ter uma grande dose de invenção, mas a estrutura da canção reescreve as normas aceitáveis que ditam o que uma canção deve ou não ser. “The end” – onde se canta frase “And in the end, the love you take is equal to the love you make”, que se tornou famosa – também troca as voltas ao ouvinte, abrindo com guitarrada basta antes de acabar com a mais doce melodia.

O mais próximo que há de uma canção convencional está logo a abrir, em “Come together” – sendo que o tempo normalizou uma canção que vai dos blues à soul passando por guitarras glam. “Come together” é seguido por “Something” – Lennon e McCartney acreditavam que esta era a primeira grande canção escrita por George Harrison, mas isso dirá mais acerca da fragilidade dos egos dos compositores que do talento de Harrison.

[demo de “Somehing”, incluída nas edições especiais de aniversário, uma com dois CD, outra com quatro CDs e um blu-ray, uma terceira com três LPs:]

Que espanto de canção: uma simples balada lenta que no refrão se abre, num movimento de ascensão, antes de descer, sustentada na guitarra doce de Harrison. Mais à frente surgirá aquela que podemos definir como a mais perfeita das canções que não foram escritas por Brian Wilson: “Here comes the sun”, com os seus violoncelos a pairar sobre a melodia de guitarra, a sua voz doce, é do mais próximo que a humanidade chegou de se converter em mel.

Sei que apesar de já se terem passado quase cinco décadas do fim dos Beatles ainda há quem se chateie com comparações como a que fiz acima, por isso aqui vai: continuo a achar que no seu mais melódico, os Beatles nunca foram tão bons quanto os Beach Boys e no seu mais rockeiro e dançável os Beatles nunca foram tão nasty quanto os Rolling Stones; diminuir uns para engrandecer os outros é, obviamente, uma prática infantil, uma herança cultural de tempos menos sofisticados – mas é muito divertida, de modo que por enquanto vou continuar a praticá-la.

Goste-se mais destes ou daqueles, qualquer uma destas três bandas tem mais que material suficiente para ambicionarem a coroa de reis do rock’n’roll (e o que verdadeiramente impressiona é como as três bandas fizeram tanta música boa e inovadora em tão pouco tempo). Podíamos reduzir toda a abordagem vocal de Elliot Smith a “Because”, a oitava faixa de Abbey Road; a canção que se segue, “You never give me your money”, tem mais ideias e partes diferentes que muitas carreiras completas ao fim de décadas.

O que não significa que não haja canções, hum, incompreensíveis ou abaixo da fasquia, como “Sun king” ou “Maxwell’s silver hammer”. No caso de “Sun king” o que se passava na cabeça de John Lennon é simples de explicar: era heroína; quando Lennon se juntou aos seus colegas para a gravação de Abbey Road, a primeira coisa que ouviu foi “Maxwell’s silver hammer” – detestou-a de tal maneira que se recusou a participar na gravação. (Apesar de tudo, “Sun king” não é uma má canção, só chata, enquanto “Maxwell’s silver hammer” é melhor enquanto ideia do que enquanto resultado final.)

O ambiente no qual Abbey Road foi gravado não podia estar mais longe da camaradagem do início: Lennon agarrado, os quatro à cabeçada à conta das decisões que tinham de tomar em termos contabilísticos, fartos uns dos outros, tanto era o tempo que haviam passado juntos desde a juventude.

Sequiosos de harmonia, os Beatles pediram a George Martin que voltasse a produzi-los; ele aceitou na condição de poder produzi-los como antigamente: era ele quem decidia os arranjos. E é o classicismo dos arranjos que une canções (e aguenta todo o lado B) que, na génese, são muito diferentes umas das outras.

Onde não houve muita harmonia foi nas gravações – e, num ato que simboliza a hostilidade acumulada ao longo de anos, Lennon tentou bater em Linda McCartney, ou, pelo menos, assim reza a lenda. Isto não significa que só houvesse guerras; num ato de generosidade mútua, os quatro decidiram que o disco fosse mais democrático e Ringo Starr contribuiu com a sua segunda canção de sempre (“Octopus’s garden”, uma bela canção), enquanto Harrison contribuiu com duas canções.

McCartney também teve um ato de abnegação, ao criar, com George Martin, o medley que ocupa a maior parte do lado B do disco, e que é composto por pedaços de canções, incluindo “You never give me your money”, “Sun king”, “Mean mr. Mustard”, “Polythene Pam”, “She came in through the bathroom window”, “Golden slumbers”, “Carry that weight” e “The end”, numa tentativa de dar sentido a canções que não havia maneira de serem acabadas (e sem elas não havia disco).

O ambiente no qual Abbey Road foi gravado não podia estar mais longe da camaradagem do início: Lennon agarrado, os quatro à cabeçada à conta das decisões que tinham de tomar em termos contabilísticos, fartos uns dos outros, tanto era o tempo que haviam passado juntos desde a juventude. Um par de canções necessitariam posteriormente de intervenção não de engenheiros de som mas de advogados: “Come together” era, basicamente, “You Can’t Catch Me”, de Chuck Berry, desacelerado; “Something” pilhava uma canção de James Taylor (George Harrison tinha uma certa tendência para pilhar).

[“The End”, na versão remasterizada de 2009:]

Quando olhamos à distância, e com frieza, os discos nunca estão à altura do seu mito – com a exceção de Pet Sounds, dos Beach Boys, um disco tão prodigioso que não parece ter sido escrito por seres humanos. Abbey Road, por exemplo, tem duas canções muito acima de todas as outras (“Here comes the sun” e “Carry that weight”), um punhado de grandes canções e algum filler, como se dizia antigamente.

Mas também encerra um par de metáforas acerca do rock’n’roll e da própria época em que foi feito. Começa-se uma banda com os melhores amigos, as dificuldades aproximam-nos, anda-se com eles para todo o sítio e, passados uns anos, as pessoas cresceram, já não são adolescentes, têm individualidade, namoradas, é-se apanhado pela idade adulta, problemas de drogas, contabilidade, hipotecas.

O mundo inteiro imaginava os Beatles como quatro rapazes unidos, inseparáveis – mas eles perdiam horas em reuniões com advogados e contabilistas e só queriam distância uns dos outros. As vidas pessoas estavam cheias de negrume e alguns comportamentos não só seriam hoje inaceitáveis como já o eram então.

A forma como olhamos para os anos 60 também encontra em Abbey Road o seu contraditório: durante anos foi apelidada de época da paz e do amor, mas a paz e o amor escondiam assassinatos, guerras, um sem fim de sexismo, vidas destruídas por abuso de drogas. A paz e o amor são apenas um período transitório, antes de os seres humanos voltarem ao seu estado natural: andarem à cabeçada uns com os outros. Quando vemos paz e amor numa época inteira isso só significa que não olhámos com atenção.

Quando Lennon entrou na reunião mencionada em cima ainda acreditava que os Beatles iam continuar; quando saiu da reunião estaria provavelmente tão determinado a ir embora que uns dias depois foi mesmo – mas como havia contratos em vigor os quatro combinaram não dizer nada ao mundo.

Podemos não gostar de todas as canções deles, podemos parar de os imaginar como seres perfeitos, sempre com um sorriso nos lábios. Houve mais música, mais discos, igualmente imaginativos, até mais adultos, mas que não tiveram tanto marketing. Exceto quando "Here comes the sun" começa a tocar. Aí eles são perfeitos – e nós ficamos com um sorriso nos lábios.

O que significa que aqueles quatro rapazes na capa icónica, a atravessar uma rua na passadeira, todos na mesma direção – aqueles quatro rapazes deviam ter sido fotografados num cruzamento, a coçar a cabeça, meio perdidos, cada um a pensar seguir um rumo diferente. Mas se a capa mente, o disco não: é um disco de quatro cabeças que aprenderam a pensar por si, em que a furiosa energia identitária da juventude deu lugar às dúvidas e ao negrume da idade adulta.

E nesse sentido, Abbey Road é dos melhores exemplos que temos de como a realidade é sempre menos cor-de-rosa do que os contos de fadas que nos contam. A sua diversidade e dispersão são um elogio à dificuldade que cada ser humano sente de seguir o seu caminho sem largar aquilo que outrora amámos – há algo de comovente nisso, algo de comovente nesta tentativa de ainda fazer um disco de grupo mas ao mesmo tempo de colocar algo de seu nesse processo.

E sinceramente, acho que cinquenta anos depois já é bem mais que altura de pararmos de olhar para os Beatles com a complacência com que olhámos: podemos não gostar de todas as canções deles, podemos parar de os imaginar como seres perfeitos, sempre com um sorriso nos lábios. Houve mais música, mais discos, igualmente imaginativos, até mais adultos, mas que não tiveram tanto marketing.

Exceto quando “Here comes the sun” começa a tocar. Aí eles são perfeitos – e nós ficamos com um sorriso nos lábios.

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