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Tudo começou num bar. Era uma noite fria de fevereiro em Bruxelas quando o jornalista Angus Walker, da televisão britânica iTV, foi para o bar do hotel onde estava hospedado, acompanhado do seu repórter de imagem. Ali estava também Olly Robbins, o principal negociador de Theresa May para o Brexit, a tomar uma bebida com dois colegas. Aquilo que o jornalista ouviu Robbins dizer parece, hoje, premonitório: “É preciso fazê-los acreditar que na última semana de março (…) uma extensão é possível, mas que se eles não votarem a favor do acordo o adiamento será longo.”
À altura, as interpretações dividiram-se: estaria Robbins a fazer bluff, para ser ouvido e influenciar assim o sentido de voto de deputados? Ou teria sido a conversa um descuido, tornando público a verdadeira estratégia do Governo de Theresa May?
Até hoje, não sabemos. Aquilo que se sabe é que, depois desta semana de votações intensas, o Reino Unido está precisamente nesse ponto. Irá tentar aprovar o acordo da primeira-ministra pela terceira vez na próxima semana — se o conseguir, pede apenas uma curta extensão até ao final de junho para ratificar legalmente os documentos; se falhar, irá pedir uma extensão do Artigo 50 mais longa, decretando assim um adiamento do Brexit com duração indeterminada.
A UE terá uma palavra a dizer em qualquer um dos cenários, já que os líderes europeus terão de aceitar os respetivos pedidos. Mas May fica mais próxima do que nunca de aprovar o seu acordo — o mesmo que já foi chumbado duas vezes pelo Parlamento, por causa do backstop, e que ressuscita agora dos mortos. Tal como Robbins previu, há cerca de um mês, num bar em Bruxelas.
“Vamos sair da UE a 29 de março”. As 50 vezes em que “May mentiu” sobre a saída
Talvez fosse este o plano desde que o acordo de May foi adiado em dezembro (por ser provável o seu chumbo) e depois chumbado de facto a primeira vez em janeiro. Ciente de que Bruxelas não aceitaria renegociar o backstop de forma alguma, a equipa de May pode ter percebido que precisaria de levar o processo ao limite, perigosamente perto do 29 de março, para conseguir impor um ultimato: o acordo da primeira-ministra ou o adiamento, correndo o risco de pelo caminho afastar de vez o Brexit através de um segundo referendo ou de eleições antecipadas.
Essa seria a forma de evitar um no deal pela certa. Pelo menos foi esse o entendimento da jornalista do Independent, Jane Merrick, logo em fevereiro, quando escreveu que “se não houver acordo a 29 de março, pode ser uma catástrofe. Os funcionários públicos, incluindo Robbins, sabem isto. A primeira-ministra sabe isto. E portanto irão prevenir que a realidade de um no deal aconteça. É por isso que Robbins está certo quando diz que a escolha será entre o acordo de May (…) ou um adiamento do Brexit.”
Se a estratégia foi concertada, pode ser entendida como um golpe político maquiavélico, mas brilhante, que revela capacidade de ver muitas jogadas à frente como qualquer bom jogador de xadrez. Mas também pode significar uma realidade inconveniente: a de que Theresa May mentiu deliberadamente durante muito tempo, ao afirmar repetidamente que o Reino Unido iria sair da UE a 29 de março, custasse o que custasse. Isso mesmo apontou o eurocético Nigel Farage no Twitter na noite de quinta-feira, falando em 50 vezes “que May mentiu”.
50 times @Theresa_May promised Britain would leave the EU on March 29th.
Our politicians have lied to us again and again.
This is the final straw.
Join us: https://t.co/QXOkndZhtjpic.twitter.com/jcT4GlJdvh
— Nigel Farage (@Nigel_Farage) March 14, 2019
Câmara dos Comuns aprovou adiamento, mas oito ministros votaram contra (incluindo o ministro… para o Brexit)
A realidade nua e crua é esta: a probabilidade de o Reino Unido sair agora a 29 de março está reduzida — embora não totalmente afastada, como já explicaremos adiante. O que significa que as 50 afirmações de May não irão provavelmente confirmar-se.
Isto porque a moção aprovada esta quinta-feira na Câmara dos Comuns afirma claramente que defende uma de duas situações: pedir uma curta extensão do Artigo 50, adiando a saída para 30 de junho, no caso do acordo de May ser aprovado para a semana; ou pedir uma extensão mais longa, em caso de chumbo.
Esta proposta foi aprovada (412 votos a favor, 202 contra), mas contou com oposição firme não só de vários deputados conservadores como de mais de 20 membros do Governo de May, incluindo oito ministros, que furaram a disciplina de voto. Um deles foi nada mais nada menos do o próprio ministro para o Brexit, Stephen Barclay, que horas antes da votação tinha feito um discurso perante a Câmara, em nome do Executivo, pedindo para que a proposta fosse aprovada.
Os Comuns podem ter votado para adiar o Brexit, é certo, mas o caos e as divisões internas continuam a ser imagem de marca de todo o processo. Seja entre os conservadores, seja no resto do Parlamento. Exemplo disso foi o da emenda da independente Sarah Wollaston (que abandonou os tories em fevereiro) proposta esta quinta-feira, que defendia um segundo referendo. Foi chumbada de forma esmagadora (334 vs. 85) porque o Partido Trabalhista decidiu abster-se, por não considerar correto o timing da proposta.
Reino Unido vai pedir adiamento. E agora?
Se o caos e as divisões internas são imagem de marca do Brexit, a incerteza também o é. É por essa razão que, embora o Parlamento tenha aprovado o adiamento, este ainda não é certo. Tudo porque os líderes europeus terão de aprovar o pedido na cimeira da próxima semana, a 21 de março.
E, para já, não é ainda sequer certo que tipo de extensão será pedida: uma curta, caso o acordo seja aprovado, ou uma mais longa? E se for longa, de quanto tempo será? E para quê? São essas as perguntas que os europeus farão a Londres, como reforça a editora de Europa da BBC, Katya Adler: “São eles que terão a palavra final”, resumiu. Se o plano de May, traçado por Olly Robbins em fevereiro, for bem sucedido, o mais provável é a UE dar o aval a uma extensão curta, para garantir que a saída do Reino Unido fica arrumada de uma vez por todas. Mas e se não for?
Para Adler, o mais certo é acabarem por aceder, “mesmo que de dentes cerrados”. Mas nem todos concordam: o analista Robert Peston relembra que os europeus só aceitarão um adiamento longo se for pedido algo em específico — novo referendo, eleições antecipadas, acordo trans-partidário com o Labour, etc. Se o Parlamento não chegar a um entendimento em torno de uma destas alternativas (ou outra, se puxar pela criatividade), com uma maioria clara, a UE pode torcer o nariz a esta proposta. “Ela seria mandada de volta para casa e convidada a refazer o seu pedido numa cimeira extraordinária de líderes da UE na semana seguinte”, vaticina. Mesmo, mesmo em cima da data de 29 de março. “O que significa que, se os deputados rejeitarem o acordo da primeira-ministra pela terceira vez, a predefinição legal de um no deal torna-se um risco real.”
A toda esta incerteza e risco juntam-se os fatores inesperados como as movimentações dos conservadores mais eurocéticos. Esta quinta-feira, Christopher Chope disse claramente que o descontentamento interno fervilhava e não descartou a possibilidade de alguns tories virem a apoiar uma moção de censura liderada pela oposição, que poderia fazer cair o Governo: “Os deputados que sentem que estão a ser traídos”, afirmou, iriam “olhar com atenção” para essa possibilidade.
Enquanto as conspirações continuam nos jornais, May continua as suas negociações dentro de portas para garantir que o seu masterplan de aprovar o Acordo de Saída negociado com a UE é aprovado. Esta quinta-feira, o DUP, partido parceiro parlamentar do Governo que sempre rejeitou terminantemente o backstop, anunciou que está em negociações com o Governo. Irá May conseguir o que até aqui parecia impensável e fazer uma reviravolta tal que o seu acordo é aprovado?
Costuma dizer-se que “não há duas sem três” e que “três foi a conta que Deus fez”. May talvez venha a dar razão aos ditos populares e, pelo meio, provar que é uma política bem mais resiliente e, talvez, inteligente do que lhe tem sido dado crédito até agora. Mas nada é certo para já, até porque o acordo pode não vir a ser votado. O presidente da Câmara dos Comuns, John Bercow, pode rejeitá-lo, alegando que já foi chumbado e que não se pode votar duas vezes o mesmo texto. O melhor é recordar outra expressão popular, que avisa que não se deve “por as mãos no fogo” por ninguém, e seguir esse conselho. Especialmente no que diz respeito ao Brexit.