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Adrianne Lenker dança sozinha até ao fim do amor

Desde que a conhecemos, soou muitas vezes ao futuro e ao passado de qualquer coisa: da folk ao indie-rock. No novo álbum, volta a mostrar que nada disso importa, só as canções que se revelam.

Houve ali um momento na carreira de Bob Dylan, quando o americano estava a começar, em que, mesmo que assim o desejasse, ele não conseguiria falhar: da estreia com Bob Dylan (1962) até Nashville Skyline (1969) foi grande disco a seguir a grande disco, com particular destaque para a sequência Bringing It All Back Home (1965), Highway 61 Revisited (1965) e Blonde on Blonde (1966); há quem inclua John Wesley Harding (1967) no cerne do melhor Dylan, mas aqueles três parecem estar ligeiramente acima dos outros.

Não é caso único – os três primeiros discos de Leonard Cohen vão sempre em ascensão até Songs of Love and Hate, enquanto Neil Young, em meros cinco anos, ofereceu-nos After the Gold Rush (1970), Harvest (1972), On the Beach (1974) e Tonight’s the Night (1975). Joni Mitchell foi de Blue (1971) a The Hissing of Summer Lawns (1975), passando por For the Roses (1972) e Court and Spark (1974), e isto para nos atermos apenas a nomes grandes da folk. Às vezes, simplesmente, uma febre possui os músicos e eles exsudam canção perfeita atrás de canção perfeita.

Por norma isto acontece no início da carreira e depois o toque de Midas vai-se lentamente evaporando. Com o tempo, vai sendo mais difícil escrever canções simples e frescas, vai sendo mais difícil alguém reinventar-se – acontece a todos, acontece sempre; mas ponham a tocar Sadness as a Gift, a segunda canção de Bright Future, de Adrianne Lenker (a compositora, guitarrista e vocalista dos Big Thief) e respondam-me: esta rapariga já falhou alguma vez? Já fez uma canção que fosse menos que boa? Já fez um disco que não soasse extraordinário, único, com quedas abissais e subidas extasiantes?

[o vídeo de “Fool”:]

OK, pode argumentar-se que esta ou aquela canção podiam eventualmente não ser incluídas neste ou naquele disco, que daí não viria grande mal ao mundo. Mas é difícil encontrar uma compositora atual com uma discografia tão irrepreensível quanto a de Lenker: ao leme dos Big Thief lançou cinco discos absolutamente extraordinários, que reviraram a nossa ideia de folk e de beleza: Masterpiece (2016), Capacity (2017), U.F.O.F. (2019), Two Hands (2019) e Dragon New Warm Mountain I Believe in You (2022) são obrigatórios na discografia de qualquer melómano que se preze; mas os discos a solo, de Abysskiss (2018), ao recém-lançado Bright Future, passando por Songs (2020) e Instrumentals (2020) não são menos preciosos – podem não ser gestos artísticos tão grandiosos ou exploratórios, mas têm uma vertigem de intimidade que parece já não existir na música do nosso tempo.

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A carreira de Lenker – se é que se pode chamar carreira ao trajeto de alguém que vive onde calha e passa quase toda a sua vida a compor e gravar incessantemente, sem se preocupar minimamente com as expectativas da sua audiência – parece ter três modus operandi: em Masterpiece e Capacity, os Big Thief criaram uma ponte entre o indie-rock e a folk, e empenharam-se em criar canções que funcionavam como histórias e em personagens tão específicas quanto universais (qualquer pessoa se revê na pequena tragédia e luta interior a ocorrer em Paul); estavam a cantar sobre a família, os desamores, os pecados, as falhas que nos moem e enchem de culpa.

"Bright Future" parece ter sido escrito aqui, agora, nesta sala, entre a roupa a secar e a mesinha com os livros, como se ela tivesse vindo aqui a tomar chá, de coração despedaçado, desse com a guitarra acústica, tivesse pegado no telefone para gravar e só parasse 43 minutos 37 segundos depois, com um disco feito.

Nesse exato instante, quando se tornaram figuras queridas da imprensa e uma banda de culto que podia dar o salto para os estádios, como anos antes os The National, os Big Thief tomaram uma posição corajosa: mandaram às voltas o conceito de canção e entregaram-se a um lado mais exploratório em U.F.O.F. e Two Hands, lançados no mesmo ano. Mesmo em termos líricos, o contar de histórias e a criação de personagens ficaram para trás, e as palavras começaram a abordar algo de mais inespecífico (um mal-estar existencial, a necessidade de pertencer a algo maior que isto aqui na Terra). Alguém entende com precisão o que Lenker canta em Not? Não, mas sabemos que ele nos está a dizer que a resposta não está nesta ou naquela coisa precisa – possivelmente, nem sequer há uma resposta.

Ao mesmo tempo ela vai fazendo os seus lançamentos, mais ou menos de surpresa – um mês antes de editar um disco avisa que há álbum novo, quase sem promoção. O que ela faz a solo tem um pendor diferente da obra com banda – enquanto em U.F.O.F. e Two Hands os Big Thief exploravam todos os rumos possíveis da terra mais antiga da folk americana, reinventando o psicadelismo, o drone ou o que mais lhes deu na cabeça, antes de, com Dragon New Warm Mountain I Believe in You, se aproximarem de novo da canção, as aparições de Lenker em nome próprio parecem nascer de ímpetos, de um jorro.

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Adrianne Lenker está no meio de nós (enquanto música) há 8 anos – e, no entanto, ao ouvir a obra que foi criando, parece que já vivemos 3 ou 4 vidas ao lado dela

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As canções são menos trabalhadas que em banda, quase só guitarra e voz, com ocasionais arranjos, e o tom é quase sempre de indagação amorosa e existencial – como se algo ocorresse na vida de Lenker e, sem saber o que fazer, sem ter um mapa emocional para se guiar a si mesma para fora da sua própria confusão, ela se lançasse nas canções, vertesse o seu desespero, a sua esperança, a sua raiva, a sua desilusão, a sua culpa, as suas lágrimas no primeiro instrumento que lhe aparecesse à frente.

Apesar disto, a obra a solo de Lenker não é completamente semelhante entre si: abysskiss era, talvez, o mais delicado e preocupado com a beleza, assente em delicados e intrincados dedilhados de guitarra, com a voz (esta extraordinária e comovente voz) à procura de respostas, da pergunta exata, do que fugiu e já não volta. Songs era mais cheio, não tão melancólico (até porque abysskiss atingia um grau depressivo de tal monta que quase tínhamos vontade de o levar a um psiquiatra e medicá-lo), mais variado em termos de composição. Em termos de “profissionalismo” talvez seja o disco mais “polido” de Lenker (e anything a sua canção esmerada).

[ouça “Bright Future” de Adrianne Lenker na íntegra através do Spotify:]

Em Bright Future, o profissionalismo foi dar uma volta – não porque Lenker cante ou toque mal (ela é uma instrumentista de eleição e as suas canções são tudo menos simples), mas porque do som low-fi à entrega vocal (que é, e perdoem-me a repetição, plena de entrega) Bright Future parece ter sido escrito aqui, agora, nesta sala, entre a roupa a secar e a mesinha com os livros, como se ela tivesse vindo aqui a tomar chá, de coração despedaçado, desse com a guitarra acústica, tivesse pegado no telefone para gravar e só parasse 43 minutos 37 segundos depois, com um disco feito.

Pelo menos metade do disco atinge não a perfeição, mas uma vertigem que nos arrasa emocionalmente, como se ao ver o nosso coração estas canções decidissem espezinhá-lo devagarinho – e nem no fim Bright Future nos poupa: Ruined, a última canção, é praticamente só piano e voz em marcha funerária rumo ao que nem chega a ser um refrão (“Can’t get enough of you / You come around / I’m ruined”), enquanto as cordas sobem, criando uma atmosfera onírica e assombrada.

Ela não é obrigatoriamente uma revivalista, mas tem traços de conhecedora reverente da música que veio antes de si; não se limita a ser experimental, mas as canções estão pejadas de apontamentos inesperados. Nada disto é o mais importante – o que interessa é que ela encontra sempre a solução que permite à canção relevar-se.

O piano vai surgindo aqui e ali: na dolorosíssima Real House, em Vampire Empire, com guitarra acústica, violino e aquela voz (meu Deus, que voz); enquanto o violino aparece em algumas canções, quase sempre para sublinhar a emoção predominante ou contribuir para um certo onirismo fantasmagórico (como na deslumbrante Sadness as a Gift, balada a roçar a country). Quase sempre a guitarra e a voz são o centro (a lindíssima Free Treasure, Donut Seam), embora ocasionalmente haja um arranjo inesperado, que não se esforça para brilhar, mas complementa com precisão a canção (as notas de banjo em Already Lost, que também se alicerça em voz e guitarra, são um bom exemplo).

Chamar low-fi a este som é inexato – não, Bright Future não foi gravado num estúdio caro, com uma dezena de produtores e músicos, mas também não é uma gravação caseira: Lenker e o seu produtor sentaram-se com mais 3 ou 4 músicos e ao longo de meia-dúzia de canções escreveram e arranjaram as canções ali. O ruído que se ouve é da fita – se hoje tudo é gravado diretamente para computadores, Lenker optou por fazer à antiga, e a suave sujeira que perpassa o disco é o som das ondinhas de ar a bater contra a fita magnética, como no tempo do vinil.

[o vídeo de “Ruined”:]

Nunca se percebe bem a que era pertencem as canções de Lenker – nestes 8 anos que passaram desde que os Big Thief se estrearam, eles e ela soaram muitas vezes ao futuro e ao passado de qualquer coisa, a folk, o indie-rock, o psicadelismo. Ela não é obrigatoriamente uma revivalista, mas tem traços de conhecedora reverente da música que veio antes de si; não se limita a ser experimental, mas as canções estão pejadas de apontamentos inesperados. Nada disto é o mais importante – o que interessa é que ela encontra sempre a solução que permite à canção relevar-se e às emoções humanas, obrigatoriamente contraditórias, nela encerradas.

Adrianne Lenker está no meio de nós (enquanto música) há 8 anos – e, no entanto, ao ouvir a obra que foi criando, parece que já vivemos 3 ou 4 vidas ao lado dela, que já contou a vida de toda a gente que conhecemos. Não sei de maior elogio.

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