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Tiago Carrasco

Tiago Carrasco

Alemanha. No bairro português, votos por conta do freguês

Hamburgo é a cidade mais portuguesa da Alemanha. Há fado, pastéis de nata e uma estátua de Vasco da Gama. Mas poucos dos 12 mil emigrantes podem votar nas eleições do próximo domingo.

Reportagem em Hamburgo, Alemanha

Hamburg, linda cidade,
cheia de amor e tradição
O Elba corre-te aos pés,
o Alster é o teu coração

Os lindos parques verdejantes
dos museus de admirar,
e milhares de emigrantes
dentro de ti a trabalhar

Hamburg, Linda Cidade, Maria Alzira Alves, portuguesa residente em Hamburgo desde 1968

Assim que a luz espreita, Stefan Reimliger transporta o galão e o pastel de nata para a esplanada da pastelaria Cristal, na Ditmar-Koel-Strasse, a principal artéria do Portugiesenviertel (Bairro Português). “É a melhor zona da cidade para comer e estar relaxado na esplanada, Venho aqui muito para tomar o pequeno-almoço e ver jogos de futebol”, diz o estudante de sociologia, de 23 anos. O sol é de pouca dura. Uma camada cinzenta volta a impôr-se no céu de Hamburgo e a verter frias gotas de água. O galão e o pastel de nata recolhem à sala, dominada por uma pintura do Tejo, da ponte 25 de Abril e do Cristo-Rei. “Schiet-wetter”, diz o alemão. “Quer dizer tempo de merda. É assim que os alemães descrevem o clima em Hamburgo. Aqui chove uns 200 dias por ano”.

O schiet-wetter não impediu que os portugueses, povo soalheiro, formassem junto ao porto de Hamburgo o bairro mais marcadamente lusitano de toda a Europa. Olá Lisboa, Porto, Nau, Casa Madeira, O Farol, O Pescador, O Frango, O Cantinho do António, Sul, Casa do Benfica, nomes familiares a cada esquina, bandeiras com quinas a esvoaçar nas janelas. São cerca de 40 os bares e restaurantes portugueses no quarteirão, com alguns a adicionar tapas espanholas à carta para alargar a clientela. Quando Celso Mané Ferreira aqui chegou, nos anos 70, só havia dois: o Benfica e o Sagres. Veio de Ovar com 15 anos para se juntar aos pais que congelavam peixe e faziam filetes numa fábrica. “Este bairro era medonho”, diz o dono do restaurante A Varina, decorado com fotografias de Eusébio, Ana Moura e galhardetes de Ovar. “Havia bares de marinheiros, o hotel deles e até um bairro de barracas com velhos marujos no degredo. Paravam aqui também sul-americanos e cabo-verdianos ligados a negócios obscuros. No café ali da esquina, que hoje é O Pescador, nem a polícia entrava. Quando o atual dono, português, comprou aquilo a um espanhol, descobriram um cadáver escondido atrás de uma parede falsa”.

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Celso Mané Ferreira, dono do restaurante A Varina

Tiago Carrasco

Os brandos costumes portugueses devolveram a calmaria à zona. Os primeiros a frequentá-la foram os trabalhadores do estaleiro que, em 1962, eram já 120. Extremamente pobres, eram confinados às tarefas mais duras e sujas. “Alguns destes primeiros portugueses vieram a adoecer com asbestose, por terem carregado e descarregado amianto. Nesta altura, o transporte de amianto não era ainda conhecido como perigoso para a saúde”, lê-se no livro “Portugueses em Hamburgo”, de Susanne Müller e Luís Manuel Pacheco.

Ao abrigo do Acordo Laboral entre a República Federal da Alemanha e Portugal, celebrado em 1964, o número de emigrantes cresceu exponencialmente, atingindo um pico de 38.444 em 1973. A Alemanha reerguia-se da devastação causada pela II Guerra Mundial; ao país chegavam centenas de milhar de Gastarbeiter (trabalhadores convidados), turcos, italianos, gregos e portugueses para empregos na construção e na indústria pesada. Em 1964, um deles, Armando Rodrigues de Sá, carpinteiro, foi recebido com cravos e a oferta de uma mota à chegada à estação de comboios de Colónia-Deultz, por ser o trabalhador número um milhão do programa germânico.

Porém, a contratação começou a decrescer e com a crise no porto, no fim dos anos 80, muitos dos embarcadiços e dos estivadores viraram-se para terra. “Alguns portugueses começaram então a comprar negócios a polacos, que tinham aqui lojas de eletrónica, e a abrir restaurantes e pastelarias”, diz Celso, um dos primeiros proprietários portugueses com negócio em nome próprio. “Antes era obrigatório ter um sócio alemão.” Mais famílias começaram a trazer para o bairro a gastronomia nacional. “No início, os alemães pensavam que lhes servíamos bacalhau estragado, porque nunca o tinham provado salgado e a polícia aparecia sempre que fazíamos um churrasco à varanda, porque não estavam habituados, viam o fumo e achavam que havia risco de incêndio.” As rendas eram à época bastante baratas. Hoje, um T2 num prédio de 1920 pode chegar aos 1200 euros. “O custo de vida subiu muito e os ordenados nem por isso. Conseguia poupar muito mais quando aqui cheguei do que agora”, diz Celso. Essa é uma das suas preocupações atuais. A outra é a política de acolhimento de refugiados promovida por Angela Merkel, que abriu as portas da Alemanha a mais de um milhão de requerentes de asilo: “Tenho a sensação de que aqueles que vieram não eram os que mais precisavam e de que foi tudo feito sem controlo”, diz. “Merkel tem mais influência na política externa do que na Alemanha. Os cofres do país podem estar cheios, mas do que nos serve isso se ela só os abre para pagar aulas de alemão aos refugiados?”.

Hamburgo é a cidade da Alemanha com mais habitantes portugueses

Tiago Carrasco

Apesar das opiniões políticas e de viver na Alemanha há quatro décadas, de pagar impostos e o seguro de saúde obrigatório, Celso vai ficar em casa no próximo dia 24 de setembro, data marcada para as eleições federais. Não pode votar. Falta-lhe a cidadania alemã, que nunca lhe foi dada e que, apesar de preencher os requisitos para a obter, nunca requisitou. “Nunca senti essa necessidade, porque não ser alemão nunca me colocou entraves, tenho os mesmos direitos e condições mantendo apenas a nacionalidade portuguesa”.

Tal como ele, a grande maioria dos trabalhadores convidados nos anos 60 e 70 e os seus descendentes não tem peso eleitoral na escolha do próximo Chanceler – os originários da UE podem votar nos sufrágios locais e municipais, mas não nos nacionais. De acordo com o último recenseamento, estão nessa situação 7,8 milhões de pessoas que em média vivem na Alemanha há 15 anos, cerca de 13% da potencial massa eleitoral. Uma fatia de eleitores que podia ser decisiva nos resultados finais e cuja participação tem sido reivindicada por organizações como a Wahlrecht Für Alle (Direito a Voto para Todos) e partidos políticos como o Die Linke e Os Verdes, que argumentam que esta situação enfraquece a democracia e promove a existência de cidadãos de segunda classe.

Organizações como a Wahlrecht Für Alle (Direito a Voto para Todos) e partidos políticos como o Die Linke e Os Verdes defendem o direito de voto dos emigrantes @Tiago Carrasco

Há várias explicações para o fenómeno. Só desde 20 de dezembro de 2014 é que a legislação germânica abriu portas à dupla nacionalidade, permitindo aos lusodescendentes nascidos na Alemanha ter direito vitalício ao passaporte nacional. Antes, obrigava todos os descendentes de estrangeiros que se quisessem tornar alemães, mesmo os nascidos no país, a abdicarem da naturalidade de origem. Para os que nasceram em Portugal, o requerimento de cidadania tem de obedecer a uma série de requisitos: viver na Alemanha há mais de 8 anos, estar casado com um alemão/alemã, ter contrato de trabalho, não ter registo criminal, passar num rigoroso exame de cidadania, entre outros. Nos casos de extracomunitários, continua a ser em muitos casos pedida a rejeição da nacionalidade de origem. Por fim, a entrada em vigor das normativas europeias conferiu direitos iguais no trabalho, impostos e segurança social a qualquer cidadão comunitário residente na Alemanha. Mesmo sem nacionalidade, os portugueses passaram a poder ter contratos efetivos e direito a pensão. Não votar passou a ser encarado como um mal menor.

Um contrato falhado

“Acho que estou muito bem integrado na sociedade, tenho emprego, falo alemão, dou-me com pessoas de todas as idades e classes sociais”, diz Luís Manuel Pacheco, de 50 anos, presidente da Associação Luso-Hanseática e diretor da agência de seguros da Ergo no bairro português. “No entanto, há alemães, principalmente os mais velhos e conservadores, que continuam a fazer-me sentir estrangeiro.” Luís também faz parte dos 13% sem direito a boletim. Chegou de Odemira com 11 anos quando o pai, carpinteiro, teve possibilidade de mandar vir a família. Aos 18, começou a trabalhar no ramo dos seguros. Hoje gere uma carteira de milhares de clientes, muitos deles portugueses: “Vêm até mim pelos mais diversos motivos. Alguns, analfabetos, pedem-me para lhes ler cartas e dar opinião sobre decisões a tomar. Outros, mais novos e diplomados, vêm até aqui sondar oportunidades de trabalho”, diz.

Luís vota em Portugal e não trocava mesmo que lhe dessem escolha. Segue, todavia, a atualidade do seu país de residência: “Estaria sempre no centro, entre a CDU de Merkel e o SPD, de Schulz”, afirma. “A questão é que Merkel vai para o quarto mandato e eu acho que é demais, que é bom haver mudanças para não se criarem rotinas no poder. Os alemães são mais contidos, mais poupados e vão votar pela continuidade. Mas há desafios à espreita, como o aparecimento dos carros elétricos, setor no qual me parece que a Alemanha está a ficar para trás”.

São os residentes estrangeiros de longo termo com consciência democrática, como Luís, que o consultor político Johannes Hillje gostaria de ver incluídos na população eleitoral. “Mas os principais partidos não têm o mínimo interesse em integrar estas comunidades”, diz. “Nunca pressionam para a sua inclusão eleitoral, não direcionam a campanha para eles, nem se importam que o afastamento democrático os conduza à alienação.”

Luís Manuel Pacheco, de 50 anos, presidente da Associação Luso-Hanseática também não tem direito ao voto nas eleições de domingo

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O problema reside, na opinião de Dara Hassanzadeh, editor do Heute Journal, da ZDF, nos moldes do contrato feito entre o Estado e os Gastarbeiter nos anos 60 e 70: “Pensavam que eles iam ficar enquanto houvesse trabalho, que iam pegar no dinheiro e voltar para casa”, diz. Mas o trabalho continuou, o dinheiro também e os estrangeiros foram ficando, tiveram filhos, nunca regressaram. “Por ter sido tudo pensado como um fenómeno temporário, não foram previstas as medidas que lhes conferissem um estatuto de cidadãos com plenos direitos”. A consequência é que 61 milhões de contribuintes votam; 7,8 milhões não. “E isto tem um impacto tremendo. Podia, por exemplo, enfraquecer o resultado eleitoral da extrema-direita”, diz Hillje.

A entrada dos nacionalistas do AfD (Alternative für Deutschland, partido nacionalista) no Parlamento é o principal motivo de apreensão de Luís de Pinho, de 46 anos, que gere uma acolhedora loja de vinhos portugueses, a Weinkost Portugal, no bairro lusitano. É, e sempre foi, mesmo antes de sair do Porto em 1993, um homem de esquerda. Se votasse, seria no Die Linke. “Nem tudo vai bem como parece na Alemanha”, diz, enquanto serve um cálice de Porto branco, Quinta de Sta. Eufémia. “A assistência médica está muito pior, a minha mulher esteve três semanas à espera para uma consulta de ortopedia, isso não acontecia. Pago 47% de impostos e tenho cada vez menos regalias. A vida das PME’s está cada vez mais difícil. Qualquer uma que abra, tem de pagar os impostos desse ano e uma estimativa do ano seguinte. O país tem muito dinheiro guardado, mas não alivia a carga fiscal e disso temos de tirar responsabilidades políticas”, afirma.

Luís de Pinho preocupa-se com uma eventual entrada dos nacionalistas do AfD no parlamento alemão

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Mas as sondagens indicam o contrário: uma vitória esmagadora de Merkel e do seu financeiro Wolfgang Schäuble. “Com a questão dos refugiados, ela posicionou-se à esquerda e assim roubou votos ao SPD e ao Linke”, analisa Luís. Para mais, os protestos anti-G20 ocorridos no verão em Hamburgo descredibilizaram a sua corrente política: “Associaram os motins aos movimentos de esquerda, mas havia lá tipos que não tinham nada a ver com aquilo, que até vestiam roupa da Nike. A direita ficou toda contente, porque pôde colar a esquerda à violência”.

Luís pensou que Hamburgo ia ser passageira. Veio por três meses, apaixonou-se e aperfeiçoou a técnica dos cocktails de bar em bar até ser campeão da cidade. Já teve duas mulheres alemãs, duas filhas nascidas na cidade, mas o passaporte continua o mesmo: “Sou português, quero sê-lo em exclusivo e nem o direito ao voto me vai fazer mudar”.

Cozinha com vista para a política

“Este cordeiro é alemão ou neozelandês?”, pergunta Cândido Fernandes, de 67 anos, a Rui, empregado do restaurante O Lusitano. Cordeiro ao alho, o prato favorito deste transmontano da aldeia raiana de Quintanilha, que escolheu para o almoço de sábado com a esposa, Teresa, e um casal amigo, Amílcar e Maria. Cândido chegou a Hamburgo a 12 de setembro de 1973 — “já lá vão 44 anos” — para trabalhar na fábrica de borracha Phoenix Gummiwerke. Tinha outras opções: podia ter ido para a polícia em Portugal e o escritório de emigração deu-lhe a escolher entre cuidar dos cães da NATO, uma fábrica de alumínio e outra de borracha. Preferiu borracha. E não se deu mal: esteve 16 anos a trabalhar com máquinas que operavam a temperaturas superiores a 150 graus, foi promovido a capataz e finalmente a mestre. Hoje vive numa das ruas mais caras da cidade. “Aqui premeiam quem trabalha, a produtividade e a eficiência. Eu estive 40 anos sem meter uma baixa, sem pedir uma folga. Toda a gente, sindicatos e patrões, tinha a máxima confiança em mim.”

“O cordeiro é alemão, senhor Cândido”, responde-lhe Rui. Iguarias que não lhe passavam pelo palato quando chegou: “Havia dois ou três restaurantes portugueses, abertos para os marinheiros, e a agência de viagem do Mendes, que nos vendia o vinho”, recorda. “O bairro foi crescendo à custa dos empregados, que se faziam mais ricos, saíam e abriam os seus próprios negócios.” Havia muitos minhotos, caxineiros e alentejanos. “Posso contar-lhe uma anedota?”, pergunta o operário reformado. “Os alentejanos foram-se todos embora em 1989. Porquê? Porque o muro caiu e deixaram de ter onde se encostar.”

Cândido Fernandes chegou à Alemanha em 1973 e lá conheceu Teresa Fernandes, com quem é casado

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Após um ano de Hamburgo, Cândido conheceu Teresa, madeirense, mulher com quem leva quase tantos anos de casado como de emigrante. “Foi num sítio em Dammtor que tinha bailes, eram as velhas no piso de baixo e as jovens no primeiro andar. As raparigas tinham na mesa um número de telefone para o qual se podia telefonar para as convidar para uma dança. Ela era loura, bonita. Eu liguei e foi aí que tudo começou”, conta. Teresa faz-lhe uma festinha no ombro.

Por se recordar tão bem dos seus primeiros tempos na Alemanha, Cândido não critica os recém-chegados. “Até agora, os refugiados não causaram problemas. Nota-se apenas um bocadinho na habitação, porque a cidade teve de os alojar e há escassez de casas para todos, as rendas subiram”, afirma. Não só pela política de acolhimento, mas também pela governação económica, Cândido votaria, se pudesse, na CDU de Angela Merkel: “O desemprego está abaixo dos 4%, a economia está forte e a caixa social tem mais de 20 mil milhões. Digam o que disserem, ela e o Schäuble [Ministro das Finanças] fizeram um trabalho incrível”, defende. “Acho até que ela ganharia com maioria absoluta se não tivesse perdido votos para o AfD por causa da crise dos refugiados.” O presidente da Câmara chegou mesmo a convidar Cândido para obter a nacionalidade alemã, mas ele rejeitou. “Não me dava nada de novo e ainda tinha de pagar mais de 200 euros.”

Restaurante O Galego, em Hamburgo

Tiago Carrasco

O passaporte germânico também nunca chegou às mãos de Fernando da Silva, 45 anos, proprietário do restaurante O Galego, situado num antigo bunker da grande guerra, entre o bairro português e o passeio portuário, hoje catalogado como monumento municipal. Tem dois filhos já nascidos em Hamburgo, um de 7 e outro de 18, que também nunca requisitaram nacionalidade: “Eles também se sentem mais portugueses do que alemães”, diz.

Aos 6 anos, Fernando deixou Celorico de Basto para se juntar aos progenitores em Hamburgo. O pai, antigo estivador, comprara o estabelecimento a um espanhol e convertera-o numa tasca à moda portuguesa. Quando os pais regressaram ao Minho, Fernando assumiu o negócio e o legado; iluminou o bunker com velas, decorou-o com âncoras, rodas de carroça e curvilíneas garrafas de tinto português, renovou a carta com francesinhas, caldo verde servido dentro de pão alentejano e pratos como kanincher nach caçador (coelho à caçador). De música ambiente, sempre o fado. “Muitos alemães que visitaram Portugal entram aqui e dizem sentir-se de regresso ao nosso país. Isso enche-me de orgulho, porque sei que o meu pai tinha gosto nisto, não queria que entregasse o negócio.”

Fernando da Silva, 45 anos, proprietário do restaurante O Galego

Tiago Carrasco

As eleições que se aproximam não lhe tiram o sono. A Merkel, reconhece mérito, que diz ser mais fácil de alcançar quando se governa um país com vigor económico. Mas não lhe perdoa a austeridade em relação a Portugal: “Houve uma fase em que parecia que queria mandar no país”, queixa-se. Tão pouco a falta de assertividade na sua conturbada relação com o presidente turco Recep Erdogan: “Ele é louco e têm-na na mão, porque ela cedeu em muitas negociações, principalmente no acordo dos refugiados. A Alemanha é um país poderoso, não se pode vergar. Merkel parece muito forte, mas acho que com a Turquia tem revelado fraquezas.” Preferia que o SPD vencesse o sufrágio, mas as sondagens não deixam margens para ilusões: “Parece mesmo que o Schulz não pegou”.

Cartazes com a cara do líder socialista estão espalhados pelo bairro português, alguns deles caídos e desolados, colados ao asfalto pela chuva incessante, como augúrio de uma catástrofe eleitoral. Schulz esteve num comício do SPD há menos de uma semana num parque das redondezas.

Tiago Carrasco

Maria Fernanda Nunes, cozinheira do restaurante O Frango, 69 anos, não deu por nada. Desde a sua chegada, em 1988, que as eleições lhe passam um bocado ao lado. Um sujeito que o marido encontrou no autocarro convenceu-a a trocar Vilar de Besteiro, Tondela, pela cidade do porto colossal. Sabe dizer que o bairro era dos bandidos, que houve tiroteios e mortes e que comprava roupa do contrabando. Que a família veio em peso e que agora são sete no restaurante. Que a vida já não dá para grandes poupanças, mas que ainda serve ao desafogo. Que a camisola de Messi exposta na janela do andar de cima foi ideia de um vizinho espanhol para fazer pirraça aos portugueses. Que os alemães gostam do nosso peixe grelhado mas também de um deles, o peixe-manteiga. Que nunca pensou ver gente a viver em tendas na Alemanha, mas viu, e que Merkel fez muito bem em deixá-los entrar e ainda é quem se preocupa mais com os pobres. Mas não lhe perguntem quem é o senhor no cartaz: “Schulz? Não conheço. É normal, estou todos os dias fechada na cozinha”.

Já são sete os portugueses que trabalham na churrasqueira O Frango

Tiago Carrasco

Nem Vasco da Gama vota

Celso Mané sabe de cor onde estão os cantinhos portugueses da cidade. E são muitos. A presença portuguesa em Hamburgo remonta ao início do século XVI, quando milhares de judeus sefarditas perseguidos em Portugal encontraram refúgio na região hanseática do Mar do Norte. Ao volante do seu carro, o ovarense percorre essa história: passa pelo cemitério judaico de Altona, criado em 1616 e Património da Humanidade, com os seus 1600 túmulos com esculturas barrocas de pedra e epitáfios em português e hebraico; depois, pela igreja matriz de Sankt Michaelis, cujas primeiras placas de cobre foram doadas no século XVII por Diogo Teixeira, um sefardita que se tornou um comerciante poderoso em Hamburgo. “Aqui quando alguém é condecorado recebe o Hamburger Portugaleser, que foi uma moeda trazida de Portugal pelos judeus”, diz Celso.

Há uma estátua de Vasco de Gama com mais de um século junto ao porto — a única fora do mundo lusófono —, uma praça com o nome do descobridor português, os modernos Terraços de Magalhães, em homenagem a Fernão de Magalhães, e ainda a rua recentemente batizada com o nome de Amália Rodrigues. Atracado junto ao bairro português, como baluarte da comunidade, está o sumptuoso Rickmer Rickmers, o barco alemão apreendido nos Açores em 1916 e usado pela Marinha Portuguesa como veleiro-escola Sagres, até ser comprado novamente por alemães e exposto em Hamburgo com pompa tal que até Mário Soares, então Presidente da República, compareceu para destapar a placa. Celso sabe até o que não está nos livros. Por exemplo, “que o roupeiro do St. Pauli, [o clube de futebol alemão ligado a movimentos anarquistas], era português” ou que “foi o Menderico, um português, que forrou as cadeiras do salão nobre da Câmara Municipal”. Ali está um guineense que foi futebolista na primeira liga portuguesa e que agora tem uma loja de roupa, acolá, a Pastelaria Transmontana, a mais antiga, mesmo diante do Rote Flora, que foi o epicentro dos violentos motins contra o encontro do G-20.

Rickmer Rickmers, o barco alemão apreendido nos Açores em 1916 e usado pela Marinha Portuguesa como veleiro-escola Sagres

Tiago Carrasco

O que Celso não conhece é um português que vote. Ainda passa pelo mini-mercado do Sr. Fonseca, que fornece chouriços, queijos e bom tinto aos seus patrícios, mas não votos para o parlamento. “A Merkel vai continuar porque os alemães preferem a estabilidade ao desconhecido”, diz o comerciante. Por fim, paragem na escola Stadtteilschule am Hafen, onde à porta Manuel, encarregado de limpezas, informa que vai regressar à terra: “Ganho 1200 euros, dou 400 para os impostos e 500 para a renda. O que é que estou aqui a fazer? Tenho uma casinha fechada lá nas Caxinas, vou é voltar para o meu barquinho e vender umas sardinhas”, explica. No corredor, um painel de azulejos dedicado a Aristides de Sousa Mendes revela a presença de lusodescendentes. São 80. E esta é a única escola de Hamburgo em que se pode fazer o 12º ano na disciplina de português.

@Tiago Carrasco

“Há três gerações de emigrantes portugueses na Alemanha”, diz a vimaranense Sofia Unkart, professora na escola bilingue, 44 anos, radicada em Hamburgo há 17. “A primeira veio nos anos 60 e 70 e é mais fechada, mais ligada às tradições portuguesas, ao folclore, ao futebol e às atividades associativas. A segunda são os seus descendentes, mais integrados na sociedade alemã, e que muitas vezes perdem mesmo a língua portuguesa. E há uma geração mais recente, qualificada, europeia, que chegou com a crise, que se integra profissionalmente e que desconhece a comunidade portuguesa. Ficam meia dúzia de anos e mudam-se para outro país”. Ou, como resume Celso: “Antes chegavam com um garrafão de vinho, hoje chegam com um canudo”.

Sofia ficou em Hamburgo depois de um ano de Erasmus e de uma paixão que resultou em casamento. Como professora, tem contacto privilegiado com a comunidade portuguesa: “As preocupações são mais económicas. Não vêem a dimensão social, política e humanitária, estiveram bastante afastados da problemática com os refugiados. Têm um olhar mais centrado na portugalidade deles e nos dilemas do quotidiano”, opina. Ao contrário dos portugueses em França, que entre as comunidades estrangeiras eram os que contavam com mais apoiantes da Frente Nacional de Marine Le Pen, os emigrantes na Alemanha não se deixaram seduzir pelo discurso anti-muçulmano: “Primeiro, porque o AfD fala muito ao alemão, à sua cultura, e essa identidade está longe dos portugueses. Os portugueses em Hamburgo estão bem estabelecidos e não sentem que os árabes lhes possam roubar o emprego. E, além disso, o AfD não tem muita ressonância em Hamburgo, mas mais na região da Saxónia”.

Tiago Carrasco

Sofia ponderou pedir a cidadania, mas como até há pouco tempo a obrigavam a prescindir do bilhete de identidade português, desistiu. Reconhece o facilitismo dominante: “Se houvesse necessidade de pedir a nacionalidade para conseguir contratos de trabalho, seria diferente. Assim, só avança quem tem uma forte consciência política”.

No bairro português, Stefan engole o último pedaço de pastel de nata e acende um cigarro. Manifesta estranheza por aquelas pessoas que todos os dias lhe desejam bom dia na sua língua, ordeiras, simpáticas e integradas, não terem direito a votar. “Melhor assim”, brinca. “No domingo vai estar tudo fechado e assim posso vir aqui beber uma cerveja depois de votar”.

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