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A ocupar o pensamento, dizem os diretores artísticos do Alkantara Festival, está “um corpo político” que lança questões, que nos leva a perceber que há realidades que não entendemos, mas sobre as quais podemos aprofundar conhecimentos
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A ocupar o pensamento, dizem os diretores artísticos do Alkantara Festival, está “um corpo político” que lança questões, que nos leva a perceber que há realidades que não entendemos, mas sobre as quais podemos aprofundar conhecimentos

kurt van der elst

A ocupar o pensamento, dizem os diretores artísticos do Alkantara Festival, está “um corpo político” que lança questões, que nos leva a perceber que há realidades que não entendemos, mas sobre as quais podemos aprofundar conhecimentos

kurt van der elst

Alkantara 2023: nestes palcos procura-se o lugar do corpo político

Até 26 de novembro são vários os espaços de Lisboa que recebem a nova edição do festival, este ano com nove espetáculos de artistas portugueses e estrangeiros, encontros e conversas.

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“Quão próximo conseguimos chegar?” e “Até onde podemos ir”: são duas questões que servem de mote à edição de 2023 do Alkantara Festival, que este ano celebra 30 anos de existência, tendo surgido inicialmente com o nome “Danças na Cidade”, e que decorre entre os dias 10 e 26 de novembro, em vários espaços de Lisboa. Sobre elas, o festival apresenta uma proposta de reflexão que se traduz nas múltiplas temáticas abordadas em nove espetáculos de artistas portugueses e estrangeiros, mas também em encontros, conversas e festas dedicadas às práticas artísticas contemporâneas. Procura-se um espaço de encontros entre diferentes mundividências, culturas e modos de estar – entre aquilo que está ao nosso lado e que entendemos, e aquilo que está distante e que, à partida, podemos nem compreender. “Ao construirmos esta edição, fomos tomando nota destas distâncias e proximidades, daí que estas questões nos sirvam enquanto programadores, mas são também para o público que vê”, explica ao Observador, Carla Nobre de Sousa, que forma com David Cabecinha, a direção artística do festival.

Há muitos ângulos de leitura para se explorar: fala-se do blackface, como prática teatral racista e de whitewashing, como forma de encobrimento de um crime, como também se fala de gastronomia, que junta à mesa diferentes culturas, e de questões pós-coloniais ou migratórias. Pode ser a história de um guarda-noturno de um parque de estacionamento que conversa com uma encenadora ou dar palco à resistência da comunidade transgénero de Abidjan, na Costa do Marfim. Em tudo isto, há um olhar que recai sobre lugares concretos, sobre países como o Brasil ou Portugal, ou continentes como o africano e o asiático. “No fundo o que nos interessa é entender estes limites, porque podemos percorrer uma distância muito grande ou podemos estar sentados ao lado de outra pessoa e ainda assim não compreendermos a totalidade da sua experiência, por ser diferente da nossa”, acrescenta Carla Nobre de Sousa.

Através da sua programação, o Alkantara Festival quer motivar o início de novas relações ou simplesmente provocar encontros inusitados, que nos confrontam como espetadores. A ocupar esse lugar de pensamento, dizem os diretores artísticos do Alkantara Festival, está por isso “um corpo político” que lança questões, que nos leva a perceber que há realidades que não entendemos, mas sobre as quais podemos aprofundar conhecimentos. Nesse mesmo espetro, explica David Cabecinha, o próprio festival aproxima-se de outras expressões que não se cingem somente às artes performativas. Como exemplo, fala do espetáculo de Calitxo Neto, que decorre à volta da confeção e, posterior, degustação de uma feijoada brasileira. “Traz para o palco o ato de cozinhar e o samba, numa visão sobre as origens deste tipo de música. E isto para dizer que realmente há muitas pontes de entrada naquilo que é a diversidade cultural e de experiências que cada pessoa carrega.”

Reflete-se sobre os pontos de definição de diferentes comunidades como forma de aproximação a outras formas de vida, não necessariamente por via da sua expressão artística. “Aqui voltamos às duas perguntas que nos lançam para este ano; às vezes gostamos de nos reconhecer naquilo que vemos e outras vezes gostamos de ver qualquer coisa que não compreendemos ou que não conhecemos. Estes dois polos podem coexistir num mesmo espetáculo e numa mesma experiência”. Atualmente, sintetizam, o trabalho de programar um festival é também ele um ato coletivo, algo que o festival tem vindo a aprofundar. Este ano apresentam, além do programa geral, três divisões para as quais convidaram outras vozes. O programa Kilombo, com curadoria das Aurora Negra; o programa Pedra Pele Pulmão, com curadoria da rede Terra Batida; e o programa Side Trap, do Chim Pom from Smappa!Group, que inclui uma colaboração com várias organizações locais em Marvila. “Queremos que outras pessoas tenham experiências de programação e de curadoria. Trata-se de lugares de decisão e de poder, mas o acesso a eles não é muito óbvio, nem muito fácil. Não há muitas formas de ter experiência profissional na programação antes de chegar a estes lugares, e é uma das coisas que tentamos fazer tanto no Espaço Alkantara, ao longo do ano, como cada vez mais no festival”, explica David Cabecinha.

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Chegados a 2023, o festival que agora acontece anualmente, quer manter uma abordagem de acompanhamento aos diversos processos criativos e ser um espaço de diálogo. E os temas que se evidenciam na programação surgem, explicam os diretores artísticos, a partir das propostas dos diversos artistas programados – e não o contrário. “É um festival feito de ligações”, diz Carla Nobre Sousa, acrescentando que é também por isso que procuram cada vez mais um equilíbrio entre espaços institucionais e outros que atuam de forma independente. “Muitas destas práticas são periféricas, mas já foram também incorporadas nas práticas institucionalizadas, mas sem que muitas vezes os seus protagonistas tenham tido o reconhecimento da autoria e do contributo que deram para haver essa transposição”, sustenta David Cabecinha. Desta forma, o festival, referem, estará sempre orientado para ajudar estes artistas a reclamarem o seu lugar. Deixamos-lhe alguns destaques da programação deste ano.

“Blackface”, de Marco Mendonça

De 17 a 19 de novembro, no Teatro do Bairro Alto

Em estreia absoluta, o ator e performer Marco Mendonça apresenta-se, sozinho em cena, com Blackface: uma conferência musical, entre o stand-up, a sátira e o teatro documental e autobiográfico. Por via de uma vasta pesquisa visual e de diferentes sketches humorísticos, atravessam-se cinco séculos de história para falar do longo e doloroso legado do chamado blackface. Desde as suas raízes nos EUA até aos casos portugueses, aborda-se a prática teatral racista em que pessoas são maquilhadas para caricaturar estereótipos negros – utilizadas para rebaixar, objetificar e desumanizar pessoas negras, tidas como pouco inteligentes, preguiçosas, mentirosas, entre outros defeitos. Chegados a 2023, Marco Mendonça contraria o conforto e o alívio cómico, para nos dar ver como o racismo ainda faz parte das tradições portuguesas até hoje.

“Profético (Nós já nascemos)”, de Nadia Beugré

Dias 24 e 25 de novembro, na Culturgest

Na sua mais recente peça, a criadora costa marfinense Nadia Beugré regressa a Portugal com pessoas da comunidade trans de Abidjan, cidade onde nasceu. Em palco, pessoas designadas à nascença como rapazes, flutuam entre géneros, numa sociedade extremamente patriarcal que, convenientemente, finge não as ver. São cabeleireiras de dia e divas da pista de dança à noite, transgridem binarismos individuais, familiares, sociais e históricos, sobre o que é bonito ou feio, masculino ou feminino, legal ou ilegal. Tudo está à vista e à escuta, nesta peça que é prova de existência destas pessoas que não só já nasceram – como afirma o próprio título – como continuam a reivindicar a sua liberdade. E é nas redes de solidariedade que tecem e trançam entre si, que inventam as suas próprias danças e os meios da sua própria sobrevivência.

“Antígona na Amazónia”, de Milo Rau/NTGent & MST

Dias 11 e 12 de novembro, na Culturgest

Foi há 27 anos que 21 pessoas foram assassinadas no Massacre de Eldorado do Carajás, decorrente de uma ação violenta por parte da polícia, que abriu fogo contra trabalhadores rurais que bloqueavam a estrada em protesto contra a demora da desapropriação de terras, no sul do Pará. Em Antígona na Amazónia, peça criada em conjunto pelo encenador Milo Rau e ativistas do Movimento Sem Terra (MST), relembra-se o massacre e fala-se de um lugar onde as florestas ardem e a natureza é devastada por uma exploração impiedosa. No seu cruzamento, junta-se a história de Antígona, a peça de Sófocles que se confunde com a contemporaneidade. Constrói-se um espetáculo em que se aborda a luta pela reforma agrária, os massacres contra o MST, os genocídios negro, indígena e transgénero, as alterações climáticas e o agronegócio, elementos da tragédia do Brasil na atualidade.

“Pai para jantar”, de Gaya de Medeiros

De 17 a 19 de novembro, no Centro Cultural de Belém

Numa versão atualizada de uma peça que apresentou já este ano, a artista e performer Gaya de Medeiros constrói um jogo com o público que tenta esmiuçar a masculinidade de forma poética e bem-humorada. A performance brinca com os modos como agenciamos palavras, afetos e arquétipos ao redor da ideia de “ser homem”. Desta forma, “Pai para jantar” propõe um caminho subjetivo em direção ao lastro dos nossos pais que perdura na nossa personalidade e que está na base de muitos desejos e fracassos. Um encontro entre uma mulher-talho e um minotauro que se perdeu no seu próprio labirinto, pontuada de ironia e de uma provocação latente que desconstrói os velhos arquétipos da masculinidade.

“Feijoada”, de Calitxo Neto

Dias 17 e 18 de novembro, no Teatro São Luiz

Feijoada é um guisado de feijão e carne, uma refeição típica de domingo, um símbolo da hospitalidade brasileira. Rodeado de músicos, bailarinos, intérpretes e uma cozinheira, o coreógrafo Calixto Neto e a sua equipa convidam o público a conhecer a preparação de uma feijoada em tempo real. Os aromas do processo de preparação misturam-se com danças e canções de samba e com histórias pessoais e políticas. De onde provêm as desigualdades que caracterizam a sociedade brasileira? Que corpos estão sujeitos a violência? E de que outra forma se pode contar a história do prato nacional feijoada? Nesta roda de samba, aprofunda-se a relação pessoal e política entre Brasil, Portugal e a diáspora africana. É também o mote para denunciar as camadas de opressão do legado da colonização.

“Side Trip”, de Chim↑Pom from Smappa!Group

De 11 a 19 de novembro, em Marvila

A convite do CAM – Centro de Arte Moderna Gulbenkian e do Alkantara, o coletivo japonês Chim↑Pom from Smappa!Group desenvolve o projeto Side Trip, integrado no programa Engawa – Temporada de arte contemporânea japonesa. Nesta intervenção os membros do coletivo desafiam os limites de uma rua em Marvila, expandindo-a e abrindo-a para um programa de eventos e encontros com performances, concertos, workshops, comida ou um magusto, com castanhas assadas e jeropiga, no verão de São Martinho. Side Trip reclama a rua como espaço de convivialidade, sem fugir às problemáticas globais e sociais num tempo de intenso desenvolvimento urbano e de gentrificação das cidades. Chim↑Pom foi criado em Tóquio, em 2005, e é conhecido como “a face subversiva da cena artística contemporânea japonesa”, pelas suas intervenções com projetos disruptivos que respondem às realidades contemporâneas.

“Fazer Noite”, de Bárbara Bañuelos

Dias 25 e 26 de novembro, no Teatro do Bairro Alto

Na primeira vez que apresenta o seu trabalho em Portugal, a encenadora Bárbara Bañuelos conversa, na escuridão da noite, com Carles A. Gasulla, guarda-noturno num parque de estacionamento. Bárbara e Carles conversam, ocupando as cadeiras vazias no meio do público, sobre os livros que leram, sobre precariedade laboral, colonialismo, saúde mental e estigmas sociais. O caráter íntimo da conversa – e a auto-análise sobre as suas posições de poder e de solidão – é devolvido ao público, incluindo todas as pessoas presentes num exercício expandido de empatia e de vulnerabilidade coletiva.

“Whitewashing”, de Rébecca Chaillon

Dias 10 e 11 de novembro, no Teatro do Bairro Alto

O termo whitewashing descreve uma prática de casting em que atores e atrizes brancos interpretam personagens de outros grupos étnicos, ou o ato de ocultar deliberadamente factos desagradáveis ou incriminatórios. A performer francesa Rébecca Chaillon apropria-se do termo e subverte-o para abordar a questão do branqueamento da pele, denunciar o modo como o racismo imposto sobre as mulheres negras fragiliza a sua autoestima e traçar caminhos de libertação dos padrões de beleza dominantes para, finalmente, recuperar a cumplicidade das redes de autonomia e afeto e de amor próprio. Em palco, Rébecca Chaillon e Ophélie Mac limpam e esfregam com lixívia: primeiro o chão, depois os seus próprios corpos. Criam rituais de cuidado de pele e cabelo que afirmam a sua existência única diante do poder alienador do racismo. O público é convidado a olhar, a observar, enquanto o corpo que a sociedade deseja tornar invisível se torna cada vez mais nu, inevitável e inteiro.

“F(r)esta”, de MeioFio & “Montação”, de Afrontosas

“F(r)esta”: 10 de novembro, no A11 Galleries; “Montação”: 25 de novembro, na Culturgest

Na abertura e no encerramento do Alkantara Festival decorrem ainda duas festas, de entrada gratuita, que celebram o espírito performático de diversas comunidades. No arranque, F(r)esta é o nome da celebração organizada pelo núcleo MeioFio (Ágatha Cigarra e a sua equipa, formada por Era Jaja Rolim, Alex Simões e Renato Kurup), que através das suas pesquisas percorre os propósitos e impulsos da festa e a sua inevitabilidade. No fim do festival, o coletivo Afrontosas traz a sua Montação, uma noite que é uma homenagem às mais variadas formas de fazer festas dos antigos e novos movimentos de celebração da comunidade LGBTQIAP+ negra. É uma forma, explicam, de redimensionar o imaginário das festas queer, que o coletivo frequenta desde sempre – de Lisboa até o Rio de Janeiro, passando por Cabo Verde, Guiné e outras distâncias afro-diaspóricas.

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