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Uma parte do mundo assumiu que Allen era pedófilo ou de alguma forma pervertido, outra partiu do princípio que Mia Farrow inventou a acusação de abuso a Dylan, e um terceiro e muito menos populoso grupo foi verificando factos e acompanhando o caso com prudência na hora de julgar
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Uma parte do mundo assumiu que Allen era pedófilo ou de alguma forma pervertido, outra partiu do princípio que Mia Farrow inventou a acusação de abuso a Dylan, e um terceiro e muito menos populoso grupo foi verificando factos e acompanhando o caso com prudência na hora de julgar

Uma parte do mundo assumiu que Allen era pedófilo ou de alguma forma pervertido, outra partiu do princípio que Mia Farrow inventou a acusação de abuso a Dylan, e um terceiro e muito menos populoso grupo foi verificando factos e acompanhando o caso com prudência na hora de julgar

"Allen vs Farrow": as omissões, as revelações e as dúvidas de uma história que não chegou ao fim com um documentário

Os quatro episódios sobre o alegado caso de abuso sexual há muito que estão disponíveis, mas as informações continuam a surgir. Afinal, o que ficámos a saber e o que não está no documentário?

Do verão de 1992 até aos dias de hoje, Woody Allen levou a vida que quis, passando incólume à acusação de que teria abusado a sua filha adotiva, Dylan – esta é, pelo menos, a visão da própria Dylan, que a transmite no documentário em quatro partes, “Allen vs Farrow”, produzido e transmitido pela HBO.

É verdade que Allen, até há pouco tempo, lançava um filme por ano, atingindo, em alguns casos (como aconteceu com “Midnight in Paris”), os maiores sucessos da sua carreira. Mas, desde o escândalo de 1992, uma boa parte das pessoas passou a vê-lo genericamente como um pedófilo, não obrigatoriamente pelo alegado abuso a Dylan, mas pelo facto de se ter envolvido com Soon-Yi, filha adotiva de Mia Farrow, que era à data a sua companheira. Afirmações do tipo “Ele casou com a filha” são comuns quando se menciona Woody Allen.

Uma parte do mundo assumiu que Allen era pedófilo ou de alguma forma pervertido, outra partiu do princípio que Mia Farrow inventou a acusação de abuso a Dylan, e um terceiro e muito menos populoso grupo foi verificando factos e acompanhando o caso com prudência na hora de julgar.

Quase trinta anos depois, e já após a eclosão do movimento #MeToo, que deu (finalmente) voz aos dramas que antes as mulheres escondiam, chegou “Allen vs Farrow” e ao fim de dois episódios a generalidade da imprensa e dos espectadores estavam convencidos da culpa da Allen; só ao terceiro episódio começaram a surgir textos na imprensa enumerando fatos omitidos ou distorcidos. As reações podiam ter sido ao contrário, já que é justamente no terceiro episódio que se introduzem dados novos, que tornam a posição de Allen mais difícil, o que se repete no quarto.

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 [o trailer de “Allen vs Farrow”:]

A estrutura narrativa de “Allen vs Farrow” oscila entre os relatos de Dylan, o seu irmão Ronan e a mãe Mia (mais alguns amigos da família que funcionam com dispositivo de confirmação de uma série de acusações que Mia faz, como por exemplo Woody sugerir à filha que lhe chuchasse o dedo), e uma vertente policial, com a recuperação de autos da batalha de custódia, relatórios das perícias efetuadas na altura a Dylan e depoimentos de especialistas.

O documentário, contudo, não apresenta um registo jornalístico, visto que jornalismo implica uma precisão factual que está por vezes ausente, e uma distância emocional que aqui nem sempre é alcançada. Segundo os realizadores, nos quatro anos que demoraram a produzir o documentário, a pesquisa que a jornalista que contrataram efetuou levou-os a concluir que Dylan está a ser honesta quando acusa o pai de a ter molestado. A impressão com que se fica é de que os realizadores acreditam em Dylan e quiseram, sobretudo, dar voz à sua versão.

Ainda de acordo com os realizadores, Woody Allen, Soon-Yi (com quem o realizador ainda é casado e de quem tem duas filhas adotivas) e Moses Farrow (filho adotivo de Allen, que está “do lado” do pai) foram convidados a participar no documentário, mas ou recusaram ou não responderam. Allen, em comunicado, rejeita todas as acusações, e diz que foi convidado quando o documentário já levava quatro anos de produção, tendo-lhe sido dadas apenas duas semanas para aceitar o convite. Allen foi mais longe, ao insinuar que este documentário faria parte do recente acordo entre Ronan Farrow (que apoia a irmã) e a HBO, que produz a série e comprou os direitos da escrita de Ronan Farrow (Ronan é autor de Catch and Kill, em que relata como investigou os abusos sexuais de Harvey Weinstein, dos quais foi um dos principais denunciadores).

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É impossível saber se os realizadores queriam mesmo ouvir Allen ou fizeram o convite numa altura em que o documentário já estava finalizado e com data de estreia marcada nos calendários da HBO. Recentemente, a dupla disponibilizou-se a criar um quinto episódio, só com Woody Allen a – presume-se – defender-se, mas ninguém espera que Allen aceite. O que é possível é narrar os factos que são conhecidos e contrapo-los com o que “Allen vs Farrow” mostra, o que não mostra, o que repete do que já se sabia e o que traz de novo.

O que aconteceu em agosto de 1992

Os factos que espoletam “Allen vs Farrow” remontam a 4 de agosto de 1992, um sábado, sendo que na segunda-feira seguinte Allen e Farrow iriam assinar o acordo de custódia dos três filhos que tinham em comum: Dylan, que tinha então sete anos, e era filha adotiva; Moses, que tinha então catorze anos e fora adotado por Mia enquanto mãe solteira e posteriormente adotado também por Allen; e Ronan, que tinha então quatro anos e era filho biológico de Mia Farrow e Woody Allen – pese embora em entrevistas posteriores, Farrow tenha afirmado que Ronan talvez seja filho de Sinatra, com quem foi casada e que, nas suas próprias palavras, terá sido o grande amor da sua vida, ao ponto nunca terem deixado de estar numa qualquer forma de relação (semi-adúltera, visto Sinatra ser casado e Farrow namorar com Allen).

No auge da disputa pela custódia das três crianças os vídeos terão alegadamente sido enviados a várias estações de televisão, que se terão recusado a passá-los. O alegadamente é importante: não há provas de que os vídeos tenham sido enviados, apenas notícias sobre isso.

Os factos, tal como registados nos autos das disputas de custódia, nas perícias a Dylan e nos registos da polícia, são estes: a 4 de agosto de 1992, Woody Allen dirigiu-se à casa de Mia no Connecticut. Quando chegou, esta tinha ido às compras com uma amiga. Os registos telefónicos do carro de Allen mostram que ele chegou à casa 10 a 20 minutos antes do regresso de Mia e da amiga (este facto não é mostrado no documentário); as amas presentes confirmam que Allen não terá chegado mais de dez ou quinze minutos antes de Mia (o documentário não menciona esta parte do depoimento das amas). Estavam seis crianças em casa e três amas, uma delas dos filhos da amiga com quem Mia tinha ido às compras.

Nessa noite, a ama dos filhos da amiga de Mia contou a uma das amas de Mia que tinha visto Allen com a cabeça deitada no colo de Dylan, que por sua vez contou isto no dia 5 a Mia, que terá perguntado a Dylan o que aconteceu, que (de acordo com Mia) terá descrito a Mia o que desde 2014 tem escrito ou contado (numa coluna do NY Times em 2014 e numa entrevista de uma hora em prime-time na CBS); Mia ligou ao advogado Allan Dershowitz, que a aconselhou a ir ao médico; Mia diz a Dershowitz que o acordo de custódia já não vai para a frente e pede-lhe que para atuar como uma espécie de ponte entre as duas partes. Allan Dershowitz foi recentemente acusado de abuso sexual de menores; nem Mia nem Ronan nem Dylan Farrow fizeram qualquer comentário público sobre o assunto.

No dia 5, Mia vai a um médico que pergunta a Dylan onde o pai lhe tocou e Dylan aponta para o ombro. No regresso a casa Mia começa a filmar Dylan, o que fará (segundo Mia diz no documentário) sempre que a filha menciona o assunto. Segundo o depoimento de Monica Thompson, ama de Dylan, as filmagens terão durado dois ou três dias. Citando Monica, a partir dos autos: “Lembro-me da senhora Farrow perguntar à Dylan: ‘Dylan, o que é o que papá fez?’ A Dylan não parecia estar interessada, de modo que a senhora Farrow parava de filmar e depois voltava a filmar outra vez”.

Certo é que a “família” que aqueles dois criaram, pelo menos a partir do momento em que Woody Allen começou a dormir com Soon-Yi, foi profundamente disfuncional

The LIFE Picture Collection via

Monica Thompson não estava na casa no dia 4; só chegou no dia 5; o seu salário era pago por Woody Allen. Kristin Groetke, que fora contratada por Mia para ser ama das crianças nesse verão, estava na casa e disse em tribunal que perdera o rasto de Dylan durante cerca de 20 minutos. Fazendo contas, isso significa que Groetke, que fora instruída a nunca deixar Allen sozinho com a filha, deixou Allen sozinho com a filha nos exatos vinte minutos entre a sua chegada e a chegada de Mia – ou seja, nunca vigiou Allen, o que era a sua função.

Thompson afirmou que Groetke lhe tinha confessado que nunca perdera Dylan de vista e só o dissera porque Mia assim lho pedira e tivera medo de perder o emprego (Groetke era paga por Mia Farrow). Thompson igualmente afirmou que Groetke lhe dissera nunca ter visto Dylan sem roupa interior. Mia despediu Thompson depois deste testemunho. No documentário surge a versão de Groetke, mas não a de Thompson – nem a de Mavis Smith, empregada de Farrow (paga por Farrow) que afirmou nunca ter visto nada de sexual no comportamento de Allen para com os filhos. Não é propriamente afirmar – Allen gravou um telefonema com ela, em que a empregada dizia que Farrow tinha demasiados filhos e que estes eram criados pelas amas e pelas empregadas e que Farrow não era muito boa mãe.

Moses, hoje alinhado com o pai, diz que desde domingo, e durante três dias, Mia ensaiou incessantemente Dylan. No auge da disputa pela custódia das três crianças os vídeos terão alegadamente sido enviados a várias estações de televisão, que se terão recusado a passá-los. O alegadamente é importante: não há provas de que os vídeos tenham sido enviados, apenas notícias sobre isso.

No documentário vemos alguns várias vezes especialistas dizerem que os vídeos são credíveis e que insinuam fortemente que o abuso fosse real. O documentário informa-nos que os especialistas tiveram acesso a todos os 11 minutos de filmagens; os autos do tribunal, contudo, descrevem 15 minutos de filmagens, o que significa que foram cortados 4 minutos aos vídeos de Dylan. Em tribunal, na disputa de custódia, tanto o especialista escolhido por Allen como o especialista escolhido por Farrow disseram, acerca dos 15 (e não dos 11) minutos de filmagem que as perguntas de Mia Farrow “conduziam” Dylan.

Ao contrário do que tem sido alegado por Dylan Farrow, o alegado crime não prescreveu – pelo menos no Connecticut, onde crimes sexuais sobre menores não prescrevem; Dylan pode igualmente optar por um tribunal cível, onde crimes de abuso sobre menores podem ser julgados até a(o) menor fazer 48 anos.

Não é mencionado no documentário que os vídeos apresentados tinham 15 minutos de duração e apenas é mencionada a opinião do especialista contratado por Allen, não a do especialista contratado por Farrow. É nesta altura que o documentário introduz novos especialistas, que veem 11 minutos de vídeo e concluem que pelas imagens provavelmente houve abuso.

Quatro dias depois da primeira ida ao médico, Mia foi a um segundo e Dylan diz que o pai lhe tocou nos órgãos genitais (hoje, mais velha, parece dizer que o pai inseriu o dedo no seu canal vaginal). É o médico que alerta a polícia (o que teria sempre de fazer), e por esta altura já o acordo de custódia havia sido retirado da mesa. Os exames médicos não revelaram qualquer tipo de dano.

A polícia pede uma perícia à equipa do hospital da universidade de Yale (com quem trabalhava regularmente); Dylan é entrevistada nove vezes ao longo de nove meses, algumas vezes na presença da mãe; Yale também entrevistou toda a gente presente nesse dia na casa de Mia. Yale produziu um relatório em que afirmava não acreditar no abuso, porque a criança mudava de versão, tinha um discurso desconexo e, quando acusava o pai, as acusações tinham (cito) “uma qualidade ensaiada”. O documentário desmonta, como veremos à frente, esta perícia. Uma segunda perícia foi pedida por Nova Iorque e chegou à mesma conclusão. O documentário também desmonta esta perícia (e já lá iremos).

O procurador do Ministério Público disse, tanto na altura como agora no documentário, ter “causa provável”, mas preferiu não avançar para não traumatizar mais a criança, mas parece ser consensual entre especialistas legais que seria difícil ter causa provável quando não há prova material (os exames não revelaram nada) e duas perícias ilibavam Allen, além dos testemunhos das psiquiatras de Dylan e de Ronan (que declararam nunca terem visto em Allen nenhum interesse sexual por nenhuma criança).

De qualquer modo, e ao contrário do que tem sido alegado por Dylan Farrow, o alegado crime não prescreveu – pelo menos no Connecticut, onde crimes sexuais sobre menores não prescrevem; Dylan pode igualmente optar por um tribunal cível, onde crimes de abuso sobre menores podem ser julgados até a(o) menor fazer 48 anos.

As mencionadas psiquiatras, pagas por Allen, foram despedidas por Mia Farrow na sequência dos seus depoimentos. Contudo, uma das declarações é usada no documentário, quando se afirma que Allen estava em tratamento psiquiátrico por causa do seu comportamento com Dylan e que a psiquiatra havia descrito esse comportamento como “inapropriado”.

Soon-Yi tinha (na sua e na versão de Allen) 21 anos quando a relação começou, mas Mia garante que terá começado quando ela era muito mais nova

AFP/Getty Images

Aqui parece ter havido alguma confusão por parte dos documentaristas, como qualquer pessoa que tenha lido os autos da batalha de custódia (que são muito fáceis de encontrar) saberá. Quando Ronan tinha 3 anos, a sua dificuldade em criar uma ligação ao pai levou Farrow e Allen a colocá-lo em terapia; a psiquiatra concluiu (e afirmou em tribunal) que Mia tinha um comportamento inadequado com Ronan (basicamente, tomando-o só para si) e que a resposta de Allen a este comportamento havia sido açambarcar “de forma inapropriada” a atenção da filha Dylan. O comportamento inapropriado mencionado é o de excesso de atenção (em ambos os casos) e, de acordo com o depoimento em tribunal da psiquiatra, não tinha contornos sexuais.

Mais ou menos na mesma altura, Allen e Farrow colocaram Dylan em terapia, porque esta isolava-se no seu mundo e tinha dificuldade em distinguir realidade e fantasia. A psiquiatra que tratou Dylan concluiu que o casal estava em visíveis dificuldades, constantemente a atacar-se, e que o stress de assistir à implicação mútua dos pais estaria a prejudicar Dylan. Repita-se que ambas as psiquiatras das crianças eram pagas por Allen e que tanto Allen como Farrow estavam presentes ocasionalmente na terapia dos filhos.

A decisão do juiz foi entregar Dylan, Ronan e Moses à mãe; o juiz foi contundente em relação a Allen: disse não estar tão convencido como Yale de não ter ocorrido abuso, mas na ausência de prova material nada poderia ser feito; declarou-o como incapaz de ser pai e fez notar a sua indiferença perante os filhos que Mia tinha de outras relações bem como a sua indiferença pelo mal que poderia causar ao envolver-se com a filha da namorada.

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Allen teria de esperar seis meses até voltar a ver Dylan, e apenas na companhia de uma assistente social – nunca mais voltaria a vê-la, por razões que divergem, consoante a versão de Allen e a de Farrow; podia ver Ronan uma vez por semana, na companhia de uma assistente social; mas Farrow tornou-se gradualmente mais agressivo com o pai e este afastou-se. Tanto Allen como Ronan mantiveram desde então, e até ao quarto episódio de “Allen vs Farrow”, que nunca mais voltaram a ter qualquer contacto.

Algum tempo depois, Alan Dershowitz, o conselheiro dos advogados de Mia, deu uma entrevista a uma televisão nacional em que afirmava que “Nunca ninguém quis que isto fosse público. [A ideia era que] os advogados se sentassem, chegassem a um acordo e nada se saberia. Mas Woody Allen deu aquela conferência de imprensa e a partir daí isto foi impossível de parar”.

Esta entrevista não surge no documentário, mas deixa entender que em 1992 Farrow talvez não quisesse ver Allen julgado. Mas Allen não gostou de saber que a polícia fora chamada e deu duas conferências de imprensa, uma para anunciar a sua separação de Mia e a sua relação com Soon-Yi; a outra a anunciar que era acusado de abuso sexual e ia pedir a custódia dos filhos.

Estes acontecimentos precedem a batalha de custódia em tribunal, que Allen perdeu; Allen recorreu, mas apesar de a segunda instância ter sido mais benévola com ele (dizendo que acreditavam mais nas perícias realizadas a Dylan que o juiz do julgamento anterior) ainda assim mantiveram a custódia das três crianças com Mia; Allen ainda recorreu uma terceira vez mas o recurso não foi aceite.

Para contextualizar, convém referir que o alegado caso de abuso sexual de Dylan surge meses após Mia Farrow ter descoberto que Woody Allen se envolvera com a sua filha Soo-Yi (filha adotiva de Mia e de André Previn).

Mia, Woody, Soon-Yi, Ronan e Moses

Entender o que significa a palavra “separação”, no caso da relação entre Allen e Mia Farrow, depende da versão de relação que ouvimos. Mia, no documentário, fala de Allen como se ele fosse o homem com quem queria passar o resto da sua vida; em tribunal afirmou que quando estava grávida de Ronan se afastou de Allen e a intimidade (presume-se que o sexo) diminuiu a partir daí; em entrevistas recentes deu a entender que Frank Sinatra podia ser o pai de Ronan e que nunca verdadeiramente se tinha separado do cantor.

Allen, na sua biografia, diz que quando se envolveu com Soon-Yi não tinha sexo com Mia há quatro anos – a partir do momento em que Mia engravidou dele (na gravidez de Ronan) nunca mais o deixou aproximar-se. De certa maneira as duas versões parecem coincidir e apontar para ausência de sexualidade ou intimidade nos quatro anos anterior ao 4 de agosto de 1992.

A relação de Allen e Farrow durou 12 anos e não seguiu contornos tradicionais: Allen nem por uma vez dormiu em casa de Farrow (o que é confirmado pelas biografias de ambos) e só começou a ser visita diária (ao pequeno-almoço e ao fim do dia) quando Dylan nasceu. Ambos tinham a chave de casa um do outro, e foi com essa chave que, meses antes do alegado abuso a Dylan, Mia entrou no apartamento de Allen e encontrou fotografias de Soon-Yi nua.

A relação de Allen e Farrow durou 12 anos e não seguiu contornos tradicionais: Allen nem por uma vez dormiu em casa de Farrow (o que é confirmado pelas biografias de ambos) e só começou a ser visita diária (ao pequeno-almoço e ao fim do dia) quando Dylan nasceu. Ambos tinham a chave de casa um do outro, e foi com essa chave que, meses antes do alegado abuso a Dylan, Mia entrou no apartamento de Allen e encontrou fotografias de Soon-Yi nua; Mia ligou a Allen, que admitiu ter tido sexo com Soon-Yi.

Soon-Yi tinha (na sua e na versão de Allen) 21 anos, mas Mia até hoje garante que a relação terá começado quando ela era muito mais nova, embora a própria idade de Soon-Yi seja de certo modo uma incógnita – aquando da adoção os pais registaram-na como tendo cinco anos, embora exames médicos concluíssem que teria entre cinco e sete anos.

É impossível saber quem diz a verdade, embora no documentário Mia afirme que a empregada de Allen lhe contou que há muito que Soon-Yi visitava o apartamento e que nessas alturas costumava encontrar preservativos usados no lixo de Woody Allen. No documentário, Dylan afirma que viu o pai e a irmã a ter sexo, e embora isto não nos diga do momento em que a relação entre os dois começou, diz-nos da incapacidade de Allen enquanto pai. Esta afirmação de Dylan no documentário coincide com os registos da polícia: na época, e para aferirem do conhecimento que a menina tinha acerca de órgãos genitais, deram-lhe dois bonecos realistas, um de um homem, outro de uma mulher, e ela uniu-os de modo a que o pénis do boneco entrasse na vagina da boneca. Quando lhe perguntaram porque fizera aquilo, Dylan respondeu que via o pai e a mana nesses modos.

Na casa de Mia viviam, além de Mia, nove filhos, seis do seu ex-marido André Previn (três biológicos, três adotados) e os três gerados ou adotados por Allen (Dylan, Ronan e Moses), isto sem contar com empregadas e amas; no documentário é-nos dito que a partir desse momento a vida familiar nunca mais foi a mesma; Mia admite ter dado uma sapatada em Soon-Yi quando soube do caso entre o seu namorado e a sua filha adotiva.

Allen insinuou que este documentário faria parte do recente acordo entre Ronan Farrow (que apoia a irmã) e a HBO, que produz a série e comprou os direitos da escrita do próprio Ronan

Getty Images for TIME

Os relatos da própria Soon-Yi, de Moses e de Allen são diferentes. Allen mostrou, na televisão, um cartão de São Valentim que Mia lhe enviara, contendo uma foto da família em que os corações de todas as crianças eram atravessados por agulhas e o de Mia era atravessado por uma faca em cujo cabo havia sido colada uma fotocópia de uma das fotos que Allen tirara a Soon-Yi nua. Na batalha de custódia, os advogados de Allen alegaram que, não tendo Mia uma fotocopiadora em casa, havia, ao fotocopiar as fotos, cometido um crime. Há rumores sobre as fotos chegarem às redações, que optaram por não as publicar, mas nunca foram confirmados.

Meses depois dar-se-ia o 4 de agosto de 1992 e a isto seguiram-se os tais trinta anos em que, segundo Dylan, Woody Allen continuou a sua vida como se nada tivesse acontecido.

Em 2018, e em resposta a uma sequência de acusações públicas de abuso de Allen a Dylan feitas por Dylan (coluna do NY Times, em 2014, e entrevista de uma hora à CBS em prime-time, em 2016) e Ronan (texto de 2018, além de múltiplos tweets), Moses criou um blog em que num post (“A Son Speaks Out”) relatava o que dizia ser um clima infernal que sempre se vivera naquela casa: os filhos que não eram brancos eram tratados como escravos, espancados regularmente (Mia teria batido com um telefone em Soon-Yi, por exemplo), sofriam maus-tratos ou abandono (um irmão paralisado da cintura para baixo fora deixado ao relento por um incidente menor), eram manipulados psicologicamente ao ponto de serem obrigados a assumir as culpas de atos que não haviam cometido, etc.

Entre os esquemas do pai e a inteligência da mãe: a infância “geneticamente chata” de Woody Allen

Isto, alegadamente, terá piorado após a descoberta das fotos: “Durante meses (…) o mantra [que Mia Farrow repetia aos filhos] era que Woody era “o Mal,” “um monstro,” “o diabo,” e Soon-Yi estava “morta para nós.” (…) Tantas vezes ela repetiu isto que um dia Satchel [agora Ronan] disse a uma das nossas quatro amas que ‘A minha irmã anda a foder o meu pai’”.

Por sua vez Soon-Yi, que concedeu apenas uma entrevista e fez um único comunicado em toda a sua vida, também descreve a vida familiar como uma espécie de campo de trabalho em que os adotados cozinhavam, lavavam desde tenra idade roupa, casa e eram vítimas de agressão e manipulação.

Um eventual exemplo dessa manipulação será a descrição que Mia fez de Soon-Yi enquanto filha de uma prostituta – sendo que não há qualquer registo da mãe de Soon-Yi, muito menos da sua profissão. Para Moses e Soon-Yi, Mia adotava crianças com problemas vindas de lugares longínquos como forma de compensação ou exibicionismo.

Só no quarto episódio do documentário (numa altura em que a imagem que foi criada da vida daquela família é de puro idílio interrompido pelo caso entre Allen e Soon-Yi) se mencionam as acusações de Soon-Yi e de Moses. Nesse episódio Ronan conta que Woody Allen se ofereceu para lhe pagar os estudos a troco de denunciar publicamente as alegadas mentiras da mãe.

Esta simples afirmação é mais complicada do que parece. Por um lado é arrasador para com Moses – a ser verdade que Allen andava por aí a oferecer dinheiro aos filhos a troco de denunciarem a mãe, isso tornaria inválida a descrição que Moses faz da vida naquela casa e dos acontecimentos de 4 de agosto de 1992: Moses diz que o pai passou quase toda a tarde numa sala com seis crianças, havendo ainda mais três amas, previamente advertidas por Mia para nunca perderem Dylan e Woody de vista; isto antes de a mãe chegar, pelo que (segundo Moses) seria impossível que o pai tivesse abusado de Dylan no sótão.

O documentário produz um croqui, feito pela polícia, com um desenho do sótão e do qual consta um comboinho de brincar. Este é o mais rude golpe na defesa de Allen, porque as alusões de Dylan a comboios foram tidas pelas equipas de perícia como inconsistências, delírios.

Mas é exatamente no quarto episódio que se espeta a segunda faca na credibilidade de Woody Allen (a primeira foi espetada no terceiro episódio): no seu post, Moses negava a existência de um comboio de brincar, para o qual Dylan afirma (e afirmava, nas suas naturalmente confusas declarações aos sete anos) ter ficado a olhar enquanto o seu pai abusava dela no sótão.

Mas o documentário produz um croqui, feito pela polícia, com um desenho do sótão e do qual consta um comboinho de brincar. Este é o mais rude golpe na defesa de Allen, porque as alusões de Dylan a comboios foram tidas pelas equipas de perícia como inconsistências, delírios.

As descrições do sótão feitas pelas empregadas e amas na batalha de custódia não falam em comboios; desde a emissão do quarto episódio emergiu na internet afeiçoada a Allen a teoria de que o comboinho (que segundo Moses costumava estar num barracão) havia sido colocado no sótão entre 4 de Agosto e o dia em que a polícia visitou a casa de Mia Farrow no Connecticut onde os eventos terão tido ou não lugar. Mas há um limite para a validade das teorias de conspiração e o croqui do comboinho legitima o relato da pequena Dylan.

Factos contraditórios, frases por explicar

A frase de Ronan, contudo, deixou-me a pensar nas declarações públicas de Allen e Ronan sobre ambos – tanto Allen como Ronan sempre mantiveram nunca mais terem tido contacto desde os quatro anos de Ronan. Tendo Ronan escrito várias vezes sobre o pai (em artigos de jornal, no Twitter, em Catch and Kill) parece justo perguntar porque é que este dado só surge agora? Porque é que das outras vezes em que procurou demonstrar a culpa do pai não incluiu este detalhe e o guardou para o episódio do documentário em que se abordam as declarações de Soon-Yi e de Moses, que não só põem em causa a alegria familiar como denigrem a imagem de Mia e declaram a inocência de Allen?

[o podcast dos criadores do documentário “Allen vs Farrow”:]

O que por sua vez me lembrou que em Catch and Kill, Ronan descreve um telefonema em que Harvey Weinstein pergunta a Woody Allen como sobreviver a este tipo de escândalos. O telefonema é descrito frase a frase, como se Ronan estivesse a escutar o telefonema – de outra forma não poderia citar, frase a frase, o diálogo breve que os dois terão tido, a menos que se tivesse deixado levar momentaneamente pela emoção, o que pode ser justificável no dia a dia mas é-o menos quando se produzem acusações graves.

Todos os jornalistas cometem erros – mas a obrigação dos jornalistas é submeter as suas próprias crenças a testes de stress para verificar se resistem aos factos. No documentário, Ronan afirma que enquanto Woody Allen fez parte da família (um processo que se inicia com o nascimento de Dylan) viu Dylan definhar e fechar-se; Ronan é três anos mais novo que a irmã e a última vez que viu o pai tinha 4 anos (e Dylan sete); à data do suposto abuso, Ronan ainda não tinha 4 anos – como é que um miúdo de, digamos dois anos e meio, três, olha para a dinâmica entre pai e irmã e pensa “A minha irmã está a definhar-se e a fechar-se”?

O compromisso entre os Allen e Farrow também é passível de interpretação – na série há um depoimento de Christina Engelhardt, a suposta musa que terá inspirado “Manhattan”, e que teve um caso Woody Allen dos 17 aos 23 anos. No documentário, Engelhardt não conta o que contou há anos à Vanity Fair: que costumava ter sexo com Allen e Farrow ao mesmo tempo, tendo-se posteriormente tornado amiga de Mia (e, posteriormente, secretária de Jeffrey Epstein).

Engelhardt não terá sido a única musa de “Manhattan”: Stacey Nelkin tinha 18 anos quando se envolveu com Woody Allen e revelou, na época da batalha pela custódia de Dylan, Ronan e Moses, que Farrow a abordou a pedir que testemunhasse que ela tinha 15 anos quando dormiu com Allen. Nelkin voltou a repetir a acusação de cada vez que o assunto veio à baila; ainda repete.

Este é um dos problemas de "Allen vs Farrow": ao omitir detalhes, ao permitir que Ronan faça descrições do estado psicológico da irmã que nenhuma criança de três anos seria capaz de fazer, ao nem por uma vez mencionar o lado negro da família Farrow que está confirmado e é factual, quase que abafa aquilo que tem de incriminatório para com Allen – e tem.

Este é um exemplo de como as coisas se passaram ao longo dos anos: o lado Farrow acusa Nelkin de ter sido paga por Allen; o lado Allen acusa Farrow de hipocrisia. Fê-lo, por exemplo, lembrando que Farrow começou a namorar com Frank Sinatra quando ela tinha 19 e ele estava nos 49 (a favor de Farrow está o facto de Sinatra não ser filho de nenhum namorado dela) ou lembrando que Farrow engravidou de André Previn quando este e Dory, a sua esposa, a receberam após o divórcio de Sinatra (a favor de Farrow está o facto de Previn não ser filho de nenhum namorado dela; contra está o facto de Dory ser, à época, a sua melhor amiga e acabar numa clínica, ao saber da gravidez).

Este é um dos problemas de “Allen vs Farrow”: ao omitir detalhes (como Engelhart ter dormido também com Farrow e as duas terem-se tornado amigas, ou o registo dos telefonemas do carro de Woody Allen, que situam a sua chegada à casa de Mia pouco antes da hora a que Mia e a amiga dizem ter chegado), ao permitir que Ronan faça descrições do estado psicológico da irmã que nenhuma criança de três anos seria capaz de fazer, ao nem por uma vez mencionar o lado negro da família Farrow que está confirmado e é factual, quase que abafa aquilo que tem de incriminatório para com Allen – e tem.

O quarto episódio é demonstrativo disto, com a tentativa de colar a imagem de Allen à de violadores como Bill Cosby e Roman Polanski. Quando Polanski foi acusado de violação, tanto Allen como Mia defenderam-no; Mia continuou a fazê-lo publicamente até 2018, quando do nada, no Twitter, pediu desculpa a Samantha Geimer, a rapariga violada. Esta, numa entrevista, declarou sentir-se “usada por alguém que apenas pretende vingar-se de Woody Allen. Ao fim de 40 anos, Mia Farrow virou costas ao seu amigo Roman, a quem eu perdoei há muitas décadas. Cada um que interprete isto como quiser”.

Em 2018 já Dylan havia assinado uma coluna do New York Times a denunciar o pai; já dera entrevistas de uma hora à CBS; já Ronan escrevera múltiplas denúncias do pai (sem nunca mencionar o suposto suborno); e só em 2018 é que Farrow pela primeira vez disse acreditar em Geimer.

Esse é o lado confuso do documentário, pelo menos para quem conhece a história: havendo comprovadamente tantos factos contraditórios, a versão que nos é apresentada é de um lar beatífico interrompido pelo horror, o que seria perfeitamente credível se não houvesse momentos como aquele em que Mia Farrow diz que adotou muitas crianças porque queria “ter um lar grande e feliz, já que vim de um lar grande e feliz”.

Isto obriga qualquer pessoa que conheça a história da família Farrow (que Mia contou em entrevistas) a questionar-se sobre a definição de felicidade da atriz – e nem sequer precisamos dos relatos de Moses ou de Soon-Yi para isso: quantas famílias com um pai alcoólico e violento (o realizador John Farrow, pai de Mia), uma mãe (Maureen O’Sullivan) e um pai adúlteros, um filho molestador de crianças (John, irmão de Mia, que serviu pena de prisão por abusar sexualmente de várias crianças) e outro, Patrick (irmão de Mia, com quem, segundo Moses, ela tinha discussões constantes) que se suicidou podem ser consideradas felizes?

A estrutura narrativa de “Allen vs Farrow” oscila entre os relatos de Dylan, o seu irmão Ronan e a mãe Mia

Isto não é “diz que disse” – são histórias contadas pela própria Mia ou verificáveis em registos criminais. Mia contou que, no dia da morte do seu pai, este tentou ligar para Maureen várias vezes; estando Maureen fora de casa com um amante, Mia não atendeu o telefone ao pai, que morreu com o telefone na mão. O negrume da família Farrow não acaba aqui.

A prisão de John por abuso sexual de múltiplas crianças durante anos é pública; e no entanto nem ela, nem Dylan, nem Ronan, que acerca do documentário afirmam querer dar voz às vítimas, nunca se pronunciaram sobre o abuso sexual do irmão de John? As crianças abusadas por John Farrow também são vítimas, e não têm a hipótese de escrever editoriais para o New York Times, de dar entrevistas à CBS ou de falarem durante quatro horas num documentário da HBO.

E isto se não acreditarmos em Soon-Yi e Moses – porque se acreditarmos então há mais vítimas nesta família: Soon-Yi e Moses afirmam-se vítimas de abuso físico e psicológico; mas para Moses (que contou que a mãe lhe disse que na infância havia sido vítima de uma tentativa de abuso por um familiar próximo) há ainda mais três vítimas: Tam, Lark e Thaddeus.

De acordo com Mia Farrow, a sua filha adotiva Tam morreu de paragem cardíaca, a sua filha adotiva Lark morreu de pneumonia e o seu filho adotivo Thaddeus não se sabe bem como morreu. Mas há registos médicos e registos de polícia e registos (públicos) de onde Farrow estava quando tudo isto aconteceu: Lark morreu na pobreza, vítima de SIDA, após problemas com drogas – e na sua última semana de vida a mãe estava em missão em África; de acordo com registos policiais, Thaddeus morreu com um tiro no peito, auto-inflingido; e, segundo Moses, Tam morreu de sobredose, após uma discussão com Mia.

As filhas de Lark não aparecem nas fotografias da família Farrow, nem foram, desde então, mencionados em qualquer artigo; mas no quarto episódio, e depois de três episódios em que praticamente só Mia, Ronan e Dylan falam, surge Quincy, a declarar o seu amor pela mãe; nada de surpreendente, não fora o pedido público que a mesma Quincy fizera anos antes, escassos meses antes de ser mãe: estava a pedir dinheiro no GoFundMe para comer.

Entrevistas, depoimentos e perícias

Que deve pensar quem conhece a história para lá do que nos é mostrado neste documentário? Tolstoi dizia que todas as famílias felizes eram iguais, mas os Farrow parecem ter inventado uma nova forma de felicidade, que envolve alcoolismo, violência, adultério, abuso sexual de menores (o de John), suicídio, sida e fome.

Em fundo, a expor à sociedade o caixote do lixo do adversário, há uma batalha de relações públicas entre dois lados com bastante poder. Os realizadores (tal como a família) apresentam o documentário como uma tentativa de dar voz à vítima, na senda do que tem vindo a acontecer desde o nascimento do movimento #MeToo após as extraordinárias revelações de Ronan Farrow sobre a violência sexual de Harvey Weinstein. Mas apresentam o caso como uma espécie de David vs Golias e isso não é propriamente verdade.

Sendo obviamente muito menos rica que Woody Allen, Mia Farrow tem uma fortuna avaliada em 60 milhões de dólares e suficientes contactos para, como conta na sua autobiografia, alterar leis: quando Mia e Previn quiseram adotar um terceiro filho nascido fora dos EUA (já tendo três biológicos e dois adotados fora dos EUA) depararam-se com uma lei que impedia qualquer americano de ter mais que dois filhos adotivos nascidos fora dos EUA. Segundo a biografia de Mia tudo se resolveu com um jantar com os seus amigos políticos, que concordaram que a lei era um disparate, de modo que pouco depois esta foi alterada – e Soon-Yi pôde ser a primeira terceira filha adotiva de um casal americano nascida fora dos EUA.

Mia Farrow telefonou realmente a Woody Allen ameaçando-o de morte e citando o nome de Frank Sinatra (que tinha relações com a máfia), como Allen afirma na sua biografia, e a psiquiatra de Dylan confirmou em tribunal? Woody Allen disse mesmo a Mia Farrow que ela nunca mais trabalharia em Hollywood, como ela afirma no documentário?

Se esta frase vos deixa confusos, então imaginem o que é procurar destrinçar o que são factos reais nesta história. Mia Farrow telefonou realmente a Woody Allen ameaçando-o de morte e citando o nome de Frank Sinatra (que tinha relações com a máfia), como Allen afirma na sua biografia, e a psiquiatra de Dylan confirmou em tribunal? Woody Allen disse mesmo a Mia Farrow que ela nunca mais trabalharia em Hollywood, como ela afirma no documentário? É mesmo verdade que Leslee Dart, a RP de Allen, trocava acesso ao (historicamente recluso) Woody Allen por notícias que minassem a imagem de Mia? E Allan Deschowitz, um dos mais poderosos e conhecidos advogados americanos, não é, ele próprio, uma máquina de RP?

Muitas dúvidas passam pela cabeça de quem viu o documentário, mas já estava bem documentado: terá Woody Allen começado a dormir com Soon-Yi quando ela tinha menos de 17 anos (a idade legal em Nova Iorque)? Parece improvável, mas não sabemos. Em que estado emocional estaria Mia para, como uma ama revelou em tribunal, colar na porta da casa de banho anexa ao quarto de Woody no Connecticut um papel em que se lia:

“MOLESTADOR, MOLESTASTE A MAIS VELHA E AGORA VAIS ATRÁS DA MAIS NOVA”.

Tenha Woody Allen abusado sexualmente ou não de Dylan a 4 de agosto de 1992, é difícil não olhar para estas crianças como vítimas de negligência, manipulação e abuso psicológico – vítimas de pais que não estiveram à altura desse nome (e aqui inclui-se André Previn, que nunca parece estar presente na vida dos filhos).

O que me leva ao terceiro episódio, aquele em que vemos os vídeos de Dylan, que os especialistas consideram fiáveis. Não é a única coisa que eles fazem – eles dão cabo da perícia efetuada por Yale. E com razão: a equipa de psicólogos e assistentes sociais de Yale, a primeira a tratar do possível caso de abuso, rasgou as notas das (nove) sessões em que entrevistou Dylan.

Isto não é uma novidade – na batalha de custódia, o juiz Wilkins chega a dizer que o facto de as notas terem sido rasgadas diminui um pouco a validade do relatório que produziram, porque não permite lugar a questionamento. O que nunca me tinha ocorrido é que isto não fosse prática corrente – perguntei a dois psicólogos que fazem ou fizeram perícias com crianças vítimas de abuso sexual (e também com agressores sexuais e com pedófilos que nunca abusaram de crianças) e ambos deixaram claro nunca na sua carreira, nos seus estudos, enfim, em momento algum terem ouvido falar de rasgar notas como técnica de proteção da criança. As notas fazem parte do “contrato” que há entre o terapeuta e o paciente.

Yale produziu um relatório final em que Dylan é retratada como inconsistente, as notas foram rasgadas. Mais: se as sessões decorreram como se pode inferir desse relatório, então ou a equipa de Yale foi extremamente dura com Dylan ou no início da década de 90 a abordagem ao abuso sexual era muito primitiva.

Nunca saberemos com certeza o que aconteceu, pese embora o sofrimento de Dylan seja claro e as muitas revelações diminuírem a defesa de Allen

Getty Images for Time

Não se chega a uma criança que terá sido vítima de abuso e se pergunta “Então, o teu pai tocou-te aqui?” esperando um relato pormenorizado do evento. Casos de abuso sexual sobre crianças de sete anos são extremamente difíceis de provar na falta de prova material (e no caso o relatório do médico não revelou qualquer dano físico) e inconsistências é exatamente aquilo que seria de esperar numa criança nas condições de Dylan. Em casos como o de Dylan, é preciso criar um cenário terapêutico que permita à criança contar livremente a sua história e assim chegar-se a uma conclusão. (É bom notar que nem sempre se chega a uma conclusão.)

A perícia de Yale surgiu na sequência da denúncia feita pelo médico; posteriormente houve uma segunda perícia que concluiu igualmente que não houve abuso, mas o documentário assinala que quem liderava a investigação foi afastado, e que das suas notas consta uma conversa privada com uma das assistentes da primeira perícia, em que a assistente confidenciava que acreditava na criança. A assistente, entretanto, morreu.

Seja como for, é difícil de entender como é que se conclui por entrevistas, e com base em inconsistências de uma rapariga de sete anos (no caso: uns dias dizer que o pai não fez nada, noutros dizer que ele lhe tocou na zona genital), que não há abuso tout court. E é difícil compreender o afastamento de Paul Williams (que liderava a segunda perícia) do caso – Williams acreditava em Dylan e disse-o em tribunal. O juiz Wilkins, que não apreciava Woody Allen nem um pouquinho, considerou que Williams não era um especialista em abuso sexual de menores e afirmou que era uma violência voltar a obrigar Dylan a passar pelo que qualificava como interrogatórios (a segunda perícia demorou 14 meses). A equipa de Allen afirma até hoje que Williams foi despedido por ser rude e agressivo para com as pessoas envolvidas, mas nenhuma explicação oficial foi produzida para o seu afastamento e despedimento. (Posteriormente, Williams foi readmitido.)

Ninguém sai ileso

“Allen vs Farrow” é um longo retrato de família em que se expõem feridas que muito provavelmente nunca irão sarar, numa narrativa que tem o mérito de desmontar algumas coisas que tínhamos como garantidas (em particular a validade das duas perícias, a honestidade das declarações de Moses e a inexistência de um comboinho no sótão) enquanto esquece outros factos (como os telefonemas feitos do carro de Allen indicarem que naquele 4 de agosto ele chegou a casa de Mia no Connecticut escassos minutos antes de esta voltar das compras, o que o deixaria com muito pouco tempo para executar o abuso).

Como em muitos outros casos em que as alegadas vítimas são muito pequenas e não há prova material, nunca saberemos com certeza o que aconteceu, pese embora o sofrimento de Dylan seja claro e as revelações acima mencionadas diminuírem a defesa de Allen.

O lado Allen sempre se defendeu dizendo que era ridículo que ele fosse abusar da filha pela primeira vez numa casa cheia de gente, dois dias antes de ir assinar um acordo de custódia com Mia, e nos escassos minutos em que esteve com Dylan sem Mia ter chegado. Se é verdade que é raro haver um abusador de uma vez só, não é incomum ocorrer abuso numa casa cheia de gente, porque normalmente o abusador é alguém em quem a família confia. (O que poderá ou não ser o caso, dependendo da ama.) Tanto quanto sabemos, Allen pode até ter abusado de Dylan antes e ela não se recordar – o que não seria de todo discordante do seu comportamento alienado, que levou os pais a colocá-la em terapia.

Como em muitos outros casos em que as alegadas vítimas são muito pequenas e não há prova material, nunca saberemos com certeza o que aconteceu, pese embora o sofrimento de Dylan seja claro e as revelações acima mencionadas diminuírem a defesa de Allen.

Certo é que a “família” que aqueles dois criaram, pelo menos a partir do momento em que Woody Allen começou a dormir com Soon-Yi, foi profundamente disfuncional, ao ponto de este texto ser um resumo ultra-sintetizado de toda a informação que temos sobre o assunto.

“Allen vs Farrow” tem pelo menos uma vantagem: ao mostrar quão absurdo foi o tratamento a Dylan por parte de Yale e da segunda perícia, ao mostrar como há trinta anos se esperava que uma criança produzisse um relato perfeito de uma situação de abuso, recorda-nos o quanto negligenciámos as crianças até ao dia de hoje e lembra-nos novamente que, enquanto sociedade, temos de ser melhores: melhores a ouvir as crianças, a dar-lhes tempo para, no ambiente propício, ganharem confiança e falarem. E lembra-nos que a função de um pai e de uma mãe é, dê lá por onde der, colocar os filhos em primeiro lugar.

Que Dylan encontre paz.

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