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Amaro Freitas: um disco na Amazónia e um piano no mundo inteiro

“Y’Y” é a consagração do pernambucano entre os maiores do jazz mundial. Um novo disco e concertos marcados para Lisboa, Ovar e Braga. Antes, o músico falou connosco sobre o seu piano tropical.

Era de tarde. Seria uma tarde como tantas outras, não fosse uma tarde pós-eleitoral, de feridas abertas, cicatrizes antigas por sarar. O nosso interlocutor, apesar de sentado a um mar de distância, estava a par da cena política portuguesa. “Ele é o tipo de líder que desperta medo em determinadas pessoas e aflora o lado do ser humano que não é a sua melhor versão.” Falava-se de Jair, falando-se de André.

No avesso disso tudo, está Amaro Freitas. Tudo nele gira à volta de conexões, de tal maneira que a palavra conexão chega quase a ser uma não-palavra, do mesmo modo que a palavra natureza é uma não-palavra para os Povos Indígenas. Eles que se compreendem como a própria natureza. Amaro Freitas, sendo conexão, aproxima passado e presente, águas doces e salgadas, civilizações que, ao invés de se subtraírem ou colonizarem, se somam na sua diversidade.

Quando ele se senta ao piano, com os dedos a escorrer seiva, a sua música vira alimento, como o pão que o próprio vendia em jovem, nas periferias do Recife, onde o seu pai era padeiro. “A minha missão com a música é levá-la como alimento e cura. É um pôr do sol oferecido a quem se vê privado dessa hora dourada pela dureza do trabalho. É a celebração da nossa existência, apesar da tristeza.”

Um encantamento que é também um alerta

Apesar da tristeza e dos absurdos da vida, a arte tem o poder de encantar, de nos saciar o espírito e de nos colocar num chão comum. Y’Y, lançado no primeiro dia do mês da primavera, redonda num grande encantamento, onde figuras mitológicas como o Mapinguari (um gigante com olho e boca no umbigo que vagueia pela floresta à procura de alimento) ou Uiara, a sereia-deusa do rio “Velho Chico”, convivem com Naná Vasconcelos, guardião ancestral do berimbau, e Lia de Itamaracá, a cirandeira que é de todos nós. O cenário do encontro de todas estas personagens fictícias e reais é a floresta Amazónica, mais precisamente a região de Manaus, que Amaro Freitas visitou em 2020.

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[o vídeo de “Dança dos Martelos”, um dos temas do álbum “Y’Y”:]

Lá, o músico de 31 anos conviveu com a comunidade indígena Sateré Mawé. “Foi muito sensível e simbólico ouvir frases como ‘pegar água da fonte’, ‘tomar o peixe do rio’, participar em rituais e ouvir os seus cânticos”, diz Amaro Freitas, pausando cada palavra como se ainda estivesse naquela paisagem onde o Rio Solimões e Rio Negro, afluentes do Amazonas, se encontram num fenómeno natural de rara beleza: “Um é cor de barro, o outro é escuro. Estão os dois ali, se encontrando, mas não se misturam. E eu estava no meio desse encontro. Isso é muito incrível.”

O encontro de Amaro com os Sateré Mawé foi um encontro de rios. Eles tocaram-se, observaram-se, ouviram-se, comunicaram, mas não se impuseram um ao outro. Cultura, para o músico crescido num meio evangélico e convertido ao jazz pela palavra de Chick Corea, é partilha, não é apropriação. A partilha de Amaro Freitas começou em 2016, com Sangue Novo, onde o frevo pernambucano se fez jazz, tal e qual a bossa já se tinha feito antes; prosseguiu com Rasif (2018), termo árabe que significa “mar que arrebenta” e que está na origem da palavra Recife; e finalmente com Sankofa (2021), a sua mais forte ligação a África.

Y’Y, por sua vez, é um elo com um outro Brasil, que não é nem preto nem branco, mas indígena. “A Amazónia é muito diferente”, diz Amaro, falando das casas pousadas na água, do som dos golfinhos boto rosa, do sabor das formigas, da carne de jacaré e dos rios flutuantes que se geram a partir da humidade da floresta. “A quantidade de água que é gerada nesses rios é muito maior do que a quantidade de água que desagua no oceano. Essa água é responsável por chover no Rio de Janeiro, em São Paulo e em Belo Horizonte.”

“O som é um dos primeiros acontecimentos no universo. Na criação do universo, é a fala de Deus. Todas as coisas vieram através do trovão. Foi com um estrondo sonoro que nasceu o grande astro sol”, explica Amaro, para quem a música e o som são “um lugar de ancestralidade”.

É por isso que Y’Y não é somente um disco de encantamento ou uma glosa à gloriosa Amazónia (Gloriosa, que dá título a um tema e que é atributo de Rosilda, nome da mãe de Amaro Freitas). É, igualmente, uma chamada de atenção. “O planeta está pedindo socorro há muito tempo. Nós estamos a anular a nossa própria espécie, o que é muito louco! É preciso tomar medidas de proteção mais sérias contra o desmatamento, o garimpo ilegal e o agro-negócio”. A mensagem de Amaro é simples e certeira: é preciso cuidar de nossa Mãe.

O piano preparado de John Cage e um sonho com Naná Vasconcelos

Amaro Freitas pôs-se então a refletir sobre como poderia traduzir estas palavras em música. Se em 2021 nos disse, em entrevista, que queria trazer a sua região para o piano, hoje ele quer ir muito mais longe, enfiando todo o Brasil (o de ontem, agora e do futuro) nas suas teclas. Fá-lo socorrendo-se de um experimentalismo altamente sensitivo, mais do que em prender-se em teorias demasiado herméticas e académicas.

Para conseguir reflorestar e meter toda a fauna da Amazónia em Y’Y, o músico teve que pensar exatamente como um indígena. Ele teve que ser a Amazónia. Isso resultou no álbum mais abstrato da sua ainda curta e muito promissora carreira, um álbum que vai a fundo na desfragmentação das métricas e das fórmulas do jazz e que transforma o género numa coisa só sua, tão brasileira quanto global. Prosseguindo o trabalho que já vinha fazendo com Sankofa, em linha com a técnica do piano preparado de John Cage, Amaro foi buscar apitos e sementes amazónicas, molas de roupa, fita adesiva, chocalhos, tudo o que lhe permitisse adulterar o som do seu instrumento para uma coisa cheia de texturas tropicais. Jogando com esses sons, criou uma narrativa contínua, dividida num Lado A e num Lado B.

Ouvimos Amaro Freitas sabendo-se brasileiro, não deixando de se procurar pelo mundo e de se encontrar na “música preta que ocupa vários lugares”

As primeiras cinco faixas de Y’Y são a floresta a falar connosco. Em Mapinguari (Encantado da Mata) sentimos os galhos e a terra debaixo dos nossos pés, as cobras escondendo-se na folhagem, as árvores agitando os seus ramos, os pássaros exibindo as cores das suas penas; Uiara (Encantada da Água)Vida e Cura traz-nos o canto do boto cor de rosa, graças à utilização do Ebow (dispositivo comumente usado nas guitarras elétricas), e o deslumbre de todos os seres que habitam as águas; Viva Naná surge em jeito de homenagem a Naná Vasconcelos, com Amaro Freitas a transformar cada tecla do piano em fio de berimbau; Dança dos Martelos é trabalhada sobre uma simples sequência melódica e rítmica, explorando os princípios da isorritmia e do dodecafonismo da Segunda Escola de Viena, para anunciar o trovão e o ato da criação divina:

“O som é um dos primeiros acontecimentos no universo. Na criação do universo, é a fala de Deus. Todas as coisas vieram através do trovão. Foi com um estrondo sonoro que nasceu o grande astro sol”, explica Amaro, para quem a música e o som são “um lugar de ancestralidade”. Por fim, Sonho Ancestral fala sobre o modo como os povos indígenas interpretam o sonho, lugar de “conexão espiritual com outro plano de vida”: “Eu tinha sonhado com o Naná Vaconcelos e entendi, através da cultura indígena, que quando sonhamos com uma pessoa é porque essa pessoa queria comunicar connosco.” O Sonho Ancestral de Amaro tem voz de kalimba (instrumento dedilhado oriundo de África, da região do Zimbabué) e cita, num gesto de enorme beleza e simbolismo, Asa Branca de Luiz Gonzaga, essa composição de 1947 que fala da seca no sertão e do chilrear do pássaro como pronuncio das chuvas.

Ao vivo, Y’Y será também troca, conexão e ritual: “Quando as pessoas vão a um concerto meu, estão ali porque se querem conectar com algo maior do que todos nós. Entro em palco a pensar que aquele é um lugar sagrado”.

“Música preta que ocupa vários lugares”

O Lado B começa com a faixa que dá título ao álbum, na qual se ouve pela primeira vez a voz humana, cantando arrastadamente “IêIê” (como se lê Y’Y). O Homem, último ato da criação de Deus, aparece, finalmente, por entre todo o deslumbre natural. É neste ponto que também se vão desvendando as várias colaborações de Y’Y: primeiro, as flautas encantadas de Shabaka Hautchings, depois a guitarra de Jeff Parker em Mar de Cirandeiras, que tem tempero de soul e das cirandas de Lia de Itamaracá; segue-se a harpa cristalina de Brandee Younger, na música dedicada a Rosilda (Gloriosa), e finalmente a comunhão com as percussões de Hamid Drake, o contrabaixo do cubano Aniel Someillan e novamente as flautas de King Shabaka em Encantados, a faixa (não por acaso) mais clássica em termos de estrutura jazzística.

No seu suspiro final, Y’Y” encerra o seu ideal de conexão. Encantados é Amaro Freitas, esse braço do Amazonas, esse jazz enraizado no país tropical, a desaguar no oceano das linguagens globais do jazz e das múltiplas facetas da diáspora africana. É ele sabendo-se brasileiro, não deixando, contudo, de se procurar pelo mundo e de se encontrar na “música preta que ocupa vários lugares” e que tem “o mesmo lugar de partida e o mesmo lugar de saída”.

[ouça o álbum “Y’Y” na íntegra através do Spotify:]

“Faço muitos concertos no Brasil, tenho um grande reconhecimento nacional (principalmente depois da digressão que o juntou a Zé Manoel para reinterpretarem o disco icónico Clube da Esquina) e, ao mesmo tempo, vou ganhando reconhecimento na Europa”, diz, explicando que conheceu Hamid Drake num festival da Macedónia, ao qual juntou os amigos Ariel e Shabaka em estúdio. “São pessoas com as quais a conexão aconteceu de uma forma muito potente. Quando chegámos a estúdio, em Milão, nunca tínhamos tocado juntos, mas naquele momento falávamos a mesma língua. Comunicámo-nos ao mais alto nível possível”. Brandee Younger e Jeff Parker, ela de Nova Iorque, ele de Los Angeles, conheceram Amaro Freitas na Irlanda. Não estiveram com ele em estúdio, mas fizeram questão de gravar as suas falas para que o pernambucano as integrasse no seu discurso. “Com cada um pude viver uma experiência diferente, de muita troca.”

Ao vivo, Y’Y será também troca, conexão e ritual. “Quando as pessoas vão a um concerto meu, estão ali porque se querem conectar com algo maior do que todos nós. Entro em palco a pensar que aquele é um lugar sagrado.” Em Portugal, os lugares sagrados de Amaro Freitas serão o CCB, que celebra a sua estreia em Lisboa (22 de março) – “estive a rodear Portugal, como se come uma papa quente, e agora estou a chegar ao centro” —, o Centro Cultural de Ovar, a 20 de abril, e o Theatro Circo, em Braga, a 13 de julho (no ciclo Julho é de Jazz). “Adoro tocar em Portugal. De todas as vezes que toquei aí, a audiência foi muito vigorosa. Estou muito feliz e empolgado.” Não nos espantemos se ouvirmos botos cor de rosa no Tejo ou na Foz do Rio Cáster.

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