1. No Brasil, o Partido dos Trabalhadores (PT) e muitos outros sustentam que a condenação de Lula da Silva pela prática de crimes de corrupção e de lavagem de dinheiro é um golpe da direita, com fins exclusivamente políticos e sem qualquer consistência jurídica.
Em Portugal, também há quem pense assim. Além de opiniões a título individual, avulta a posição do Bloco de Esquerda, pela voz da sua líder, para quem “a prisão de Lula não é sobre corrupção”, mas fruto de um “golpe contra a democracia (…), da direita reacionária, racista, fascista”.
Não há pior e mais perigosa maneira de avaliar este assunto.
É que o caso é mesmo sobre a inocência ou culpabilidade do ex-presidente pelo recebimento de vantagens indevidas do grupo OAS em razão do cargo que ocupou, as quais se teriam consubstanciado no pagamento da diferença do preço de um apartamento simples para um triplex num condomínio privado em Guarujá, a que acresceria a realização de obras e a aquisição de equipamentos.
2. Ninguém contesta que o Brasil tem um problema grave de corrupção. Tem raízes históricas e culturais, desenvolveu-se no quadro de um capitalismo selvagem e dos poderes fácticos dos “coronéis”, “marajás” e outros caciques, e foi potenciado por uma fragmentação partidária – há 27 partidos representados no Congresso – vulnerável ao tráfico dos votos e das influências.
A chegada de Lula da Silva e do PT ao poder foi feita, em boa medida, em nome do combate à desigualdade social e à corrupção instalada. E a verdade é que os programas sociais desenvolvidos modificaram radicalmente a organização da sociedade e permitiram a saída de milhões de brasileiros do limiar da pobreza.
Porém, os esquemas da corrupção – quer através da compra de votos, quer na institucionalização de redes de “propinas” (subornos) estabelecidas em negócios a favor de funcionários, agentes políticos e partidos – continuaram a prosperar e a contaminar a política e a economia brasileiras.
Os processos judiciais conhecidos por “Mensalão” e “Lava Jato” (entre outros) aí estão a demonstrar, com toda a evidência, essa realidade. No “Mensalão”, as verbas eram obtidas junto de empresas estatais e privadas, que dependiam de favores públicos, de forma a permitir o financiamento do PT e a compra de votos dos parceiros de ocasião. Foram julgadas e condenadas dezenas de pessoas, destacando-se os que levaram à prisão de José Dirceu, ministro-chefe da Casa Civil de Lula, e Roberto Jefferson, líder do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). No “Lava Jato”, foram colhidas provas insofismáveis de um cartel formado pelas grandes empreiteiras do Brasil – Camargo Correa, Odebrecht, OAS, Andrade Gutierrez, Mendes Júnior, Queiroz Galvão, UTC e outras –, que, na contratação de obras lançadas pela Petrobras (a maior empresa brasileira e uma das maiores do mundo no sector da energia, maioritariamente de capitais públicos), pagariam “propinas” (subornos) calculadas em função de percentagens dos valores dos contratos obtidos, as quais serviriam para pagar a dirigentes desta empresa estatal, bem como para corromper agentes políticos e financiar partidos políticos. Há cerca de duas centenas de pessoas a serem investigadas e já terão sido condenadas mais de sessenta (embora com muitos recursos ainda pendentes).
3. A primeira questão é saber se a escolha dos alvos das investigações em curso, particularmente na operação “Lava Jato”, tem uma orientação política.
Nunca é possível saber o que está dentro da cabeça de cada um, mas, com os dados disponíveis (com a ressalva de que são obtidos através de fontes abertas, via internet, particularmente a wikipédia), podemos fazer um juízo, embora não definitivo, acerca da bondade da direcção adoptada pelas acções penais desencadeadas.
No “Lava Jato”, têm sido presos e condenados grandes empresários brasileiros, designadamente os presidentes das grandes empreiteiras, como Marcelo Odebrecht (da Odebrecht), Dalton Avancini (da Camargo Correa), Dario Queiroz Galvão (da Queiroz Galvão) e Otávio de Azevedo (da Andrade Gutierrez). A nível de responsáveis políticos, haverá uma quinzena de pessoas ligadas ao PT sob investigação e, no âmbito dos partidos que apoiam o actual presidente, Michel Temer, mais de quarenta. Mas, em matéria de condenações, o peso é maior para o lado do PT, com cinco condenações – Lula da Silva, José Dirceu (também condenado no “Mensalão”), António Palocci (ex-ministro), António Vargas (ex-vice- presidente da Câmara dos Deputados) e João Vaccari Neto (tesoureiro) –, enquanto, na actual maioria, o PMDB tem duas condenações – Eduardo Cunha (ex-presidente da Câmara dos Deputados) e Sérgio Cabral (ex-governador do Rio de Janeiro) –, o PP outras duas – Pedro Correa (ex-líder) e João Cláudio Genu (tesoureiro) – e o SD uma – Luiz Argolo (ex-líder).
Porém, no PSDB, tradicional oposição ao PT, não há ainda condenações, muito embora se anunciem investigações a dirigentes de primeira linha, como Aécio Neves, líder do partido de 2013 a 2017, senador e principal adversário de Dilma Roussef nas últimas presidenciais (igualmente alvo de um outro processo, após ter sido gravado a pedir 2 milhões de reais a Joesley Batista, dono da JBS, uma referência mundial na indústria alimentar).
Há claramente uma menor celeridade nos procedimentos que envolvem deputados e senadores, que gozam de um foro privilegiado no Supremo Tribunal Federal. E, entre os grandes partidos, o PSDB é o menos beliscado, mas a verdade é que esteve na oposição durante a governação de Lula da Silva e de Dilma Roussef.
Por outro lado, a complacência perante Michel Temer e uma severidade injustificada em relação a Dilma Roussef são da exclusiva responsabilidade do Congresso, nada tendo a ver com o poder judicial.
Assim, numa apreciação objectiva e desapaixonada daquilo que se conhece, não se pode sustentar que a operação “Lava Jato”, particularmente quando visa Lula da Silva, esteja viciada por uma motivação de perseguição política.
4. A segunda questão tem a ver com a observância ou não, na acção movida contra Lula da Silva, dos princípios de um processo equitativo, tendo designadamente em conta as dúvidas que têm sido suscitadas quanto à colaboração premiada e à sua prisão antes do trânsito em julgado da condenação.
A colaboração premiada – expediente através do qual se beneficiam agentes do crime em contrapartida da ajuda prestada à investigação, incluindo a incriminação de outros envolvidos na acção criminosa – é um instituto que pode ter uma aplicação perversa, levando à compra de perdões judiciais em prejuízo de inocentes ou fomentando puras vinganças. Porém, é um instrumento imprescindível na luta contra o crime organizado, de forma a vencer a regra do silêncio – a “omertà” das redes criminosas –, já que, e no caso da corrupção, esta envolve quem paga e quem recebe, pelo que, se todos se calarem, fica muito dificultada a descoberta da verdade.
O problema está na regulação da colaboração premiada em termos que possam atenuar os riscos de uma eventual perversidade do sistema, sem anular as vantagens da solução. Mecanismos dessa natureza estão previstos, embora com diferentes modalidades, em ordens jurídicas democráticas, como acontece nos E.U.A., Reino Unido, Alemanha, Itália, Espanha e Portugal (muito embora, no nosso caso, com uma expressão diminuta, mas com uma dimensão até muito alargada na legislação do combate à droga, onde a ajuda na recolha de provas para a identificação ou captura de outros responsáveis pode dar lugar à dispensa de pena). Ademais, as convenções internacionais para o combate ao crime organizado e à corrupção também recomendam a sua adopção.
No Brasil, a lei em vigor (de 2013) está em linha com essa preocupação, ainda que, a meu ver, vá longe de mais, designadamente quando admite o perdão judicial (total) e não proíbe ou limita significativamente as colaborações premiadas de quem já está preso. Todavia, e bem, está sujeita a um controlo judicial e pressupõe que nenhuma sentença condenatória seja proferida apenas com fundamento nas declarações do agente premiado. Em qualquer caso, não só a colaboração premiada não teve uma relevância determinante na condenação de Lula da Silva, como os aspectos em que foi considerada observaram a legislação brasileira.
No que respeita à prisão preventiva após a confirmação da condenação por tribunal de 2.ª instância, a decisão segue uma jurisprudência firmada no Supremo Tribunal Federal desde 2016, a qual não me parece que traduza qualquer entorse ao Estado de Direito ou ofensa a princípio constitucional. A presunção de inocência deve ser conjugada com outros princípios (é por isso desde logo que há prisão preventiva) e naturalmente a sua relevância esbate-se à medida que as condenações vão sendo confirmadas pelas diferentes instâncias judiciais. A execução provisória da pena de prisão após condenação judicial é comum nos países anglo-saxónicos e está prevista em várias ordens jurídicas da Europa Continental; não ofende a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, sendo consentânea com as regras de um processo equitativo.
Em Portugal, a lei não permite a prisão antes do trânsito em julgado (a não ser quando haja prisão preventiva), mas eu trocaria de bom grado essa garantia por um efectivo escrutínio da matéria de facto na 2.ª instância, onde infelizmente falhamos rotundamente, tantas vezes em prejuízo dos arguidos, da verdade e da justiça.
5. No “Lava Jato”, aquilo que mais me impressiona negativamente – e julgo desconforme com os valores que reputo de essenciais num Estado de Direito, tendo por referência o padrão da Convenção Europeia dos Direitos do Homem – é a circunstância do juiz da investigação/instrução ser o mesmo que profere a sentença de 1.ª instância. Sérgio Moro será um magistrado competente e mover-se-á por boas razões. Porém, depois do envolvimento que teve no apoio à acção do Ministério Público no quadro da investigação, não estará em condições de assegurar a imparcialidade exigível quando se trata de julgar.
Todavia, esta é a norma do direito brasileiro – para Lula da Silva e para todos os outros –, não estando sequer a ser discutida a sua legalidade ou constitucionalidade. O art. 399.º, § 2, do Código de Processo Penal é taxativo: “O juiz que presidiu à instrução deverá proferir a sentença.”.
Em suma, a acção penal exercida contra Lula da Silva tem respeitado as regras do direito brasileiro, as quais, no geral, observam os nossos quadros de um processo equitativo, com a excepção flagrante da circunstância de o juiz de julgamento ser o juiz da instrução, o que, contudo, é incontroverso no Brasil.
6. Finalmente, a terceira questão é se Lula da Silva está inocente ou é culpado da concreta acusação que lhe foi movida. Como se compreenderá, perante a controvérsia suscitada, sem ter acesso aos documentos e à integralidade das declarações prestadas, não posso, nem devo arriscar a formulação de qualquer juízo. Limitar-me- ei a avaliar a consistência da decisão proferida.
A sentença de Sérgio Moro – a qual veio a ser confirmada pelo tribunal de apelação, com agravamento da pena – é um extenso documento, com 238 páginas, que marca desde logo pela clareza e pelo debate das questões que estavam em cima da mesa, reproduzindo os segmentos dos documentos relevantes e longos excertos das declarações em que se funda.
A um nível mais geral, foi enquadrada a acção da OAS no esquema criminoso de cartel, que envolveu as grandes empreiteiras do Brasil nos negócios com a Petrobras, o que está fundamentado de forma convincente. Relativamente às vantagens conferidas a Lula da Silva e sua mulher, Marisa Letícia Lula da Silva, a sentença, no que me parece essencial, funda-se no seguinte:
- i) na análise da documentação que demonstraria que a aquisição do triplex em apreço sempre teria sido intenção do casal, desde 2005 até 2014;
- ii) na avaliação das contradições das declarações prestadas por Lula da Silva, as quais seriam desconformes com essa documentação;
- iii) nos depoimentos prestados por quatro co-arguidos (dois condenados a penas de prisão e dois absolvidos), as quais corroborariam a tese da acusação, sendo muito impressionante o do presidente da OAS, José Adelmário Pinheiro Filho, que descreve com detalhe a forma como tudo teria sido negociado com Lula da Silva, o qual, no final, teria até pedido para que fossem destruídas as provas que o pudessem incriminar;
- iv) nas declarações de funcionários da OAS, que confirmariam que o triplex sempre teria sido destinado ao casal, sendo especialmente relevante o depoimento de Mariuza Aparecida Marques, engenheira responsável pela assistência ao cliente, que contactaria directamente com Marisa Letícia, tratando-a como a efectiva destinatária do apartamento;
- v) no reconhecimento generalizado dos funcionários da OAS no sentido de que o triplex nunca fora posto à venda, nem destinado a outra pessoa, não sendo política da empresa fazer obras ou adquirir equipamentos em função de pedidos formulados por potenciais compradores;
- vi) na circunstância de que essas obras e a aquisição dos equipamentos teriam sido efectuadas segundo as instruções de Marisa Letícia e do filho Fábio, sendo contratadas e pagas pela OAS até à prisão do seu presidente (em Novembro de 2014), ou seja, para além da visita de Marisa Letícia ao apartamento efectuada em Agosto de 2014, data a que, mais tarde, em 2015, reportou a sua desistência ou desinteresse na aquisição em apreço;
- vii) no facto de que, segundo várias declarações – mormente as do presidente da OAS e do director da Área de Óleo e Gás –, os pagamentos efectuados a favor do apartamento do casal teriam sido imputados ao acerto de contas decorrente do ajuste fraudulento de licitações em obras contratadas com a Petrobras.
Em face do que vai dito e da análise que qualquer um pode fazer do texto da sentença, que é acessível via internet, podemos concluir, sem rebuço, que se trata de uma peça jurídica bem estruturada e consistente, revelando elevado nível argumentativo e técnico. Contra Lula da Silva, joga sobretudo a materialidade das obras feitas e dos equipamentos adquiridos, na sequência de sugestões/pedidos da mulher e do filho, o que funciona como uma corroboração relevante das declarações dos co-arguidos. Por outro lado, julgo que a parte mais frágil da sentença tem a ver com a prova de que essa factualidade consumada em 2014 se reporta a acertos de corrupção – do conhecimento de Lula da Silva – provenientes do tempo em que ele ainda era presidente (2003-2011).
Tenho lido que a debilidade da prova produzida nunca permitiria uma condenação em Portugal ou num país verdadeiramente democrático. Só por desconhecimento absoluto da realidade é que alguém pode defender essa tese.
Confinando-me a Portugal, tenho visto inúmeras decisões bem menos convincentes e fundamentadas. Sem querer desviar-me do tema, convido, quem quiser saber, a comparar a fragilidade da prova que levou à condenação de José Penedos ou Armando Vara na “Face Oculta” com o texto de Sérgio Moro, que manifestamente exibe um maior grau de assertividade.
7. Lula da Silva é uma personalidade fascinante. A sua história de vida merece que respeitemos o seu direito a clamar pela inocência. Se assim for, espero bem que a consiga provar no caminho que ainda tem pela frente.
Mas é inaceitável querer transformar este caso numa sublevação do Estado de Direito. Ainda para mais nos termos irresponsáveis a que temos assistido, o que — isso sim — poderá pôr em risco a democracia e fazer mergulhar a economia brasileira num pântano de agravada ineficiência e corrupção.