Aos 20 anos, o guitarrista André Santos chegou a Lisboa vindo da Madeira, quando o irmão, Bruno Santos, também guitarrista, já era músico e professor de profissão. Cada um foi fazendo o seu percurso, contando discos, colaborações ou concertos com gente respeitosa como Mário Laginha, Lena d’Água, Salvador Sobral ou Bernardo Sassetti.
Até que, aquilo que começou como uma brincadeira na sala de estar de casa dos pais, onde o mais novo aprendia os acordes e o mais velho aproveitava-se do irmão “como cobaia”, transformou-se num projecto, o “Mano a Mano”, que vai agora no quarto disco, sendo que os irmãos começaram a tocar juntos em 2010/2011. E desta vez trata-se de O Disco de Natal. O que está lá gravado é precisamente aquilo que se lê no título: música de Natal.
O primeiro concerto de apresentação deste novo álbum acontece esta quarta feira, 3 de dezembro, Teatro Baltazar Dias, no Funchal, com uma sessão extra às 18h00, porque a das 21h00, entretanto, esgotou. Dia 17 regressam a Lisboa, agora, sim, juntos, para apresentar o novo trabalho no Teatro Villaret. Jazz, blues, “Jingle Bells”, terá direito a tudo. Só não vai aparecer um coro gospel ou a Mariah Carey (que se saiba). Isso fica para outros natais em família.
[ouça “O Disco de Natal” na íntegra através do Spotify:]
Com ou sem Covid-19, o disco já estava em mente, depois de um desafio de um músico amador madeirense, José Carlos Martins, que os convidou para fazer uma homenagem aos Beatles e, depois, os desafiou a fazer um disco de Natal com guitarras e cordofones. Dos ensaios à gravação, chegaram depressa também às memórias de natais passados. Dos tempos em que ficava ansiosamente à espera das prendas, vem-lhes à memória, por exemplo, um tio que lhes oferecia sempre discos. Ou as primeiras guitarras e as primeiras lições de acordes: ”À medida que o André foi evoluindo, comecei a aprender também com ele. Nunca tinha usado pedais e efeitos, por exemplo, e, de vez em quando, peço-lhe ajuda. Não há essa coisa de um querer imitar o outro. Inspiramo-nos”, confessa Bruno Santos nesta conversa com o Observador.
Já sobre épocas menos festivas, os dois têm conseguido manter atividade nestes tempos de pandemia. Bruno Santos, que também é diretor pedagógico do Hot Club de Portugal, refere mesmo que a decisão de não baixar salários naquela instituição foi “uma boia de salvação”. André Santos também não “baixou os braços”, aproveitou para trabalhar neste disco e começar o “Cordas Soltas”, rubrica digital de conversas com outros guitarristas, como Pedro Jóia ou Peixe (Ornatos Violeta, Pluto). “Foi quase uma coisa egoísta de querer aprender, de curiosidade, porque as perguntas eram quase dúvidas existenciais minhas”, comenta.
Quanto ao futuro, não se lançam em previsões. Acreditam que o talento e a formação portuguesa, da qual são ambos produto, vai continuar a dar cartas. Mas dependerá sempre mais do aluno do que do professor. E é possível que irmãos e músicos que trabalham juntos não se chateiem. Promessa dos manos Santos. Até porque o mais velho mudou as fraldas ao mais novo.
Este é o regresso de “Mano a Mano”, com um disco natalício. Música alegre para tempos difíceis. Não deve ser fácil manter o espírito…
André Santos (AS): Tentamos não baixar os braços, continuar a criar. Claro que tivemos uma diminuição grande de concertos, tínhamos alguns marcados no início do ano, foram quase todos adiados. Mantivemos alguma atividade, como trabalhar para este novo disco, que já estava em mente, mas não foi porque não tínhamos nada para fazer. Decidimos não desistir e mantê-lo.
Mas porquê o Natal?
AS: Partiu de um concerto em homenagem aos Beatles, no Teatro Baltazar Dias, na Madeira, onde vamos tocar no dia 3 de dezembro. Quem o pensou foi um músico amador e médico, o José Carlos Martins, baterista de uma banda emblemática da ilha, dos tempos dos nossos pais. Gosta muito de “Mano a Mano” e desafiou-nos para participar. Numa das reuniões que tivemos para acertar pormenores, perguntou se não queríamos fazer um disco de Natal. Porque não havia um com instrumentos como a guitarra ou cordofones. Fomos apanhados de surpresa, inicialmente tivemos receio, porque era mais um disco de Natal, mas no fim, achamos que tínhamos um som especial e começámos a trabalhar neste repertório natalício.
A música desta época costuma ter a companhia de uma voz ou de um coro. O registo aqui é completamente diferente.
AS: Sim. No outro dia alguém me dizia para fazer uns vídeos de Youtube, tipo Karaoke, para a malta se divertir… Logo aí é uma mais valia não ter a letra. Partimos com vantagem, fazemos só versão instrumental, é mais fácil descolar.
Vocês correm o risco de “destruir” muitos Natais. Aquela parte do dia 24 em que a família decide cantar…
AS: Agora o pessoal vai deixar de ouvir discos cantados. Se for um sucesso fenomenal, vamos ter de fazer, como fazemos nos nossos discos, vários volumes. Uma enciclopédia…
Partiram sempre da mesma base universal? Como é que foi o processo?
Bruno Santos (BS): Não era à partida uma escolha fácil, porque há muito repertório. Fizemos uma pré seleção onde definimos que teríamos uma quantidade disto e daquilo, como uma lista de supermercado.
AS: Lista de prendas de Natal.
BS: Apontámos três ou quatro de cada estilo: jazz, tradicional, madeirense e não só, e erudito. E depois fazer um tema de cada. Foi essa a premissa base. Há temas lindíssimos, mas fomos escolhendo a meias. Já o arranjo e a adaptação dos “Manos”, foi dividido também. Tivemos ensaios, mais em jeito de laboratório. Chegámos a doze ou treze temas, mas poderiam ser uns 50.
Quem vai ver estes concertos pode ser apanhado de surpresa…
BS: Quem nos conhece sabe que usamos voz pontualmente, quando temos convidados. O nosso registo é o instrumental. E sabem que, mesmo sem voz, conseguimos dar a volta, aproximar as pessoas da nossa música. Mas é esse tipo de desafios que nos aguça o espírito.
AS: Queria só acrescentar que as nossas guitarras e cordofones cantam, atenção.
É verdade. Faço a mesma pergunta do início ao irmão mais velho: como é que tem sido aguentar o barco? Já agora também pergunto pela situação do Hot Club de Portugal.
BS: Tenho a sorte de estar ligado ao Hot Club há vários anos. Tenho uma relação de amor e contratual como diretor pedagógico. Tiveram a boa vontade de manter as ligações a 100%, continuaram a pagar aos professores e aos funcionários. Foi uma boia de salvação. Claro que preciso de outras coisas, porque não é suficiente o que ganhamos lá. Já a parte dos concertos foi complicada, muita coisa adiada e suspensa. Tenho consciência de que há muita gente em piores condições. Não me posso queixar, sabendo que há quem tenha ficado pior.
Qual a vossa relação com o Natal? Tendo dez anos de diferença, as experiências podem ter sido diferentes…
AS: Tenho boas memórias e sei que o meu irmão também. Havia sempre música a tocar, não me lembro exatamente o quê. Recentemente, os meus pais digitalizaram os VHS todos e percebi que tocava boa música. Temos um tio que sempre nos ofereceu, tanto nos aniversários como no Natal, muitos discos. Recebi a minha primeira guitarra no Natal. Até me lembro que tinha duas caixas no sapatinho para recebermos uma guitarra cada um. Num desses vídeos até dá para ver o meu irmão a dizer-me para fingir que estou a fazer um solo e a dar-me indicações sobre onde pôr os dedos. Lembro-me dos pequenos-almoços prendados… boas recordações.
BS: O André tinha reacções parecidas com aquelas que a minha filha tem agora. Aquela coisa de abrir um presente, de nos agarrarmos ao segundo já sem querer saber do primeiro. Lembro-me dele fazer isso e eu também. Era uma excitação.
AS: Num desses vídeos estava a abrir os bonecos dos Transformers, completamente maluco.
Já pensou em dar uma guitarra à sua filha?
BS: Já. Nesta fase não precisa, agarra nas minhas e vai tocar. Se calhar é uma boa razão para lhe oferecer. Vive e convive com música diariamente. Será para breve.
Houve algum disco que tenha ficado desse vosso tio? A que recorram de vez em quando?
AS: Não tenho a certeza se veio do tio ou não, mas recebi um walkman com uma cassete, e tínhamos o hábito de gravar os discos. Lembro-me de um disco do Djavan, chamado “Malásia”, que ainda hoje oiço e gosto muito.
BS: Sim, também me acompanha. Não é um disco de Natal, mas foi o nosso tio que nos ofereceu. Deve ter quase 30 anos…
Li algures que todo este percurso começou com uma brincadeira. Qual foi?
AS: O meu irmão já tocava. Comecei por imitá-lo, depois quando conseguia tocar mais regularmente os acordes, o Bruno usava-me como cobaia. Era uma aprendizagem boa para os dois. Quando fui viver para Lisboa, encontrávamo-nos e no Natal tocávamos muito juntos. Aproveitei essa altura para sugar essa informação.
BS: Confirmo tudo.
Nunca houve o dilema de um irmão mais velho ter sucesso e o outro seguir o mesmo rumo com o peso do nome de família?
AS: Pensei que agora ia ficar um silêncio constrangedor…
BS: Nunca pensei muito nisso. Achei normal que o André tivesse decidido ser músico e guitarrista. Toca desde criança. Aconteceu tudo de uma maneira bastante natural. Conseguimos conquistar o nosso espaço, seja com “Mano a Mano” ou individualmente, sem atropelos. Está tudo bem.
AS: Nunca falámos disso. Os meus pais achavam que estava só a querer imitá-lo sem pensar bem no assunto. Quando disse que queria ser músico, houve essa dúvida. De que não ia levar muito a sério, mas foi só no início. Havia um certo fantasma a pairar de ser irmão de um guitarrista já consagrado e quis demarcar-me do estilo, preocupava-me mais com isso. Levou-me a descobrir outras coisas. Quando estava a estudar em Amesterdão, um amigo confessou-se que dizíamos, no fundo, a mesma coisa, mas por palavras diferentes. Notava-se a génese, mas falávamos de forma diferente.
Um é mais racional, outro é mais criativo. Algo que vai resultando.
AS: Pode ser, pode ser. Não vamos dizer quem é quem…
BS: Quem nos conhece bem percebe que temos estilos diferentes. Quando começámos a tocar, o André estava a aprender. E eu tinha pouco para aprender com ele. Só que à medida que foi evoluindo, começou a passar-se o inverso. Nunca tinha usado pedais e efeitos e, de vez em quando, peço-lhe ajuda. Foi possível ter dois sentidos quando o André passou a ter alguns argumentos. Não há essa coisa de um querer imitar o outro. Inspiramo-nos.
AS: É verdade, sim senhor.
Nessa temporada em Amesterdão, o vosso projeto esteve parado. Foram falando do que poderia ser este “Mano a Mano”? E o que é que levou dessa experiência para este duo?
AS: Ficou em suspenso, mas a apresentação do primeiro disco já estava a viver lá, penso. Fizemos alguns concertos. A nível de criar ou pensar num álbum novo, ficou parado. Ajudou-nos a perceber que queríamos focar-nos no duo, que essa era a nossa força e onde éramos mais especiais. De Amesterdão trouxe os cordofones madeirenses. Fiz uma tese de mestrado, descobri-os e comecei a tocá-los. Pensei que queria ter menos projetos e focar-me neles, como o “Mano a Mano”.
BS: Nunca tinha mexido num cordofone tradicional. Aí há três anos, o André apareceu no meu jantar de aniversário com um saco.
AS: Eram uns transformers…
BS: Não… Ofereceu-me um rajão. Obriguei-me a tocá-lo e usei-o no segundo disco do nosso projecto. Foi uma novidade que ele importou de Amesterdão. E nessa altura percebemos que tínhamos de trabalhar em repertório original e fazer algo mais a longo prazo. Serviu para isso e para ganhar maturidade.
Olhando agora para o futuro: boas perspetivas para os guitarristas que vêm aí? Ou a Covid-19 vai adiar o sucesso?
AS: Independentemente desta altura crítica, é sempre uma incógnita. A certeza é não baixar os braços. Quer estejamos em crise ou não. É trabalhar, fazer coisas. E esperar que dê resultados.
BS: Tenho dificuldade em prever o futuro. Eu e toda a gente. Este tempo de pandemia, além dos efeitos imediatos, vai trazer algumas alterações. A maneira como olhamos para isto, a postura dos programadores, por exemplo. Vêm aí tempos novos, não sei se melhores ou piores. É mais difícil, hoje em dia, apresentar projetos que tragam alguma novidade. Há muito a acontecer. É tudo mais imediato. São muitas incógnitas… acho que não disse nada de jeito…
Não há respostas erradas. A formação musical em Portugal tem trazido muitos talentos que depois conseguem ter uma carreira, até internacional. Vocês sendo um “produto” dessa formação e também professores, como é que avaliam estes últimos anos?
AS: Os níveis variam muito. Como professor, tanto posso apanhar um aluno completamente desinteressado, que não evolui, semana após semana. Como apanho alunos incríveis. Há cada vez mais músicos, para o bem e o para o mal, se estivermos a falar numa ótica de mercado. Tento ter a abordagem que tiveram comigo e que funcionou: apelo ao lado autodidata e à curiosidade. O aluno tem um papel fundamental. Claro que passo ferramentas, mas incito à procura. Porque isto dos professores poderem dar informação, de haver tanta coisa na internet, pode fazer do músico alguém preguiçoso. E, em vez de ter compreensão pela música, fica algo mais mecânico e cerebral.
BS: Dava aulas no Hot Club desde 2000 e na Escola Superior de Música em 2009, quando o ensino do jazz se tornou oficial. Notei que a expectativa de muitos alunos era a de ter um grau académico. Havia ali uma confusão entre esse grau e o conhecimento e a curiosidade. Esse é o lado mau de um país como o nosso, que alimenta muito a ideia dos graus. Talvez seja exagerado, mas a escola é um sítio onde se aprende, não onde se ensina. E isso perdeu-se um pouco. Sei que é polémico, mas isto é fundamental. Por causa da dinâmica, existe uma movida essencial, porque estamos com mais 300 pessoas que querem fazer o mesmo que tu. Mas é preciso querer aprender. Está mais na mão dos alunos do que na mão dos professores. Sendo que os bons músicos têm sempre alguma coisa a ensinar.
O André que teve uma rubrica chamada “Cordas Soltas”, onde fez conversas com vários músicos. Tem uma veia jornalística?
AS: Gosto de conversar, de facto. Mas o que me move não é a veia jornalística, é a curiosidade. Estou sempre a aprender com esses músicos. Comecei por fazer umas entrevistas no meu site, onde entrevistei uma data de artistas, quase sempre partindo de dúvidas existenciais minhas. Eram quase sempre as mesmas. Era também para ficar mais elucidado. Nesta rubrica mais recente, o confinamento fez-me refletir e praticar mais sobre a guitarra. Foi quase uma coisa egoísta de querer aprender, mas também altruísta, ao partilhar com as pessoas.
O que é que o surpreendeu mais nessas conversas?
AS: Ui, agora assim destacar… muitos músicos já admirava, como o Peixe, dos Ornatos Violeta, mas nunca tinha falado com eles. Perceber o que vai nas suas cabeças. O Pedro Jóia, por exemplo, já o conhecia, mas nunca tínhamos falado sobre guitarra e as suas histórias. Contou-me que, quando começou a tocar, e sendo que esteve sempre muito ligado à guitarra de flamenco, houve uma cantora meio pimba que o convidou. O lado financeiro, na altura, foi importante para ele aceitar. Inventou um nome para o disco: “Guitarra Pepe Santa Maria”. É uma história maravilhosa.
Já o Bruno fez umas sessões no quintal com o Ricardo Toscano. Chateou muito os vizinhos?
BS: Foi natural. O Ricardo foi meu vizinho durante um ano e meio, agora já não é. Tocámos muitas vezes juntos, mas nunca dentro do prédio, pelo menos um com o outro. Cada um em sua casa, sim. Um dia a Rita Redshoes sugeriu que tocássemos juntos no quintal. Às quatro da tarde montámos tudo, tocámos uma hora, os vizinhos vieram à janela, um ofereceu-me um bolo, outro um picante. Perguntaram se íamos voltar e voltámos. Decidimos fazer em direto para as redes sociais. Fizemos 50 sessões. Já fizemos alguns concertos fora dos quintais. Não é algo que esteja pensado, mas sei que há quem se vá lembrando disso. Tivemos um convite para ir ao Norte tocar. Não estamos a investir, mas há sempre quem nos desafie a ir a “outro quintal”. Nunca tinha tocado tantas vezes seguidas com o mesmo músico.
AS: Eram os músicos mais sortudos da pandemia. Os únicos que tocavam juntos e tinham público. Estavam os músicos todos do mundo à procura de uma solução digital para tocar juntos. Eles tocavam e tinham público.
Bastava morar no mesmo prédio. Última pergunta: vocês nunca se chateiam por coisa nenhuma?
AS: Acho que não. Quando há alguma diferença, resolvemos facilmente. [alguém ao fundo diz: “À chapada”] É isso, exato. Sabemos dar o braço a torcer. Não somos demasiado orgulhosos, pelo menos um com o outro. Funciona facilmente.
BS: Não me lembro de nenhuma situação de costas voltadas. Tanto na parte pessoal como profissional. Sabemos encaixar quando temos de ouvir. De experimentar outros caminhos. A postura é bastante aberta.
AS: Mas, no final do dia, o meu irmão mudou-me as fraldas. O que é que posso dizer? Não posso mandar vir muito. Tenho de baixar a bola. Um dia serei eu a mudar-lhe…
BS: Espero que não te esqueças disso.