886kWh poupados com a
i

A opção Dark Mode permite-lhe poupar até 30% de bateria.

Reduza a sua pegada ecológica.
Saiba mais

i

Joana Linda

Joana Linda

André Henriques: o punk rocker de família quer arriscar por conta própria

O vocalista dos Linda Martini lança-se a solo. Em entrevista, fala de um álbum que fez meio fortuitamente, de canções pop que não consegue fazer redondinhas e de como mudou de vida há pouco tempo.

Podia ser uma história clássica, clichê: vocalista de banda que existe há muitos anos (neste caso, quase 20) farta-se, arruma as trouxas, põe-se a andar, começa uma carreira a solo. O tempo traz inevitavelmente desgaste, mas a história de André Henriques não é essa.

O vocalista, letrista e guitarrista dos Linda Martini continua feliz na banda fundada em 2003, não tenciona abandoná-la e continua a ter no rock a sua força motriz. Não por oposição a isso, mas paralelamente a isso, lança-se agora em algo diferente: um projeto musical a solo. Na próxima sexta-feira, 13 de março, edita o primeiro álbum que gravou e compôs com o seu nome. Chama-se Cajarana.

A capa do álbum do músico português, um desenho e auto-retrato feito pelo próprio que serve de metáfora ao tom do álbum: André fez uma série de desenhos, acabou por escolher o primeiro para a capa

A história deste primeiro álbum a solo do cantor, compositor e guitarrista começa em 2016. Coincidindo com uma mudança de vida profissional — para se dedicar finalmente à música a tempo inteiro, abandonou um trabalho full-time que era “um emprego do qual ninguém se despede, onde ganhava bem, tinha uma boa posição” —, começou a compor canções para outros intérpretes, como Cristina Branco.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

De repente, ao começar a escrever para outros, André Henriques descobriu um método diferente daquele que conhecia das bandas em que esteve: em vez de acertarem todos democraticamente as coisas, em vez de os instrumentos comandarem as canções e a letra só ser escrita no fim, agora o texto comandava a canção. Bastava uma guitarra, a voz e a história certa para contar, mais pessoal ou ficcional — essa era a base, o resto vinha depois por instinto.

Apesar de o novo método o ter interessado, não foi instantaneamente que André Henriques começou a pensar em agrupar canções mais cruas, menos rockeiras e mais descarnadas, para um álbum a solo. Isso, garante em entrevista ao Observador, não lhe passou pela cabeça imediatamente. “Nunca tive o desejo, a intenção, o sonho de fazer um disco a solo”, garante.

Acontece que há cerca de um ano, André Henriques ficou com duas canções escritas que não tinham destinatário e que lhe pareciam não encaixar no universo do rock poético mas ruidoso e elétrico dos Linda Martini. “E se tentasse?”… quem sabe não daria um disco. Uma coisa diferente. Deu mesmo. Primeiro só com a guitarra, o caderno, a garganta e o telemóvel para registar, o músico definiu o esqueleto das canções. Depois, já com músicos em estúdio e com o produtor Ricardo Dias Gomes (antigo colaborador de Caetano Veloso, entre outros), deu-lhes corpo sem as encher de artifícios ou efeitos, para que não perdessem um tom cru e humano.

Esta quinta-feira, André Henriques sentou-se à conversa com o Observador para falar de quase tudo. Falou das especificidades das canções deste álbum, das mais ficcionais, quase histórias de filme, àquelas em que está a falar da sua vida e das pessoas de quem gosta, como “Tecido Não Tecido”, “As Melhores Canções de Amor” e “Uma Casa Na Praia”. Falou da tendência da sua escrita para contar histórias e descrever cenas e universos quotidianos: “Acontece pegar em palavras ou expressões que às vezes estão na nossa boca, mas que não entendemos como sendo poéticas ou especiais”, reconheceu.

[“Uma Casa na Praia”:]

O músico explicou ainda como está sempre à procura de introduzir “um venenozinho, uma maldade”, em canções que não quer demasiado polidas, demasiado redondinhas, demasiado direitas, demasiado pop. Recordou, ainda, a adolescência no punk-rock e na música hardcore, que o levaram a crescer sem nunca pensar que isto da música poderia ser uma carreira a tempo inteiro. E explicou o motivo para a mudança radical de vida, que também inspirou versos deste disco: “Pensei: não quero ser isto, não quero ser este exemplo para os meus filhos, não quero que cresçam com um pai que é completamente frustrado porque gostava de fazer uma coisa e não a faz só pela questão financeira.”

Já se habituou a dar entrevistas sozinho?
Noutras vidas, com os Linda Martini, o normal é fazermos sempre os quatro porque, enfim, é um contexto de banda e a ideia, mesmo na disposição que temos em palco e na forma como falamos à imprensa, passa por não existir um líder, um ponta de lança. Claro, já dei entrevistas sozinho no passado, porque às vezes revezamo-nos. Agora estou sozinho a falar de um disco com o meu nome, essa é a coisa mais estranha: um disco ter o meu nome.

"Nunca tive o desejo, a intenção, o sonho de fazer um disco a solo. Estive sempre bastante confortável com a ideia de fazer música em banda. Mas tinha duas canções que não tinham destinatário. E apeteceu-me pela primeira vez: e se eu cantasse isto e tentasse fazer isto de uma forma diferente?

A vontade de fazer um disco a solo começou pela vontade de escrever letras mais pessoais ou pela vontade de explorar um tipo de som que não encaixaria no som da banda?
Se calhar não é bem uma coisa nem a outra. Durante estes anos todos cresci sempre em bandas. Mesmo antes dos Linda Martini tive muitas outras bandas, desde os meus 13, 14 anos. Portanto diria que toda a minha produção musical, tudo o que fazia de textos e músicas, era trabalho em contexto banda. Se calhar por essa razão nunca tive o desejo, a intenção, o sonho de ter um disco a solo. Estive sempre bastante confortável com a ideia de fazer música em banda, porque parte da magia está em partilhar e ter um diálogo com outras pessoas. Para este disco, apesar de ser um disco a solo e todas as músicas serem feitas por mim, também chamei músicos com quem queria partilhar o palco e os arranjos.

Nunca pensei sequer em fazer um álbum a solo, não foi uma coisa que me tirasse o sono. Quando é que isto começou a mudar? Em 2016 fui convidado pela primeira vez para escrever para outros intérpretes, nomeadamente a Cristina Branco. Entretanto tive outros convites de outras pessoas, abriu-se uma janela diferente na minha cabeça. Porque a banda foi sempre uma coisa muito instrumental, todos os elementos têm linhas de melodias e de destaque e a voz tipicamente aparece no final. Normalmente trabalhamos em conjunto os instrumentais, ideias que vêm de casa ou não, e a letra vem depois. E o que acontece quando se escreve para outra pessoa é: a outra pessoa tem músicos, eles vão fazer arranjos por cima do que foi enviado, portanto o que envio é um esboço, uma maquete. Ali, a canção despida tem de funcionar e o texto por si só é o que vai lançar a canção à frente. Quando começo a escrever para ela começo a encontrar uma fórmula diferente de compor, que me deu um gozo do caraças e que percebi que é muito mais imediata. Enquanto no contexto de banda, com guitarras e tudo a acontecer, é preciso encontrar os espaços e perceber onde encaixar e o que é relevante dizer para ajudar a canção, ali não, é o texto e a melodia é que vão ditar tudo.

Essa ligação entre as duas coisas, quando resulta…
É, letra e melodia, basicamente. Isso abriu uma janela ali na minha cabeça, mas mesmo assim nunca me deu vontade de fazer coisas para mim. As pessoas pediam-me, comecei a escrever para a Cristina Branco e para outras pessoas. Ia fazendo também discos com Linda Martini e o grosso das coisas que ia fazendo, tanto na guitarra como com a voz, ia sempre para a banda — até que o ano passado, em 2019, por altura de março ou abril, tinha acabado de escrever umas músicas que me tinham pedido. Já tinha respondido a todas as encomendas.

A paternidade, o amor, a relação entre trabalho e ócio e trabalho e prazer são alguns dos temas do álbum de André Henriques (@ Joana Linda)

Joana Linda

Há algumas encomendas ainda por sair?
Há, algumas ainda estão para sair, sim. Mas naquela altura tinha ficado ali com duas canções que não tinham destinatário e que senti pela primeira vez… para já, não encaixavam, pelo menos na minha cabeça, na banda. E apeteceu-me pela primeira vez: e se eu cantasse isto e tentasse fazer isto de uma forma diferente? Foi a primeira vez, foi mesmo o ano passado.

Sempre admirei as pessoas que fazem discos a solo pela capacidade que têm de conseguir levar um projeto destes para a frente sem terem ninguém ao lado a partilhar as dores, as angústias, as frustrações. Sabia que tinha aquelas duas canções, não sabia se tinha vontade de fazer mais mas funciono muito pela lógica de prazos. Na altura falei com o Pedro [Trigueiro] da [agência musical] Arruada, com quem já trabalhei e de quem continuo a ser amigo, e disse-lhe: olha, isto nunca me passou pela cabeça, não sei se é uma loucura ou não nem sei o que vai ser, mas tenho duas canções. Se me mandares um e-mail com um Excel, como costumas fazer, com um prazo, um calendário para ver se eu terei mais canções, talvez a coisa funcione. Conversámos, tomámos um café, ele mandou-me um e-mail e um mês e tal ou dois meses depois tinha 12, 13 canções, até fiz mais do que as que estão no disco. Nem sei como.

"Foi [o disco] uma coisa de fazer e não olhar. Não caí naquela tentação de ir remexer muito, retocar, regravar, pôr aqui mais uns pozinhos. Queria que fosse uma coisa simples, crua, não muito pensada. Se fosse muito pensada se calhar a meio ainda me ia arrepender."

Foi assim tão inesperado?
Em tudo o que tenho feito musicalmente sou muito demorado, tanto nos textos como na composição, no instrumento. Aqui foi uma coisa de fazer e não olhar. Não caí naquela tentação de ir remexer muito, retocar, regravar, pôr aqui mais uns pozinhos. Queria que fosse uma coisa simples, crua, não muito pensada. Se fosse muito pensada se calhar a meio ainda me ia arrepender, ia começar a pensar ‘será que eu sou isto, será que faz sentido lançar um disco já tendo uma banda, será que vai existir alguém que ache piada a isto?’. Se me debruçasse demasiado tempo em fazer um disco a solo se calhar ele acabaria por não sair. Foi melhor assim.

Face a uma banda, aqui há uma dependência menor de outras pessoas, do que elas entendem ser melhor. O que gostou mais e menos nesta experiência de poder fazer um disco em que pode tomar decisões sozinho sobre as canções, em que pode estar mais no comando?
O que gostei menos já disse de alguma forma: a ideia de se não ter com quem partilhar as dores. O processo de banda é muito menos solitário e quando estou em processo de composição sou um bocado inseguro. Há pessoas diferentes, às vezes tenho conversas sobre isso e percebo que há músicos e compositores que não gostam de mostrar nada a ninguém até terem o produto acabado. Eu não sou facilmente influenciável, mas há uma insegurança em mim que faz com que assim que tenha uma ideia que sinta que é mais ou menos, vou logo mostrar. Faço-o, por exemplo, em contexto banda. O facto de estar a fazer sozinho limita muito isso. Tive o Ricardo [Dias Gomes] que me ajudou a produzir, entrou um bocadinho a meio quando já tinha as minhas músicas avançadas. Diria que a parte pior é essa.

A parte melhor, não sei… não é que não falasse de coisas pessoais num contexto de banda, também falo, mas quando se partilha o palco com outras pessoas é preciso ter em conta que se temos de sair da sala de ensaios e temos de identificar-nos musicalmente com o que estamos a fazer, o mesmo vale para os textos. Se aqui estou a falar dos meus filhos ou da minha mulher, é algo mais pessoal.

Uma canção como a “Tecido Não Tecido”, em que canta sobre a paternidade e a sua experiência de pai, faz mais sentido ser lançada a solo, na sua cabeça?
Sim, completamente. Esse tipo de assuntos não quer dizer que no futuro não entrem [na banda] mas até agora não tinham muito espaço na minha cabeça para entrar em Linda Martini. Diria que se calhar o texto abriu um bocadinho mais de mim, porque este é um espaço próprio para isso.

"A pior coisa que me poderiam dizer é que fui fazer um disco mas fiz algo igual à minha banda. A tentação em que tentei não cair foi precisamente entrar por aí."

Ainda assim, em Linda Martini as canções já têm letras com um tom poético, delicado, diferente do que é mais useiro numa banda rock. Apetecia-lhe aqui despir as vestes rockeiras das canções, tirar um bocadinho o barulho, o volume, a intensidade?
Sim. Também gosto muito de rock e a música que faço no contexto de banda deixa-me muito feliz, também me revejo muito nela. Para mim o mais fácil até seria ir por esse lado. Mas a pior coisa que me poderiam dizer é que fui fazer um disco mas fiz algo igual à minha banda. A tentação em que tentei não cair foi precisamente entrar por aí.

Nem sequer tinha guitarras acústicas antes de começar a compor para este disco. Não tinha! Nunca fui aquele gajo de tocar viola em casa. Só muito recentemente é que comprei uma guitarra velha, no Ebay, que não afina, é toda torta, não dá para tocar ao vivo mas ajudou-me muito. Mais de 80% do disco foi feito em casa com aquela viola em frente ao iPhone, antes de levar as músicas ao Ricardo [Dias Gomes]. Mas é um bocado isso, houve um esforço consciente, na própria instrumentação dos músicos que escolhi para estarem ao meu lado, para puxar por sintetizadores e percussão [diferente]. Chamei o Ivo [Costa], um baterista que admiro, e disse-lhe: não vamos ter uma bateria convencional, não quero ter um prato de choques e tarola. O Ivo está a tocar no disco uns tambores quase tradicionais portugueses, que também já usou com a Carminho e com outros músicos [que acompanha]. Tem adufos, tem outras peças que não são de uma bateria normal.

Há um comunicado anterior em que refere a vontade de expor neste disco a fragilidade das canções. A vontade de ter aqui canções mais expostas e cruas, com ter uma vulnerabilidade mais evidente, tem alguma coisa a ver com a fase de vida em que está?
Diria que mais do que uma fase é uma coisa de que gosto muito e que admiro na música que consumo enquanto ouvinte: o lado humano. O estúdio proporciona momentos incríveis, epifanias, permite ter muita coisa para experimentar e pintar o que se quer de várias cores. Mas também tem um terreno perigoso: com o digital é possível fazer, refazer, modificar a voz, puxar a nota para cima. Não há ninguém que cante mal nem que toque mal hoje em dia, se não quiser parecer isso.

Até tenho dificuldade em assumir-me como músico, gosto de fazer música, mas nunca estudei música, não sei que notas é que vou fazer na maioria das vezes. Se alguém me perguntar: ah, mas como é que tocas isso? Tenho de mostrar, não sei que notas são. Quando falo de fragilidade é essa: estou a fazer uma coisa com os recursos que tenho, que fui aprendendo e desenvolvendo ao longo da minha vida com as pessoas que me rodeiam, mas é o meu ponto de vista. Interessa-me essa fragilidade, a noção da minha capacidade quer como cantor quer como instrumentista e a noção de que elas não devem ser demasiado retocadas. Foi assim no processo [de composição], foi assim na gravação: gravei em seis dias, não houve grandes maquilhagens, foi uma coisa muito rápida.

Isso é muito notório, basta ouvir logo o primeiro tema, muito lo-fi, a “Espelho Meu”.
Precisamente, por isso é que quis que a abertura do disco fosse com a “Espelho Meu”, que para mim é a entrada ideal. Cheguei a gravar uma versão desse tema em estúdio, mas ia para casa ouvir, antes de começarmos a misturar o disco, e soava-me a falso. Era um “take” direto, era eu sentado, com uma guitarra ao colo, com voz e guitarra a serem gravadas em simultâneo. Mas havia qualquer coisa de falso porque o estúdio é muito asséptico, aquilo parece que soa demasiado bem. Pensei: a entrada do disco não pode ser esta.

Sou muito leigo nos programas de edição de áudio, de gravação. Nunca me interessei em mexer e não percebo nada daquilo. Então o que faço normalmente é estar com o telefone à frente, estar com a guitarra e gravar no telefone. Acabei por fazer isso. No dia em que íamos começar a misturar o disco, antes de levar os putos à escola fechei-me lá na casa de banho e gravei aquilo, os dois ou três minutos que demora a música. Ficou assim. Porque elas na verdade começaram por surgir na sua maioria assim. A primeira vez que o Pedro [Trigueiro] as ouviu, que o Ricardo [Dias Gomes] as ouviu ou que a banda as ouviu foi assim, no meu telefone, na viola, às vezes a acertar na nota e às vezes a desafinar. A guitarra também não ajudava. E é isso. A verdade é essa e a fragilidade vem muito daí: isto não é um disco de canções perfeitas e redondinhas nem eu queria que fosse. Falava disso com o Ricardo: cada canção tinha de ter uma ‘maldade’.

"Às vezes faço canções que têm progressões quase clássicos e na minha cabeça penso em como é que lhes tiro o chão, como é que no próximo acorde, aqui ou ali, posso fazer com que aquilo não seja exatamente o que o ouvinte está à espera. Tem de haver maldade, tem de haver um veneno."

Quer explicar essa ideia da maldade?
Tem a ver comigo e já vem de trás, no contexto da banda. Às vezes faço canções que têm progressões quase clássicas e na minha cabeça penso em como é que lhes tiro o chão, como é que no próximo acorde, aqui ou ali, posso fazer com que aquilo não seja exatamente o que o ouvinte está à espera. Tem de haver maldade, tem de haver um veneno. É uma das coisas que me dá mais gozo no processo de fazer música, é escolher quase um venenozinho para cada canção. Há o exemplo da “Para Me Aleijar”: é uma música que na sua estrutura é muito clássica, mas depois não há propriamente refrão. Acontece muitas vezes no disco a estrutura de versos-refrão não estar lá. Se calhar até seriam canções mais pop, mas porque é que tenho de ter um refrão? Foi uma coisa que entretanto se convencionou e agora parece que as canções têm de ter refrão para ficar na memória das pessoas, para passarem na rádio, têm de ter os 3 minutos certinhos… É uma coisa que gosto de subverter.

Nessa canção, “Para Me Aleijar”, que é uma canção que fala de uma paixão meio tortuosa, pela pessoa errada, lembrei-me de um disco do Scott Walker de há muitos anos que tem uma canção… aquilo deve ser uma orquestra inteira a fazer aquilo, mas eles estão todos numa nota suspensa e torta durante toda a música. É um contraste do caraças, ouve-se aquilo nos phones e o gajo está a tocar uma música completamente clássica, de crooner, quase Frank Sinatra, mas na música toda ouves um zumbido. Disse ao Ricardo: vamos ouvir esta canção do Scott Walker e na minha canção toda vamos pintar também uma nota ali por cima. Essa ideia de haver um veneno… gosto dessa ideia, de não fazer exatamente aquilo que é esperado numa canção.

O nome do disco, Cajarana, tem a ver com o nome de uma personagem de uma telenovela brasileira, que ficou como alcunha do André…
Sim, por breves instantes.

[“E de repente”, um dos temas do álbum a solo que o vocalista, letrista e guitarrista dos Linda Martini edita na próxima sexta-feira, 13 de março:]

Refere até que esse foi um momento de desconforto e construção de identidade. Esse André Henriques que de repente era André Cajarana, quem era, que expectativas tinha sobre a vida que viria a ter?
Nessa altura não imaginava nada. A telenovela é do final dos anos 1970. Passou em Portugal por volta de 1984 ou 1985, quando eu tinha 4 ou 5 anos. Para já, nessa altura estava completamente longe desta ideia de música, de pensar em ser músico. Gostava de cantar com o microfone lá em casa, mas os meus pais não eram músicos, não havia nenhuma ligação à música nem eu a poderia adivinhar.

A alcunha foi uma coisa que não pegou. Aliás, não sei se tenho memória desse momento ou se a memória já vem dos relatos que os meus pais me contaram depois. É uma altura da vida em que não sabemos exatamente quando começa a memória. A história que me contam é de eu chegar a casa muito triste, de lágrimas nos olhos, a dizer que os meninos da escola me tinham chamado Cajarana. Um miúdo com 4 ou 5 anos ainda não tem bem noção de si e do outro. Para mim, na altura, devia ser uma coisa terrível, o meu nome era André Henriques, nem tinha idade para ver a telenovela, porque é que aqueles tipos me andavam a chamar outro nome? Por isso é que digo que é uma memória de desconforto, de identidade. Achei que era a metáfora perfeita para este disco, porque alguém como eu que passou uma vida inteira dedicado a uma banda e a fazer música com amigos, de repente quando lhe dá essa epifania de ‘vou fazer um disco a solo’ vêm as interrogações. Daí a “Espelho Meu”, a música de entrada.

Já tinha escrito alguma canção, mesmo que disfarçada, sem que se percebesse, tão claramente sobre a paternidade, sobre como é para si isto de ser pai, como a “Tecido Não Tecido”?
Como está [tão claramente] nessa música, não. Acho que a única vez em que isso transpareceu há-de ter sido numa canção do disco Turbo Lento, de Linda Martini. O meu filho agora fez sete anos, nasceu em 2013 [o mesmo ano em que a banda editou o álbum em causa].

É o mais velho?
É, foi o meu primeiro filho. A tal canção dos Linda Martini, que é o “Tremor Essencial”, tinha a ver com esse momento que atravessava. Foi um ano difícil: na primeira vez em que fui pai, fazer um disco com isso tudo a acontecer foi uma coisa que na altura transpareceu. Mas são temas que às vezes tenho dificuldade não só em meter no contexto de banda, porque quero escrever coisas que também os representem e não sejam só sobre mim, mas também porque tenho dificuldade em escrever com uma pessoa concreta na cabeça. É das coisas mais difíceis e desconfortáveis para quem está a escrever canções, acontece-me também na “As Melhores Canções de Amor”. Claro que são coisas que se experienciam e conhecem de viva voz, mas quando se está a falar de relações — seja com os filhos, com a pessoa com quem se vive, com o pai ou com a mãe — é uma coisa tão próxima que qualquer coisa que se escreva dá receio de não fazer jus àquilo que é a pessoa, aquilo que é a relação.

"Acho que esta foi a primeira vez em que consegui falar sobre pessoas que são tão próximas de mim sem que isso causasse uma insegurança tamanha que não conseguisse pôr as coisas cá para fora."

Há um receio de não conseguir traduzir a pessoa para música?
De não conseguir traduzir! Dei por mim já várias vezes… não diria que a tentar, porque não gosto muito de forçar processos de escrita. Mas já várias vezes apareceram-me frases na cabeça, tentava puxar para ver se vinha ali qualquer coisa e já tenho vários esboços no passado que não chegaram a ser nada precisamente por essa incapacidade que tinha. Acho que esta foi a primeira vez que consegui desbloquear isso.

Nos primeiros versos dessa “Tecido Não Tecido”, canta: “Uma casa, um amor, um T2, duas máquinas de lavar. Dois biberões, muitas papas depois”. Há aqui uma quantidade de palavras, e até um imaginário que não são habituais em canções de pop-rock. Às vezes é um universo mais pomposo, com mais floreados e referências mais abstratas, menos mundanas. De onde veio o apelo para este tipo de escrita? Na música portuguesa não havia uma quantidade assim tão grande de modelos semelhante quando os Linda Martini apareceram…
Sim, quando começámos a fazer coisas em português era difícil sequer termos coisas contemporâneas que nos inspirassem. Tínhamos os clássicos, íamos lá sempre buscar coisas, mas fora isso tínhamos os Mão Morta, que sempre adorámos e de que sou fã. Tínhamos e temos os Clã, os Ornatos Violeta já teriam terminado. Havia muito pouca coisa além disso.

Esse tipo de escrita… já algumas pessoas, amigos próximos, falaram-me nisso. Não é uma coisa consciente, mas acontece pegar em palavras ou expressões que às vezes estão na nossa boca mas que não entendemos como sendo poéticas ou especiais. Isso tem muito a ver com as coisas que gosto. Como gosto, por exemplo, de humor de observação, aquela coisa quase Seinfeld de haver um episódio inteiro sobre a forma como uma pessoa come ervilhas, se é uma de cada vez ou não.

Interessam-lhe mais esses pequenos detalhes, esses pequenos traços de comportamento e da vida?
Sim. Há muito o debate sobre o que pode ser distintivo. Já tudo foi inventado, já toda a gente tem guitarras, sintetizadores e baterias, toda a gente já fez isto à sua maneira. O que pode ser realmente distintivo é a forma como se olha e expõe o olhar. Tal como no humor, na pintura, em outras formas de expressão.

"A ideia de pegar em coisas que são do nosso dia-a-dia e torná-las especiais de alguma forma foi sempre uma coisa que adorei. Neste disco não tenho o mesmo aprumo que tenho no instrumento, estou mais atrás da voz e das voltinhas e do texto que ele vai contar."

É olhar de forma mais concreta, pormenorizada, e falar disso — não tanto de generalidades mais abstratas?
Sim, sim. Sempre adorei escrever. Ao longo dos anos, com a música que me abriu mais a porta disso, comecei a aprimorar ainda mais o gosto. Mas essa ideia de pegar em coisas que são do nosso dia-a-dia e torná-las especiais de alguma forma foi sempre uma coisa que adorei. Essa “Tecido Não Tecido”, não fazia ideia de que isso existia mesmo. Se se for à farmácia, pode-se pedir compressas de tecido não tecido. São umas compressas secas. Chama-se “tecido não tecido” porque aquilo parece tecido mas não é, é feito de uma forma qualquer sintética ou com uma cola, algo assim. Tem esse nome incrível. A primeira vez que a médica me disse “compre compressas tecido não tecido”… [risos].

Como os Linda Martini afinam o seu amor-combate para os Coliseus: fomos a um ensaio e saímos KO

Essa canção fala sobretudo sobre ser pai de duas crianças e ter outras coisas para fazer além de ser pai, e de muitas vezes — e todos os pais e as mães acho que passam por isso — pensar: “porra, também quero ser eu, quero continuar a gostar deles e dar-lhes tudo o que precisam, mas também tenho de ter tempo para as minhas coisas, tenho de tentar renascer ali um bocadinho daquele Vietname que é a paternidade nos primeiros meses e tentar ter tempo para mim, para nós, para um casal. É importante”. Achei que essa metáfora do tecido não tecido era incrível para falar disso, de alguém que sente que está ali a tentar ser a melhor pessoa possível nos dois mundos que tem na sua vida e tenta equilibrar a balança. Mas sempre gostei disso. Tenho muitos exemplos do passado, da banda, de pegar em frases, expressões…

Em coisas que tradicionalmente não são muito “cançonetizáveis”…
Uma pessoa de que gosto muito e que faz isso há muito tempo é o Pedro da Silva Martins [Deolinda]. Tem uma capacidade incrível de pegar em coisas dessas, expressões, provérbios, coisas populares que já tomamos como adquiridas e nas quais já nem pensamos, descontruí-las e tirar alguma coisa lá de dentro. Acho piada a isso. Não o faço da mesma forma, de modo algum, é uma pessoa de cujo trabalho gosto muito mas fazemos coisas diferentes. Mas é um exercício de que gosto muito.

As próprias palavras têm o seu tempo, a sua cadência. A maioria destas… nem compliquei muito. Na “Platão Pediu um Gin”, o título é o início da canção. Na “Com o Seu Melhor Chapéu” também acontece, “As melhores canções de amor” também é uma expressão que se ouve logo de início. Às vezes acontece-me aquela coisa de não saber bem como e surgir uma frase. Essas são algumas. Por exemplo, os versos “escolheu o seu melhor chapéu, saiu de casa”: um dia estava em casa e apareceu-me isto na cabeça. Pensei: isto é o grande início de uma canção, porque se ouvisse isto numa canção ou num filme ia querer perceber o que acontece a seguir. Sento-me à guitarra e começo a cantar e pela primeira vez desde que começo a escrever para outras pessoas houve essa coisa: a melodia e as cadências das sílabas, das coisas que vão surgindo, vão ditando o resto, vão ditando a canção. Neste disco não tenho o mesmo aprumo que tenho no instrumento, estou mais atrás da voz e das voltinhas e do texto que ele vai contar. E depois a melodia também acaba por ser muito baseada no texto que está a ser contado. O próprio texto é melódico, ele é que te vai desenhar. Neste disco tanto a letra como a melodia aparecem em simultâneo.

"A primeira vez que peguei numa guitarra, tinha uns 12 ou 13 anos e não sabia tocar nada. Fiz uma banda com amigos porque gostávamos de música, mas nenhum de nós sabia tocar. Numa semana um dizia: ah, sou o baterista. Depois trocava-se. Íamos para casa de algum e fazíamos playback com umas raquetes de ténis a ouvir Metallica, Megadeath..."

As letras têm palavras que tradicionalmente não estão muito em canções. As canções têm detalhes “tortos”, como referia, para fugir às convenções pop-rock mais fortes. No disco vai-se sentindo alguma tensão ao longo do álbum. Quando é que esse tipo de canções menos redondinhas e que não são as que “dispõem bem” começaram a interessá-lo como ouvinte, como pessoa que gosta de música?
Acho que desde o início. A primeira vez que peguei numa guitarra, tinha uns 12 ou 13 anos e não sabia tocar nada. Na altura adorava os Metallica, os Nirvana. Foi foi um ano ou dois antes de chegar ao punk-rock. Fiz uma banda com amigos porque gostávamos de música, mas nenhum de nós sabia tocar nada. Numa semana um dizia: ah, eu sou o baterista. Depois trocava-se na semana a seguir. Íamos para casa de algum e fazíamos playback com umas raquetes de ténis a ouvir Metallica, Megadeath, uma coisa desse género [risos].

Não sabíamos tocar nada. Até que houve uma miúda na minha turma — isto é uma história clássica anos 90 — que era a Filipa, que era dos escuteiros… E tal como a maioria dos escuteiros, por causa dos acampamentos e tal, sabia tocar os acordes clássicos, os acordes formais, ‘dó-ré-mi’. Ensinou-nos, a mim e ao Bruno, que era um amigo de infância com quem fiz essa primeira banda. Essa ideia do torto veio de início, porque lembro-me de ela nos ensinar as notas, mas tanto eu como ele, e isso foi uma coisa engraçada, arrastávamos os dedos para o lado e encontrávamos outra coisa. Não sabíamos o que era, ainda hoje não sei [risos], mas estava lá a ideia: se arrastar assim os dedos, fica dissonante, encontra-se aquela nota torta.

O som da diferença?
A nota que ninguém espera, uma coisa estranha. Lembro-me que desde início, quando não sabia tocar nada de nada, era mesmo uma coisa muito tosca, quase com a guitarra ali em punho. Lembro-me dessa ideia de [procurar o] erro, de meter os dedos para o lado e de procurar coisas que não fossem propriamente o acorde clássico. Mesmo na fase do punk-rock… aquilo do ponto de vista musical é muito direitinho, com dois dedos toco as músicas que quiser dos Black Flag, dos Minor Threat, de todas as bandas de punk-rock e de muitas do rock atual. Mesmo nessa fase, quando tinha as bandas, na guitarra tínhamos a coisa de meter um acorde para o lado.

Acho que descobri os clássicos, o arquétipo do que é uma música pop perfeita, muito tarde. Durante muitos anos da minha vida estava completamente de costas viradas para os Beatles, para os Beach Boys, para esse período dos anos 1960 que agora está muito em voga, que teve um revivalismo. Na minha adolescência toda…

Andava a fugir disso?
Até aos 20 e tal anos. Não era uma coisa consciente, não achava que Beatles fossem uma porcaria, não era nada disso; era uma coisa que não consumia, que não ouvia. Descobri-os muito mais tarde e reconheço tanto a uns como a outros a genialidade do que fizeram e a marca que deixaram, mas não era aquilo que eu gostava mais na música que ouvia. O que me apanhava mais eram coisas tortas. Sei lá, pôr a tocar um disco do Tom Waits e o gajo ter aquela voz quase das cavernas… a maior parte das pessoas se calhar diz que a música até é gira, mas ‘a voz do gajo é horrível’, só que para mim aquilo é que é incrível. Qualquer outra voz e aquilo seria uma coisa mais banal, apesar dos instrumentais também serem incríveis. Essa coisa de escolher o veneno para mim foi sempre uma matriz ao longo dos tempos. Não é uma coisa ultra consciente. Agora parece quase um processo pensado, “tenho aqui uma música direitinha, vamos entortar”, não é bem assim; aquilo já me vem assim.

Por instinto?
Por instinto. Acho que vem desde aí, muito cedo.

"Só há poucos anos é que estou mais dedicado à música. Tive sempre trabalhos full-time. Estava num sítio onde ganhava bem, tinha uma boa posição, tinha carro, tinha trabalho. Tinha um emprego do qual ninguém se despede, era uma situação profissional para a vida. Mas estava quase com uma depressão."

Falávamos da gravação do tema de abertura na casa de banho, para não ser importunado pelos filhos, e da “Tecido Não Tecido”. Ser pai sendo músico é muito mais difícil ou até é útil ter uma profissão menos rotineira?
É uma coisa menos assustadora [do que se pensa], até porque em Portugal o meio [musical], até por uma questão geográfica e de dimensão do país, faz com que tenhamos muitos dias da semana livres. Os concertos geralmente são às sextas e sábados, tirando as semanas académicas e os festivais, que fazem com que aconteçam coisas durante a semana. Durante o resto do ano, habitualmente não se vai ver um concerto entre domingo e quarta.

O que é mais curioso é que só há poucos anos é que estou mais dedicado à música, porque a minha vida inteira passou por sair da faculdade e arranjar um trabalho. Tive sempre trabalhos full-time, fui o último da banda a sair dessas coisas mais penosas. Aí os meus filhos, pelo menos o mais velho na altura que nasceu, tiveram impacto nisto, mas se calhar surpreendentemente: deu-me uma epifania um bocadinho contra a corrente. Com a paternidade, normalmente ainda aparecem mais as preocupações financeiras e eu estava num sítio onde ganhava bem, tinha uma boa posição, tinha carro, tinha trabalho. Tinha, enfim, todas aquelas coisas que são desejáveis para a segurança familiar e financeira. E de repente, quando o meu filho nasce, percebo que estou há demasiados anos a fazer a mesma coisa, que não gosto especialmente do que estou a fazer, que o faço por uma questão muito objetiva e puramente financeira. Percebo claramente que não quero ser aquilo para ele, chegar a casa completamente deprimido, passar o fim-de-semana a não querer que a segunda-feira chegue para não ser obrigado a fazer uma coisa que detesto, em que não me revejo. Na altura saí, não logo quando ele [o filho mais velho] nasceu, mas uns aninhos depois — nasceu em 2013, só saí dessa vida mais corporativa de escritório em 2015 ou 2016.

Em que área é que trabalhava?
Estudei gestão de recursos humanos, nada a ver com música. E logo que acabei o curso fiquei empregado numa consultora grande, estive lá sete ou oito anos. Depois por volta de 2010 fui para outra empresa grande. Os meus pais ficaram em choque quando saí. Tinha um emprego do qual ninguém se despede, era uma situação profissional para a vida. Mas estava quase com uma depressão.

@ Joana Linda

Aquilo que me aguentou tantos anos se calhar foi aquele espírito do punk-rock. Habituámo-nos e crescemos a vida inteira a ter como ídolos pessoas que não dependiam da música para viver. Ia ver bandas ao antigo Ritz Club cujos membros trabalhavam o ano inteiro em pizzarias e hamburguerias.

Isso é que era a verdadeira independência?
Era. Para mim era muito claro: pensava em não me comprometer, não fazer muito dinheiro com a música porque depois ia ser ‘vendido’, ia comprometer a minha identidade musical, ia fazer cedências e ia fazer canções giras para vender. Portanto, na minha cabeça durante estes anos todos em que estive a fazer música, estive sempre em paz porque paralelamente fazia uma coisa de que não gostava particularmente, não tinha amor por aquilo, mas aos fins de semana ia tocar com amigos. Só que a mesma coisa que me equilibrou durante tantos anos começou a ficar completamente desequilibrada, porque o meu filho nasce, a banda também vai crescendo ao longo dos anos e vai começando a ter muito mais exposição.

Chegou uma altura em que não estava bem nem num sítio nem no outro. Ao sítio em que gostava mais de estar, que era na banda, só dedicava um bocadinho do meu tempo. Às vezes até poderíamos dar mais concertos e fazer mais coisas, mas não podíamos porque eu estava a trabalhar. Mas tudo o que eu gostava de fazer era a música.

Nesse setor paralelo ia havendo pessoas que sabiam, não? Com a dimensão que os Linda Martini foram ganhando…
Sim, sim. As pessoas sabiam, a minha equipa mais direta.

Iam aos concertos?
Alguns sim, gostavam e iam. Não era só para apoiar o colega, gostavam. Mas na minha cabeça era uma coisa estranha. Parecia que ali estava a desempenhar uma função. E eu não queria que as pessoas confundissem, porque não sabia se na cabeça delas não haveria aquela coisa de “este gajo anda lá nas bandas do rock e tal”. Parecia que ou não levavam uma coisa a sério ou não levavam a outra.

"Pensei: não quero ser isto, não quero ser este exemplo para os meus filhos, não quero que cresçam com um pai que é completamente frustrado porque gostava de fazer uma coisa e não a faz só pela questão financeira."

As pessoas que estavam mais próximas de mim nessas empresas sabiam e não era tabu para ninguém, mas para todas as outras com as quais tinha de conviver, com quem tinha relações mais profissionais, era um tema que nunca iria puxar. Se alguém falasse nisso também falava, mas não era uma coisa que quisesse mostrar. Mas o que me aguentou durante tanto tempo foi o que desequilibrou completamente a balança. Pensei que se sou feliz a fazer isto, porque dedico não sei quantas horas por semana a uma coisa que não tenho apego nenhum? Pensei: não quero ser isto, não quero ser este exemplo para os meus filhos, não quero que cresçam com um pai que é completamente frustrado porque gostava de fazer uma coisa e não a faz só pela questão financeira. Os meus pais também me apoiaram, mas de certeza que pensaram: uma pessoa que tem a sua estabilidade financeira, tem a sua família e de repente vai ser artista, é assim uma coisa um bocado estranha [risos].

Questões como “e se a gente fugisse”, do tema “Uma Casa na Praia” são indagações que lhe vão passando pela cabeça ou é só um exercício narrativo meramente ficcional?
Não são, nesse caso não. Este disco tem esses dois lados: a “De Repente”, por exemplo é uma coisa ficcionada. Há um lado do disco que é assumidamente mais plástico, onde se procura contar uma história que não é necessariamente minha. Por exemplo, a “O Seu Melhor Chapéu” ou a “E de Repente” são exemplos disso. Mas por exemplo a “Casa na Praia” e a “Tecido Não Tecido”  são completamente pessoais. Na “Casa na Praia” ponho essa questão: ‘se a gente fugisse para longe daqui?’ É uma coisa muito pessoal.

Cresci nos arredores de Lisboa, nos subúrbios, e de repente quando faço a minha vida adulta, quando acabo o meu curso, arranjo um trabalho e venho morar para Lisboa, para o centro, para a capital. Durante muitos anos não tive aquele sonho bucólico de ir para o campo, ter um cão e andar a passear na pradaria. Vi-me sempre como uma pessoa da cidade, porque aqui estou próximo de tudo, apanho o metro, vou ao Bairro Alto jantar com amigos e beber uns copos, vou ao teatro, vou ao cinema. Mas são fases da vida.

E nesta o sonho bucólico tem outro apego?
Com a idade que tenho, com a minha estrutura familiar, a partir do momento em que fui pai, o que se retira do dia-a-dia passa a ser completamente diferente. As minhas rotinas já não são essas, hoje em dia sair à noite para mim é quando vou tocar com os meus amigos. Não tenho por hábito sair todos os fins de semana, jantar fora todos os fins de semana. Acontece, mas não é uma coisa tão regular como quando tinha 20 anos. Isso vai moldando também a perceção.

Depois, devido aos muitos anos que estive ligado a estes trabalhos mais corporativos, que mastigam muito e deixam sem energia para nada, começa a crescer uma ideia, mais bucólica, de fugir daqui, de ir para outro lado. Essa é uma coisa muito minha, tem muito a ver com as minhas últimas férias, estar na Costa Vicentina e pensar: isto vai acabar, amanhã vai começar tudo outra vez e aqui somos muito mais felizes. Trabalha-se o ano inteiro, depois tens aquelas duas semaninhas, quando aquilo acaba ficas a ver o sol na praia e a pensar: porra, isto já acabou.

@ Joana Linda

Não é uma decisão fácil, até pelos projetos musicais que tem. Mas é uma coisa em que tem pensado firmemente?
Já estive muito mais longe dessa decisão. Mas essas interrogações da canção, e a escola dos putos?, e vivemos de quê?, são  preocupações. Quando se tem uma estrutura familiar… se fosse só eu e a minha mulher, agarrávamos em nós, fazíamos as malas e íamos experimentar, se não desse não dava. A partir do momento em que há filhos, todas essas coisas ganham uma dimensão adicional. O puto está na escola, e se formos para ali que escolas é que há?, e a escola é porreira?, e será que é aquele tipo de educação que queríamos?, e os amigos dele? Há uma estrutura toda de afetos que se vai criando. E os meus pais, que estão aqui e não conduzem, como é que vão ter connosco? Todas essas coisas são preocupações e o disco tem muito disso: quando é ficção é para deixar fluir, mas quando são coisas minhas são mesmo coisas minhas.

“As Melhores Canções de Amor” é uma vingança contra insistências de antigas namoradas para que lhes fizesse canções? Uma insistência estilo “Tu cantas, tocas guitarra, escreves, faz lá uma canção sobre mim, para mim”?
[Risos] Não. Tem a ver mais com o que falava há bocado: a dificuldade em escrever sobre os entes queridos, sobre pessoa com quem se partilha a vida, sobre filhos. Tive sempre uma dificuldade imensa em fazer isso e soar-me a verdade, soar-me àquilo que queria dizer. Mais uma vez é como outras canções: essa frase apareceu-me na cabeça, estava em casa, acho que estava a lavar a loiça, e de repente aparece-me uma frase, “as melhores canções de amor já foram escritas”. Pareceu-me uma daquelas epifanias. Pego no telefone, escrevo a frase e depois sento-me à guitarra. Achei que era a frase que descreveria melhor esse sentimento porque às vezes sentes-te completamente impotente, sentes que és pequenino para descrever aquilo que queres dizer àquela pessoa, sentes que aquilo não vai soar verdadeiro nem a ti nem a ela.

A partir do momento em que me lembrei da frase, foi quase uma desculpa encapuçada: agora posso fazer uma canção de amor dizendo que não é uma canção de amor. Acaba por ser uma canção de amor disfarçada, ou cobarde. Costuma-se dizer que 99,9% das canções são canções de amor, de uma forma ou de outra: pode ser amor passional ou amor por outras coisas. Se calhar é verdade. Já há muitas canções incríveis e que te inspiram e que tu achas: porra, isto era o que queria dizer. Porquê fazer mais uma canção de amor? Será que o mundo precisa de mais uma canção de amor? Acho que essa frase foi a minha escapatória, encontrei ali um atalho.

No álbum também canta sobre a dificuldade de ser-se livre quando se domesticam os sonhos. Domesticar os sonhos, no seu caso, teve a ver com o tempo a que se obrigou a ter uma profissão de que não gostava? Isso traz-lhe algum arrependimento ou já está pacificado com isso?
Se  pensar aqui em retrospetiva posso sempre interrogar-me sobre o que teria sido a minha vida se não estivesse estado lá estes anos todos. Sim, faço-me essa questão, mas acho que estou algo pacificado com isso. Não sou fatalista nem acredito no destino, mas todos sabemos que há coisas e detalhes da vida, o irmos para a esquerda ou o irmos para a direita em dado momento, que mudam radicalmente o percurso da vida. São as nossas escolhas, que fazemos todos os dias e a que às vezes não damos importância. A verdade é que as minhas escolhas também me trouxeram coisas boas e se calhar precisava de ver algumas coisas, de as experienciar — se calhar só não era preciso experienciá-las tanto tempo — e de perceber que aquilo não é a minha vida, para conseguir ser mais feliz agora.

A transição também não foi fácil. Não gosto de dar conselhos sobre nada, nem sobre paternidade, nem sobre emprego, nem sobre a vida, mas gosto de ouvir as pessoas e partilhar a minha experiência. O que estava a dizer no outro dia a um amigo que pensa fazer a mesma mudança é: não imaginas a quantidade de vezes que acordava, ia para o trabalho e estava em frente ao computador a pensar ‘se estivesse na praia?’ ou ‘se não estivesse aqui estava no cinema, a ler um livro ou a andar de bicicleta’. Mas quando acordamos na primeira segunda-feira em que não temos de ir trabalho, o que fazemos? Isso é uma coisa real. São tantos anos a girar naquela rodinha…

Foi-lhe difícil sair da engrenagem?
Foi. É completamente diferente. Por isso é que na “De Tudo o Que Fugi” tenho aqueles versos: “aquilo que larguei não largo / a vida a desejar horários”. As primeiras semanas, os primeiros meses, o primeiro ano que se passa com uma vida nova… até então havia uma rotina que era imposta. Trabalhava para uma estrutura, tinha responsabilidades de me apresentar nessa estrutura, de trabalhar entre a hora X e Y. Isso fazia-me sentir útil, mesmo chegando a casa todo massacrado e sem energia nenhuma. De algum modo, é um pacificar aquela culpa cristã: “produzi, disseram-me para fazer um power point e eu fiz, tenho o meu papel na sociedade, pago os meus impostos, tenho uma função”. Quando se muda, chega a segunda-feira e pode-se realmente ir para a praia, porque não temos nenhuma obrigação de ir picar um ponto ou fazer um documento Excel.

"Há uma altura em que pensas: abandonei a minha vida mas continuo a ter uma casa, continuo a ter filhos, continuo a ter responsabilidades e contas para pagar. E eu próprio também tenho que me sentir válido no meio disto. O ócio é importante como motor de pensamento e criação, mas despedi-me e vou ficar as semanas inteiras na praia? Se calhar aí vou entrar numa depressão ainda maior do que a que tinha."

Mas há uma culpa interior?
Há. Porque depois surge aquele pensamento: agora abandonei a minha vida mas continuo a ter uma casa, continuo a ter filhos, continuo a ter responsabilidades e contas para pagar. E eu próprio também tenho que me sentir válido no meio disto. Não é só a questão financeira, mas também a questão de: o que fiz hoje? O ócio é importante como motor de pensamento e criação, mas agora despedi-me e vou ficar as semanas inteiras na praia ou a ver filmes? Se calhar aí vou entrar numa depressão ainda maior do que aquela que eu tinha.

Partilhei essas questões com várias pessoas próximas e tive de me obrigar a ter rotinas — e foi isso que mudou. Acordo cedo porque os vou levar à escola, depois vou para estúdio e começo a compor ou a trabalhar, pode ser para a banda, agora para este disco ou escrever para outras pessoas. Tenho mais tempo e é saudável dedicar-me mais ao ócio, mas sinto que tenho de ter alguma rotina, alguma coisa que me agarre para me sentir válido, para sentir que estou a fazer alguma coisa. Se não, o que é esta ideia de ser músico, artista? É ficar a olhar para o ar?

Enquanto ia crescendo — ensino básico, liceu — a perspetiva que tinha de carreira era semelhante à que veio a ter até há poucos anos, paralelamente à música?
Sim. A malta que conhecíamos do hardcore era assim. Havia pessoas que trabalhavam em bancos, outras nas finanças, umas davam aulas, outras eram enfermeiros. As mais variadas profissões. Quando comecei a fazer música com amigos, quando tinha 14 ou 15 anos, ainda não tinha idade de estar no mercado de trabalho, mas víamos os mais velhos e as coisas eram assim. Na nossa cabeça, aquela mentalidade do rock independente de não precisar da música para subsistir era uma questão. Depois também sabíamos que o público daquela música das minhas primeiras bandas nunca iria dar-nos uma perspetiva de carreira. Nem eu nem as pessoas com quem tenho tocado achávamos que era possível fazer da música uma carreira.

A minha carreira ou aquilo que fiz, aquilo que estudei, foi um bocado de olhos fechados, em piloto automático. Pensei: ok, consigo fazer isto, tenho algum jeito, não preciso de arrancar uma perna nem me dói horrores, se me pedirem para fazer eu faço. Escolhi um curso porque tinha de escolher um curso. Acho que também tem a ver um bocado com a geração de que venho. Os meus pais têm agora 67, 68 anos. Ninguém da minha família próxima era licenciado, só acontece agora na geração dos meus primos. Somos de classe média e portanto havia aquele modelo na altura do Cavaco [Silva], pós-25 de abril, de tirar um curso e ser doutor, de ganhar a vida porque a vida é difícil de ganhar. Foi assim a minha vida toda. Fiz aquilo que era suposto fazer, como todas as pessoas da minha geração que tinham possibilidades de fazer um curso superior: estudar, arranjar um trabalho, fazer uma família. A “Pais e Mães e Bichos” fala um bocado nisso, na ideia de domesticar os sonhos. Chega-se a um momento da vida em que é preciso colocar estas questões: vou fazer isto os próximos 20 e tal anos? É isto que quero?

A “Maria Odete” é uma canção inspirada na violência doméstica sobre mulheres em Portugal. Deveria ser um tema mais mediático, também na arte e nas canções?
Não sou propriamente alguém que tenha feito, tanto no passado como neste disco, música de intervenção. Mas obviamente não descuro alguns temas porque eles acabam por entrar no nosso quotidiano. Se entram e se sentimos na pele, se isso nos entra dentro de casa, vai transparecer para o que vamos fazer. Escrevendo um texto mais político e de intervenção ou não, há muitas coisas que deixo que me permeiem nesse sentido.

Acho que é um tema de que se vem falando. Também sinto que estou a comunicar para uma bolha, se calhar a maioria das pessoas que vão ouvir o meu disco — quero eu pensar, se calhar também estou enganado, se calhar aí também acontece — são pessoas para quem este tipo de discurso não é necessário. Mas há uma franja muito grande da sociedade, e vemos isso nas notícias, onde isto continua a acontecer.

"A música que mais me toca é a que as pessoas podem considerar... mais triste. Às vezes comovo-me com coisas do quotidiano, mundanas. São as coisas que me chamam mais a atenção e gosto de as captar quando estou a escrever."

Também aqui se nota uma coisa: escreve sobre o que o inquieta, não tanto sobre o que o conforta. Parece um traço de criação.
Sim, acho que é. Acho que é porque gosto desse desassossego. Se estiver numa festa com os amigos e estiver a tocar uma coisa alegre também gosto, também gosto de cantar, dançar e divertir-me. Mas a música que mais me toca são as coisas que puxam esse lado, outro tipo de emoção. Algo que as pessoas podem considerar… mais triste.

Vulnerável, também?
Sim. Gosto desse lado das coisas. Às vezes comovo-me com coisas do quotidiano, mundanas. São as coisas que me chamam mais a atenção e gosto de as captar quando estou a escrever. No trabalho de autoria e no trabalho de quem escreve canções, gosto desse desafio de contar histórias. Podem ser mais pessoais ou mais distanciadas, mas gosto dessa ideia de levar o ouvinte comigo a descobrir uma história qualquer. Por isso é que às vezes estas frases acabam por ser o título das canções, porque são as primeiras frases que me surgem para eles. É o mote, o título da história.

Linda Martini: “Ouvir música não é como ver o feed do Facebook”

Ao longo destes anos, não deixou de ser vocalista, letrista, figura de destaque de uma banda rock que teve a importância que teve nestes 20 anos na música portuguesa. Nunca se sentiu rock star?
Não, não. Para já por causa do meio em que estamos. Não é muito habitual estar na rua e pedirem-me autógrafos, já aconteceu, mas não é uma coisa que faça parte da minha rotina diária. Não é aquela coisa à filme, de um gajo sair de casa, pôr óculos de sol e um bigode postiço se não as pessoas não me largam. Isso não acontece. Há pessoas que me veem na rua e que já foram ver concertos nossos. Acontece de forma muito saudável, quando alguém conhece às vezes vem falar, dizer que gosta ou não gosta, mas isso não faz parte da minha rotina diária, que é completamente mundana e afastada dessa ideia de estrela rock. Acordo cedo, vou levar os putos à escola, vou para o estúdio, vou trabalhar — às vezes em música, às vezes em outras coisas.

Até há pouco tempo, quando aconteciam esses acasos de alguém pedir um autógrafo fora do contexto concerto, no meio da rua, montes de vezes ficava abananado. Sem pensar primeira coisa que me saía era: mas porquê? A pessoa quase tinha que explicar, “é por causa da banda”, porque na minha cabeça instintivamente achava que as pessoas podiam estar a confundir-me com alguém. Mesmo no contexto da banda, aquilo é um projeto dos quatro e nunca houve aquela ideia, que há em algumas bandas, do vocalista ser o frontman. E eu na verdade sempre estive muito bem com o meu papel, porque cresci no contexto de bandas, a partilhar a minha música, a fazer coisas com outros. A própria disposição de palco, o estarmos todos alinhados e eu não estar ao centro, são coisas com as quais sempre me senti confortável.

Portanto, não há cá vedetismos e glamour, é isso?
Não me sinto nem nunca me senti estrela rock com importância. Um gajo como eu que teve mais de 17 anos a trabalhar noutros contextos… o meu dia-a-dia nem sequer era música, no dia-a-dia, das 9h às 18h ou 19h, estava de fato e gravata a fazer outras coisas. Não tinha e ainda hoje não tenho o chip de pensar que sou músico, que sou artista.

Depois o meio é pequeno… para todos os efeitos é um privilégio não ter uma vida em que não pudessse  poder andar na rua. Portugal tem uma coisa boa: mesmo pessoas que são muito conhecidas e que são figuras públicas, que não é o meu caso, tirando alguns momentos sensíveis parece-me que conseguem fazer a sua vida. Com as pessoas que conhecemos no geral somos algo tímidos e pouco invasivos. Fala-se muito ao ouvido, ‘já viste quem está ali?’, mas não se vai assim tantas vezes pedir autógrafos ou falar com a pessoa. Mas comigo isso nem se coloca.

Ofereça este artigo a um amigo

Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.

A enviar artigo...

Artigo oferecido com sucesso

Ainda tem para partilhar este mês.

O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.

Ofereça até artigos por mês ao ser assinante do Observador

Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.

Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.

Atingiu o limite de artigos que pode oferecer

Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.

Aconteceu um erro

Por favor tente mais tarde.

Atenção

Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.

Caso já tenha uma conta, faça login aqui.