Hélio Morais bate quatro vezes com as baquetas da bateria, uma na outra para marcar o início da canção. À sua direita, André Henriques e Cláudia Guerreiro vão-nos lembrando, de pé esquerdo nos pedais e cada um no seu transe, que a guitarra e o baixo nos braços continuam a ser a força motriz do rock and roll — e que o rock não está nada morto, a notícia é antiga mas manifestamente exagerada. À esquerda de Hélio, está Pedro Geraldes, também ele dotado guitarrista. O rock ouve-se com vigor, tenso, permanentemente entre a contenção e a descarga. André Henriques canta que “o nosso amor é um combate” (há salvação sem este escape, esta fúria, este murro nos ouvidos?) e o deles, Linda Martini, já dura há 17 anos.

Estamos num ensaio do quarteto português de rock e estamos no principal poiso da banda. É ali que ensaiam e é muitas vezes ali que dão entrevistas. No primeiro piso do estúdio de gravação e sala de ensaios Haus, na Rua da Bica do Sapato, em Santa Apolónia, Lisboa — com a estação de comboios a servir de muro que separa a sala da Avenida Infante D. Henrique, da discoteca Lux Frágil e do rio Tejo —, aquela que é uma das mais importantes bandas rock nascidas em Portugal nos últimos 20 anos (porventura a mais importante) vai testando e apurando as canções para dois importantes concertos que se avizinham.

As atuações próximas da banda são em duas das salas de espetáculos mais míticas do país — o Coliseu dos Recreios, em Lisboa, e o Coliseu do Porto. O concerto em Lisboa está agendado já para esta sexta-feira, 31 de janeiro, seguindo-se depois a atuação no Porto a 13 de fevereiro. Pelo meio haverá um novo disco a começar a ganhar forma na Nazaré, mas já lá iremos, antes disso há um ensaio.

@ ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

Cartazes por todo o lado e referências nas paredes ao… Coliseu

Na sala da banda no estúdio Haus, enquanto o baterista Hélio Morais vai batucando devagarinho e Cláudia Guerreiro vai testando o som de uma harmónica, há tempo para observar o cenário, com referências à banda a rodos por toda a sala. Na porta, por exemplo, está o título e o alinhamento de cada um dos cinco discos editados pelos Linda Martini (a que se somam EPs, ou mini-álbuns): Olhos de Mongol, de 2006, Casa Ocupada, de 2010, Turbo Lento, de 2013, Sirumba, de 2016 e Linda Martini, de 2018. Cartazes não faltam, com um deles a promover as apresentações ao vivo do disco Turbo Lento, outro a remeter para uma atuação da banda no festival Sons de Vez, um outro ainda a remeter para um “velhinho” concerto dos Linda Martini no espaço Santiago Alquimista, em Lisboa.

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É contudo atrás de Cláudia Guerreiro, que oscila entre tocar baixo de pé (foi a única que o fez durante os minutos em que estivemos com a banda) e sentada, que vislumbramos um cartaz que não poderia ser mais apropriado ao momento. Em grandes dimensões, alude à estreia dos Linda Martini no Coliseu de Lisboa, há quatro anos — e uma década passada desde a edição do primeiro álbum, primeiro passo da banda e logo seguro, ainda hoje na memória e coração dos fãs mais vetustos graças a canções como ”O Amor É Não Haver Polícia”, “Dá-me A Tua Melhor Faca” e “Partir Para Ficar”.

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Passados quatro anos desde a primeira vez no Coliseu dos Recreios, para apresentar o disco Sirumba (editado nesse mesmo ano de 2016), eis os Linda Martini agora com uma opção diferente: lançaram em 2018 o álbum sucessor, mas tocaram-no por todo o país, de norte a sul, antes de agora — que já têm um próximo disco na forja, álbum esse que chegará provavelmente ainda em 2020 — o levarem aos dois Coliseus.

Se em 2016 foi apresentação, agora é consagração: os temas novos estarão lá, os clássicos indie à partida também (certamente “Amor Combate”, provavelmente “Adeus Tristeza”, “Juventude Sónica” e “Mulher a Dias” entre tantos outros), mas estarão também lá canções antigas que Hélio, Cláudia, Pedro e André querem resgatar do esquecimento. Porque sim e porque lhes apetece. Tem sido genericamente assim ao longo dos últimos 17 anos.

Cláudia bem tentou, Hélio não ouviu

O bloco de canções que ouvimos os Linda Martini ensaiar para os concertos no Coliseu começaram com harmónica. De pé, Cláudia Guerreira deu o mote, antes de a pousar e voltar a sentar-se. A reinvenção e renovação do som dos Linda Martini, inserida numa identidade voltada para o rock que a banda tem sabido preservar, tem sido uma das chaves para a longevidade. Percebemo-lo quando os vemos cada um na sua viagem interior, numa longa viagem de rock instrumental. Se não tivesse voz nem canto estava tudo bem, já seria difícil resistir a esta música descendente do rock garageiro dos anos 1990, mas foi o somatório de tudo isso com as letras e a voz de André Henriques que fez dos Linda Martini ao início a banda de uma geração — a dos jovens que descobriam o indie, o rock, a música alternativa — e a tornou hoje inter-geracional, reunindo em seu torno miúdos com graúdos.

Ouvimos, no covil dos Linda Martini em Santa Apolónia, Hélio Morais começar a bater com mais força na bateria, mote para o resto da banda acelerar e aumentar o barulho das guitarras. Vemos Cláudia Guerreiro tentar chamar o baterista, haveria de lhe querer fazer uma nota qualquer sobre o andamento da coisa, mas é missão inglória entre a massa de som — tareia rock and roll sem freios — e o transe de Hélio, que ia tocando a olhar para baixo.

O bloco de canções está a andar bem, Cláudia Guerreiro há-de dizer-nos que com ouvidos de músico percebe-se melhor as correções que é preciso fazer — daí ainda restarem ensaios —, mas quem se entregar ao rock de ouvidos limpos não há-de notar nada. Ainda estamos em “Amor Combate”, um dos hinos da história da banda. Ainda ouvimos André Henriques, sentado, cantar “O chão que pisas sou eu”, mostrar que é a emoção e pungência a cantar tiradas que soam a definitivas que fez dos Linda Martini uma boa banda para ter nas paredes do quarto.

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É mais fácil perceber a reação dos fãs que se deixam perder no labirinto destas canções vendo os quatro tocá-las, cada um deles a navegar por mares internos. É mais fácil percebê-lo ouvindo tiradas como “enquanto tens o mundo às costas” e o grito “é presa ou predador” de “Unicórnio de Sta. Engrácia”, do disco anterior Sirumba, ouvindo “cerra os dentes, vem jogar” do já antigo “Berlamino Vs.”, resgatado ao segundo álbum da banda e outro dos seus tiros certeiros: Casa Ocupada, de 2010.

Tudo isto é Linda Martini: medicamento contra as angústias, injeção de força contra as chatices da vida, air guitar e air drumming para levantar braços já caídos. Ainda ouvimos “Quase Se Faz uma Canção”, do último disco, homónimo e editado em 2018, vemos Hélio Morais cantar para si a letra enquanto ataca a bateria, ouvimos os versos “tudo o que faço, desfaço”, anotamos apontamentos cantados e tirados. Termina-se o bloco de canções ensaiados enquanto ali estamos, “este passa mesmo rápido, bora tocar só este [no concerto], várias vezes”, brinca Cláudia Guerreiro. É respirar fundo e seguir.

“Nenhum de nós sonhou ser artista”, diz o vocalista

Não falta rodagem à maioria das canções que os Linda Martini levarão aos dois Coliseus portugueses nos próximos dias. Entre as mais antigas, algumas já eram capazes de baralhar o conta-quilómetros, de tantas noites foram tocadas. Contudo, mesmo as mais recentes, incluídas no último disco, não chegarão aos Coliseus virgens de modo algum, como nos explica Pedro Geraldes depois do ensaio:

Além da Rumble in the Jungle [digressão da banda com The Legendary Tigerman], ainda fizemos a ‘Agora Escolha’, uma tour em que decidimos dar às pessoas que iam aos concertos a possibilidade de escolherem o alinhamento. Tocámos muito nos últimos dois anos e este [último álbum] foi um dos discos que tocámos mais”.

Agora, explica Pedro Geraldes, o tempo é de “fechar esse ciclo que correu tão bem” e “celebrar” o último álbum — mas também os 17 anos da banda, já que querem tocar “músicas que habitualmente não tocamos”.

O teste das canções do último álbum em palco antes da sua cristalização definitiva num disco, foi decisivo para que a banda se sinta confiante de que vai correr tudo bem: “Tivemos oportunidade de testar uma série de músicas antes de terem saído e percebemos como é que nos corriam ao vivo, como é que as pessoas as recebiam e isso foi bom, já o queríamos fazer há muito tempo”.

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Estes concertos dos Linda Martini nos Coliseus, atendendo às salas em que vão ser feitos, são especiais, admite o baterista Hélio Morais: “Por mais que gostemos de achar que não, há uma preparação especial. Tanto há que ensaiamos muito mais vezes quando vamos fazer os Coliseus do que quando vamos fazer outro tipo de concertos, sem qualquer tipo de desprimor. A questão é também surgem numa altura em que temos estado um pouco mais parados, é natural que ensaiemos mais. Numa fase anterior dos últimos dois anos”, isto é de começo da apresentação ao vivo do álbum mais recente, “como andávamos a tocar muito às tantas já não ensaiávamos, tocávamos todas as semanas e cada concerto já era um ensaio para o seguinte”, acrescenta o baterista.

A data dupla não será apenas especial por ser um momento de maior mediatismo ou notoriedade para a banda, dada a história e maior lotação dos espaços [face a clubes e anfiteatros], explica ainda Cláudia Guerreiro: “Há uma outra diferença: o concerto é muito mais longo. Quando damos outros concertos, num fazemos uma coisa, noutro fazemos outra. Aqui queremos juntar um bocadinho de tudo aquilo que temos feito e acrescentar-lhe coisas que já não fazemos há não sei quanto tempo”.

Linda Martini: “Ouvir música não é como ver o feed do Facebook”

O segredo é a alma do negócio e mais informações só na Rua Portas de Santo Antão 96, em Lisboa, ou Rua de de Passos Manuel 137, no Porto, respetivamente esta sexta-feira e no dia 13 de fevereiro. O que não é segredo é que os Linda Martini já estão a pensar num próximo disco, a editar provavelmente ainda este ano. Se o era, Hélio Morais revelou-o: “Estamos mais parados desde outubro um bocado para isso. Vamos fazer uma residência entre o Coliseu de Lisboa e o do Porto, ao abrigo do 23 milhas, na Gafanha da Nazaré, já para estruturar o disco e gravar a pré-produção. Vamos começar a fechar as músicas, temos muito esqueletos… e não é bom ter esqueletos no armário”.

A banda ri-se, Cláudia Guerreiro diz que a metáfora dos esqueletos para esboços ou bases soa-lhe “sempre mal”, parece tudo bem disposto. Como é que se aguenta isto durante 17 anos? “Se calhar”, arrisca Hélio Morais, pelos projetos paralelos que vão tendo — o baterista faz parte da banda PAUS, André Henriques está prestes a começar uma carreira a solo, Cláudia Guerreiro e Pedro Geraldes vão tendo trabalhos em outras áreas como a ilustração.

Em Portugal, ser-se músico só de uma banda é muito complicado. Há uma limitação de mercado óbvia [para bandas alternativas e para bandas de rock]. Fomos direcionado as nossas vidas para poder dar atenção a Linda Martini quando é necessário, mas tivemos de criar coisas paralelas que fossem possíveis de conciliar”, detalha Hélio Morais.

No campeonato dos Linda Martini, o da música alternativa, é preciso engenho e criatividade para viver da música e estar muito ativo, sem grandes intermitências, durante mais de uma década e meia. Mas é preciso outra coisa, acha o vocalista e guitarrista André Henriques: “Acho que nenhum de nós sonhou ser artista. Na minha cabeça há uma diferença [entre querer ser artista e querer ser músico], se calhar tenho algum preconceito… Nenhum de nós teve como grande ambição ser artista, ser reconhecido, ser aplaudido, ser-lhe pedido autógrafos na rua”.

@ ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

Para a principal voz das canções da banda, “gostar genuinamente de fazer música e com as pessoas com quem a fazes ajuda muito a relativizar o que está para lá destas paredes. Quando se continua excitado com a vontade de fazer música, como nos tem acontecido, acho que a coisa não esmorece. Se estivéssemos presos e escravos das tendências do mercado, ao que está na moda e não está, à fórmula de um single para passar numa rádio ou aparecer numa playlist, se calhar já há muito tempo que a coisa tinha dado o berro. Porque tu desiludes-te, o mercado é pequeno, aquilo que achas que pode ser muito bom ou que as pessoas podem gostar muitas vezes não é ou não gostam”. Já lá vão 17 anos e isso não poucochinho, é resistência. A festa já sabem onde acontece.

Nota – Numa versão anterior deste artigo, o guitarrista Pedro Geraldes era apresentado como Pedro Gonçalves. Pelo lapso, as nossas desculpas