É um registo comum aos dois candidatos: seja qual for o resultado das eleições deste domingo, já ninguém apaga as frases polémicas e agressivas que encheram a campanha e, tantas vezes, a desviaram da discussão política. De um lado, o PT joga ao ataque desde que o impeachment derrubou o Governo de Dilma e ainda mais desde a prisão do ex-Presidente Lula da Silva. Do outro, Jair Bolsonaro saiu das filas de trás do Congresso dos Deputados para se mostrar ao Brasil e ao mundo como sempre foi: descomplexadamente polémico e militantemente agressivo.
As principais frases que sobram destas eleições falam muito do Brasil dos últimos meses — e deixam muitos pontos de interrogação quanto ao seu futuro.
O ataque contra Jair Bolsonaro revelou ser, sem sombra de dúvidas, um ponto fulcral desta campanha — e, possivelmente, de viragem para o candidato do Partido Social Liberal (PSL). Para além da questão clínica — Bolsonaro ficou ferido com gravidade, obrigando a um internamento e a duas cirurgias delicadas — o momento deixou-o frágil, recatado, acossado. Tal poderia ser uma fraqueza, mas, na verdade, os politólogos são unânimes: a facada ajudou mais Bolsonaro do que o prejudicou, já que lhe deu a justificação perfeita para passar a falar com o seu eleitorado apenas através das redes sociais, em ambiente controlado, evitando debates e ações de campanha. Por outro lado, humanizou-o perante o eleitorado, deixando para os restantes membros da sua campanha — como o general Mourão — a tarefa de manter o discurso endurecido. Como esta frase, proferida no dia da facada, o comprova.
Foi o último fôlego de Lula em liberdade. No dia 5 de abril, O juiz Sérgio Moro decretou a prisão do ex-Presidente, depois de o Supremo Tribunal Federal lhe ter negado o pedido de habeas corpus preventivo — tudo isto depois de ter sido condenado a 12 anos e 1 mês de prisão pelos crimes de lavagem de dinheiro e corrupção. Lula, que tinha ordem de se apresentar às autoridades, preferiu ir para uma das suas casas: o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em São Paulo. Ali, num edifício rodeado de apoiantes e sobrevoado por helicópteros de diferentes canais de televisão, ficou até dia 7 de abril. Aceitou entregar-se com uma condição: que antes fosse feita uma missa em honra da sua mulher e lhe fosse dado um microfone em cima de um palco. E assim foi. Discursou durante praticamente uma hora, em cima de um palanque com várias figuras da esquerda do Brasil — incluindo Haddad. “Eu não sou mais um ser humano. Eu sou uma ideia”, disse. Meses mais tarde, confirmou-se: Lula foi a ideia e Haddad o humano com a missão de encarná-la.
O PT nunca aceitou a ideia de Lula estar preso. Ainda o ex-Presidente não estava detido, a grande pergunta — e o grande slogan — que surgia da boca dos altos quadros do PT era: “Cadê a prova?”. Depois, quando foi preso, a esquerda brasileira apressou-se a fazer campanha pela sua libertação — até agora, em vão. No entanto, dentro do PT houve quem visse numa possível eleição de Haddad a possibilidade de o ex-Presidente ser libertado através de um indulto presidencial. A ideia foi inicialmente avançada por Manuela d’Ávila, vice de Haddad, ainda antes de ter essa responsabilidade: “Eu daria o insulto ao Presidente Lula”. Mais à frente, foi a vez do ex-governador em Minas Gerais pelo PT, Fernando Pimentel, assinar por baixo essa ideia. Acossado pela polémica que isto causou, Haddad disse de forma clara: “Não. Não ao indulto”. Mas, logo depois, a presidente do PT veio falar por cima dele, sublinhando que “o indulto é uma previsão constitucional” e que “não veria problema nenhum” na sua utilização.
A 4 de outubro, Bolsonaro via a tendência de descolamento de Haddad nas sondagens a acentuar-se, desde finais de setembro. Contudo, na última reta da campanha antes da primeira volta, o candidato da extrema-direita foi ao Nordeste, fortaleza do PT, e tentou arrebanhar votos aos petistas. Como? Tentando moderar-se e, a contragosto, elogiando levemente Lula da Silva. Naquela que é a região mais pobre de todo o Brasil, Lula e os programas sociais que aplicou são estrelas. Bolsonaro sabe-o e tentou apaziguar os receios dos nordestinos. Mais tarde, já depois da primeira volta — onde ganhou em quase todos os estados com exceção dos nordestinos —, garantiu que alguns programas de Lula manter-se-iam num Governo PSL: “Homens e mulheres do Bolsa Família, fiquem tranquilos”, declarou.
No dia seguinte à primeira volta, Haddad era um homem mudado. Em entrevista ao Jornal Nacional, despiu as t-shirts a dizer “Lula Livre” e vestiu um fato e gravata, pôs de lado a esquerda e decidiu apelar ao centro. Era precisamente isso que lhe convinha, depois de ter ficado com 29,3% dos votos na primeira volta — sobrando, assim, quase 21% de votos a conquistar para poder vencer a segunda volta. Dessa forma, garantiu que o PT abria mão da proposta de fazer uma nova Constituição caso vencesse as eleições — uma promessa eleitoral prevista no seu governo e um objetivo defendido por Lula pouco depois de ter começado a Operação Lava Jato.
A 29 de setembro, milhares de brasileiros saíram às ruas, unidos sob o lema “#EleNão”. No dia seguinte, os eleitores pró-Bolsonaro reagiram nas suas próprias manifestações, gritando agora “#EleSim”. Num desses comícios, o filho mais novo de Bolsonaro, Eduardo, falou sobre os protestos do dia anterior, atacando diretamente as mulheres que participaram. O discurso, contudo, não o prejudicou nas urnas, já que dias depois acabou por ser eleito como deputado federal como uma votação recorde. Também o seu irmão mais velho, Flávio Bolsonaro, foi eleito como senador.
Ao todo, estavam previstos seis debates para a segunda volta das eleições presidenciais, a acontecer entre 11 de outubro e 26 de outubro. Porém, nenhum acabou por acontecer. Após consulta com os seus médicos, Bolsonaro foi aconselhado a não estar presente nos quatro primeiros debates por razões de saúde. Ainda assim, continuou a dar entrevistas e a fazer vídeos em direto para os seus seguidores no Facebook. Perante esta aparente contradição, Haddad desafiou o seu adversário para debater, fosse onde fosse. “Eu vou na enfermaria em que eles tiver para debater o país”, disse. Nem ali, nem mais tarde, mesmo tendo autorização médica para participar nos dois últimos debates, Bolsonaro aceitou fazê-lo. Como consequência, Haddad desdobrou-se em entrevistas todos os dias, algumas a acontecer à mesma hora e no mesmo sítio onde deveria ter havido debates.
É um remoque duro contra Fernando Haddad, que ilustra bem a estratégia da campanha de Bolsonaro entre as duas voltas. Justificando por que razão não iria estar presente nos debates televisivos, Bolsonaro utilizou o Twitter para responder ao homem do PT. Primeiro, chamou-lhe “Senhor Andrade” — nome utilizado por alguns dos eleitores que pareciam não conseguir atinar com o nome de “Haddad”, sintoma da falta de popularidade do homem escolhido para substituir Lula da Silva. A segunda parte, em que Bolsonaro chama “poste” a Haddad, cumpre o outro propósito da sua alfinetada: evidenciar que Haddad é um candidato segunda escolha, que não toma decisões por si próprio e que depende dos conselhos de Lula. Bolsonaro justifica, assim, a sua ausência dos debates — e é chamado de “covarde” por Haddad.
As tensões entre Bolsonaro e o seu candidato a vice-Presidente tornaram-se evidentes quando o general Mourão classificou o pagamento do 13º mês como uma “jabuticaba”, ou seja, algo que só acontece no Brasil e que deveria ser alterado. “O 13° salário do trabalhador está previsto no art. 7° da Constituição em capítulo das cláusulas pétreas (não passível de ser suprimido sequer por proposta de emenda à Constituição). Criticá-lo, além de uma ofensa à quem trabalha, confessa desconhecer a Constituição”, respondeu Bolsonaro no Twitter. Mas nem o puxão de orelhas em público atrapalhou Mourão, que continuou a desafiar o capitão. E quando Mourão defendeu a realização de uma Assembleia Constituinte feita por notáveis em vez de eleitos, Bolsonaro relembrou-lhe que o candidato a Presidente era ele e não o general.
Se o anglicismo da moda da política brasileira até há pouco tempo era impeachment, em 2018 passou a ser fake news. Foi sem dúvida este o foco da reta final da campanha presidencial, sobretudo com Haddad a queixar-se da quantidade de notícias veiculadas em grupos de WhatsApp e noutras plataformas com o intuito de denegri-lo e à sua campanha. Sobre o candidato do PT escreveu-se e espalhou-se de tudo um pouco: que achava que as crianças deviam ser propriedade do Estado a partir dos 5 anos para que o Governo escolhesse o seu género; que Haddad era a favor do incesto; ou até a montagem em que o candidato do PT segurava num brinquedo sexual, feito a partir de uma fotografia onde o objeto em questão era uma garrafa de refrigerante. Na reta final da campanha, a Folha de S. Paulo denunciou um alegado esquema montado e pago por empresas afetas à campanha de Bolsonaro para espalhar fake news no WhatsApp com o seu conhecimento. O caso está a ser investigado pelo Tribunal Superior Eleitoral. Se o alegado esquema for provado, e mesmo que não seja determinado envolvimento de Bolsonaro nele, as eleições podem vir a ser anuladas.
[Veja no vídeo como entrámos no mundo das notícias falsas do Whatsapp brasileiro]