Depois de 15 anos aberto ao público como Museu Berardo, o Módulo 3 do Centro Cultural de Belém, em Lisboa, foi parcialmente renovado e vai apresentar-se oficialmente, a partir de sexta-feira, com o título de Museu de Arte Contemporânea/CCB. Lá dentro, os mais de 6000 m2 de área expositiva vão albergar três coleções de arte feitas segundo a vontade de três privados:
- A Coleção Berardo, com 862 obras, reunida entre os anos 1992 e 1999, pelo empresário madeirense José Berardo, a braços com vários processos judiciais que o indiciam de crimes de burla qualificada, fraude fiscal e branqueamento de capitais, sendo acusado de dever à banca quase mil milhões de euros e estando, por isso, este acervo artístico arrestado;
- A Coleção Ellipse, com mais de 800 peças, constituída entre 2004 e 2008, pelo fundador e administrador do Banco Privado Português, João Rendeiro, que fugiu do país, em 2021, após lida a sentença do tribunal que o condenava à prisão por burla qualificada, tendo cometido suicídio por enforcamento numa prisão de Durban, na África do Sul, em maio de 2022;
- E, finalmente, a Coleção Teixeira de Freitas, agrupada pelo advogado brasileiro Luiz Augusto Teixeira de Freitas há muito radicado em Portugal, entre 2000 e 2014, e que agora assina um acordo de comodato com o Estado Português por dez anos (renováveis), ficando mais de mil obras depositadas no CCB, sobretudo desenho, instalação e escultura. Pontualmente, acrescem a estes acervos várias peças da Coleção de Arte Contemporânea do Estado (CACE).
“O público terá acesso a um museu com valências muito mais abrangentes. Este será o primeiro ensaio sobre o cruzamento das três coleções, que propiciam um olhar mais globalizado da arte contemporânea, que não se foca apenas na arte europeia e ocidental, em geral, como acontecia com a Coleção Berardo por si só, mas que abarca também outras geografias e culturas, como o Brasil, a América Latina e o Próximo Oriente, estendendo-se no tempo até ao presente”, explica ao Observador Delfim Sardo, o administrador do CCB com o pelouro da programação e um dos curadores nacionais mais conceituados, que regressa a Belém depois de ter sido responsável pelo Centro de Exposições da casa entre 2003 e 2006, e de ter passado pela direção de artes visuais da Culturgest.
“Mas, a grande especificidade do MAC/CCB”, garante, “será a relação entre as artes visuais e a arquitetura, através do Centro de Arquitetura/Garagem Sul [que inaugurou esta semana a exposição Habitar Lisboa] e a performatividade, uma área que estava restringida ao Centro de Artes Performativas do CCB, que agora se assume como um todo, dando lugar a uma estrutura mais maleável e com maior flexibilidade programática”. A “inclusão” de artistas portugueses no percurso expositivo mais permanente foi outra “preocupação” de Delfim Sardo, que aponta obras de nomes como Fernando Calhau, Ângela Ferreira, Julião Sarmento ou mesmo de Paula Rego (através de O Impostor, obra da Coleção CACE recentemente adquirida), e até de Michael Biberstein, o suíço-americano radicado em Portugal, como novidades.
Em traços largos, há ainda a notar a introdução de novas peças e substituição de outras. Umas vêm complementar e alargar visões artísticas mais ou menos políticas, caso do “questionamento pós-colonial” que se passa a fazer a três vozes, Adriana Varejão, Glenn Ligon e Lynette Yadom-Boakye, pertencentes à Coleção Berardo, à Coleção Ellipse e à Coleção Teixeira de Freitas. Outras preenchem lacunas deixadas pelas peças adquiridas pelo Fundo de Aquisições criado aquando da constituição do Museu Berardo e que previa a participação do Estado que não veio a acontecer e que Joe Berardo pôde levar consigo depois da dissolução do mesmo. Há uma Louise Bourgeois, Vito Acconci lado a lado com Jorge Molder, há mais Boltanski, e também Baldessari, Jimmie Durham, mais Cabrita Reis e mais José Pedro Croft. Tudo isto, sobretudo, no Piso -1. De resto, o percurso histórico do Piso 2 manter-se-á até a nova direção decidir o que fazer exatamente. Uma peça do escultor Rui Chafes destronará “Néctar”, de Joana Vasconcelos, no exterior da entrada do MAC/CCB. A belga Berlinde de Bruyckere será a primeira artista programada do novo museu para as suas exposições temporárias e Delfim Sardo avança com outros nomes, de onde sobressai o da arquiteta Marina Tabassum (n. 1968, Bangladesh), Prémio Aga Khan de Arquitetura em 2016.
“A nova dinâmica” do museu do CCB vai contar com uma dotação orçamental de 3,1M€, um reforço de 1M€ face ao que estava a ser gasto por ano no Museu Berardo. A verba será aplicada “entre as necessidades de intervenções de beneficiação nos espaços [museu, reservas, depósitos] e programação”, esclarece o administrador. Já a renovada identidade visual do Módulo 3, que inclui obras de remodelação com direito a nova receção, livraria concessionada à Almedina e cafetaria, merchandising, reorganização do espaço expositivo, logótipo, site de Internet, etc., teve um custo adicional de 250 mil euros.
Uma questão apenas museológica?
A aposta do Governo é notória. O MAC inscreve-se num outro posicionamento político por parte do Estado e também numa assunção claríssima daquilo a que a historiadora de arte Raquel Henriques da Silva apelida de “marcação de terreno” face às circunstâncias judiciais que pairam sobre a Coleção Berardo. Uma posição diferente sobre o acervo mais mediático do país, ou, como lhe chama António Pinto Ribeiro, ensaísta e programador cultural, uma manobra de “marketing político e cultural que não tem nada a ver com museografia”.
Crítico, o antigo diretor artístico da Fundação Gulbenkian e também da Culturgest, considera que “um museu é muito mais do que a reunião ou a soma de coleções e que devia sempre ser entendido como tal”, explicando que contemporaneidade e atualidade não são a mesma coisa e que a utilização do termo não pode ser aleatória. “Como diz o filósofo Giorgio Agamben, que os curadores do CCB devem ter lido, a contemporaneidade são estrelas que vêm do passado e iluminam o nosso presente”, afirma ao Observador António Pinto Ribeiro, estimando como “legítima” esta posição do Estado, mas garantido que ela “não tem nada a ver com seriedade intelectual”. “Não é possível haver um museu global, pois existem tensões e antagonismos nas produções artísticas à escala mundial”, adverte Pinto Ribeiro, que alerta para a necessidade de definição mais precisa quer de um eixo temporal, quer de uma origem geográfica.
A questão é pertinente no panorama museográfico nacional até porque há mais museus de arte contemporânea de peso, um também em Lisboa, no Chiado, o Museu Nacional de Arte Contemporânea criado em 1911, e outro no Porto, que responde pelo nome de Museu de Serralves. E, pedia a museografia portuguesa, que se esclarecessem as funções de cada um, que se identificassem rumos, que se ouvissem ideias e que se escolhessem trajetórias. Portugal não pensa a sua cultura com conta, peso e medida? Vai a reboque do mundo ou avança em contratempo? Que contextos e que razões servem a criação do MAC/CCB?
“De facto, não houve debate e não houve reflexão”, aponta Raquel Henriques da Silva, diretora do Instituto Português de Museus entre 1997 e 2002. “Este museu vem minorar, senão esmagar o Museu do Chiado. Espero é que os dois organismos venham a corrigir esse diferencial”, continua, frisando, no entanto, que “a Coleção Berardo tem, como um museu de arte contemporânea deve ter, um tempo e um desenvolvimento linear, com núcleos muito fortes, apresentando-se como um acervo único em Portugal. E como parte estruturante do MAC, deve constituir-se num edifício com todos os requisitos da museologia, com uma equipa, um orçamento e serviços de comunicação”. “Agora”, acrescenta, “isso é esmagador e não é bom para um panorama museográfico tão frágil como o nosso”. Defendendo a “marcação política forte e corajosa” levada a cabo pelo ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, a historiadora põe o dedo na ferida: “É por decisão do tribunal que a Coleção Berardo se mantém ali, tendo obrigatoriamente que estar visível. E se José Berardo ganha o processo judicial? E quanto tempo vai demorar o tribunal a decidir quem é o proprietário do acervo? Não podemos ignorar esse circunstancialismo.”
Chamado ao debate pelo Observador, João Brigola, historiador perito em Teoria e História da Museologia e também antigo diretor do Instituto dos Museus e da Conservação (2009-2012), alerta também para o problema “semântico” que envolve o nome do MAC, mas considera muito mais relevante o valor inequívoco que o acervo construído por Francisco Capelo, o “excelente conselheiro” de José Berardo, representa a nível internacional. Brigola realça a “criação de uma nova centralidade em Belém”, preferindo, apesar de tudo, destacar a necessidade de uma descentralização cultural, a que os governantes deviam estar mais atentos, referindo-se a projetos de cariz autárquico.
Uma realidade a que Raquel Henriques da Silva também está muito sensível, reclamando mesmo por uma rede regional de museus de arte contemporânea contra a “atitude altamente centralista” do Governo. “Criam e pagam a grupos consultivos para tudo e mais alguma coisa, menos para isto. Não o fazem porquê? Há uma série de pessoas disponíveis. Corremos o risco de cair na compra irrefletida de objetos artísticos que se acumulam com problemas de manutenção e armazenamento absurdos”, diz a historiadora de arte, referindo-se também às aquisições que tomaram novo fôlego a partir da legislatura passada através da constituição de um Fundo de Aquisições e da Coleção de Arte Contemporânea do Estado, a CACE, também ela presente no MAC/CCB, “uma coisa mal parida e fora de contexto”. “Para quê comprar sem articulação com os desígnios das equipas dos museus e nomeadamente do Museu Nacional de Arte Contemporânea, que não tem um tostão?”, avança Raquel Henriques da Silva.
A história necessária
A diretora do Museu do Chiado, Emília Ferreira, não estranha a proximidade do MAC, uma realidade com que convive na prática há 15 anos, desde a criação do extinto Museu Berardo, e da qual se distancia largamente, quer através da natureza internacional do acervo de Belém, quer pondo a tónica na missão do “seu” museu nacional, “um dos primeiros do país, criado por decreto em 1911”. “O facto deste ser um museu nacional implica uma responsabilidade perante o território, uma responsabilidade da coleção ser uma autoridade na matéria e de prestar um serviço ao território e que fixa o seu objeto de estudo e de exposição a uma arte balizada entre 1850 e 1960”, explica ao Observador. Grande conhecedora e historiadora da museografia portuguesa, Emília Ferreira não esquece que a missão do Museu do Chiado se desenvolve num país pobre no qual nunca se investiu muito na cultura.
“Na sequência da Exposição Retrospectiva de Arte Ornamental Portuguesa e Hespanhola, realizada em 1882, no Palácio Alvor, em Lisboa, uma das primeiras do mundo a ser iluminada a luz elétrica, nasce, em 1884, o primeiro museu nacional, chamava-se Museu Nacional de Belas-Artes e Arqueologia”, recorda. “A mostra foi um blockbuster na altura e deu lucro. Daí que a comissão organizadora, na pessoa do conde Delfim Guedes, tenha escrito uma carta a sugerir que com esse dinheiro se criasse um museu de arte. Com coleções ecléticas, vindas dos conventos extintos com a laicização das ordens religiosas masculinas, e com obras oriundas de muitas doações, surgiu então o grande Museu Nacional, que no ano seguinte à implantação da República deu lugar à criação de dois grandes núcleos museológicos, o Museu Nacional de Arte Antiga, com peças datadas até ao ano de 1850, e o Museu Nacional de Arte Contemporânea, com obras de 1850 em diante”, conta Emília Ferreira. Este último, desde logo, implantado provisoriamente em salas adaptadas do antigo Convento de São Francisco.
“Sem meios, o primeiro diretor, o pintor Carlos Reis, pouco pôde fazer, seguiu-se-lhe Columbano Bordalo Pinheiro, que teve mais tempo para se ocupar da casa, mas também, sem meios e avesso à arte contemporânea, nada fez. Já Sousa Lopes atualizou a coleção, no que foi secundarizado por Diogo de Macedo, que antes de morrer, em 1959, deixou indicação de que seria interessante comprar obras do redescoberto Amadeo de Souza-Cardoso a um seu discípulo curador e conservador do museu, mas seria completamente ultrapassado por Eduardo Malta, que moveu os seus cordelinhos políticos para ficar com o lugar de diretor do Museu do Chiado, apesar de odiar arte contemporânea. Era um verdadeiro nazi em 1959, veja-se o anacronismo absurdo, para quem a arte abstrata significava arte degenerada. À data da sua morte, fica a sua mulher na direção da casa e desonra ainda mais o museu. Quando chegamos a 1988, tínhamos perdido uma série de oportunidades para que o Museu Nacional de Arte Contemporânea se afirmasse, crescesse e se atualizasse. O incêndio no Chiado encerra-o até à sua reabertura em 1994. Pedro Lapa, aos comandos da direção, faz atualizações e, dessa altura até hoje, o acervo passa de 2000 peças para 6000, triplica, sobretudo à conta de doações e legados. O que fazemos assenta na vontade de mostrar núcleos que têm sido estudados de forma mais aprofundada e abrangente, numa espécie de reanálise do legado.”
A história serve também para Emília Ferreira reposicionar o conceito de museu ao qual quer estar ligada e que define também a sua postura face à partilha de coleções e de conhecimento entre instituições congéneres, entre as quais inclui o MAC a inaugurar dia 27: “Ultimamente o conceito de museu tem sido alvo de grande crescimento interno assente na formação de museólogos e renasce a relação que o espaço do museu deve ter com o tecido urbano, recuperando a noção oitocentista da verdadeira catedral urbana, a catedral laica que o museu deve ser, refletindo o prestígio cultural e artístico dos países”. E é aí que a diretora inscreve o Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado, que, de resto, verá no próximo ano o seu edifício renovado com obras aprovadas no âmbito do PRR.
Daqui até à maturidade cultural
Para Emília Ferreira, o atraso real em que Portugal sempre viveu face ao resto da Europa a nível cultural está estritamente associado ao facto do ensino académico não ter valorizado a História da Arte, que foi até praticamente ao final do século XX apenas uma variante da licenciatura de História. “A nossa profissionalização é muito tardia e a nossa literacia visual é muito baixa. Os museus, nos últimos anos, têm vindo a tentar ter uma linguagem de comunicação mais inclusiva, no sentido da inclusão científica, uma linguagem clara que não é simplista. A partilha de conhecimento é basilar. E há vontade dessa partilha. Mas é necessário que os museus públicos se possam reorganizar em torno de uma comunicação mais eficiente, que só instituições como a Gulbenkian, Serralves, ou o Museu Berardo tiveram até agora em Portugal. Temos menos meios financeiros e menos recursos humanos e não conseguimos estar em pé de igualdade”, refere.
“Costumo dizer que estamos ao nível da sinalética das estradas portuguesas, apostamos muito pouco na comunicação, se não fosse o Google Earth para chegarmos a qualquer lado teríamos que nos esforçar ao máximo. À época da exposição de arte ornamental de que falava no início da nossa conversa, saiu uma crítica numa revista francesa, Revue des Deux Mondes, que dizia precisamente o mesmo, ‘os portugueses sabem fazer, mas não sabem comunicar’. Foi há 140 anos”, frisa ainda Emília Ferreira.
Repare-se também na escassez de museus edificados de raiz. “Com construção própria, nasce em Lisboa, em 1976, o segundo espaço museográfico erigido pelo Estado, trata-se do Museu Nacional de Etnologia. Isto acontece mais de cem anos depois de um particular ter mandado fazer um museu no Porto, o Museu Allen, criado em 1836. Nos anos 40, fora construído, nas Caldas da Rainha, o Museu José Malhoa e mais nada”, assinala a historiadora de arte. “A Gulbenkian surge nos anos 60. O CAM chega em 1983! Isto também explica muita coisa”, conclui ainda.
Portugal parece estar só agora a conseguir chegar a uma espécie de maturidade cultural, que nunca se distancia da pouca apetência pelas coisas da cultura, sempre tão sinalizada por intelectuais mais atentos. É nessa evolução que acreditam os historiadores com quem falámos. Raquel Henriques da Silva assinala o “ganho histórico” que o MAC/CCB simboliza, João Brigola revê nas políticas culturais atuais “uma visão estratégica que há muito não existia” e Emília Ferreira tem esperança “numa época de transformação”. Com tudo o que a mudança pode trazer de medos e anseios. Talvez a inquietação que a arte sempre aporta ao seu espectador.