Excertos das crónicas de Vera Lagoa

publicadas após o 25 de Abril nos jornais O Tempo, O País, O Sol e O Diabo

Anotações

Senhor presidente, perdi-lhe o respeito

(…) Sei que corro riscos dirigindo-me directa e menos respeitosamente ao Presidente da República. Não importa. Cumpro o meu dever. (…) Perdi o respeito? É verdade. E de quem é a culpa? Apenas sua. (…) O senhor, Senhor Presidente da República, não usa apenas óculos fumados nos olhos. Usa-os na alma. Ninguém o entende. Pouca gente o admira. E, praticamente, ninguém o respeita.

(…) Deve conhecer as alcunhas que o mundo lhe pôs. Em França, “Monsieur Bouchon”. Em Inglaterra, “Mister Cork”. Em Portugal? Não digo. É muito feia a alcunha.(…) O senhor não se considera responsável pela miséria, pelo caos, pela tragédia a que chegou este país? (…) Faça eleições, senhor Presidente, e veja quem vota em si. São todos contra-revolucionários. Todos, excepto, claro, o Partido a que chamam do povo e que o povo odeia. Não odiava, não. Nem eu. Mas foi uma vacina.

(…) Um Presidente da República que tem consentido o que o senhor tem consentido perdeu o direito de se manter no seu lugar. (…) a proteção que tem dado à escalada comunista tem sido evidente. (…) Vão punir-me por lhe ter faltado ao respeito? Sim. Sei que é da lei. MAS QUE LEI? Há por acaso leis neste país?”.

O “senhor Presidente” a quem Vera Lagoa se refere nesta crónica de setembro de 1975 no jornal O Tempo é Francisco da Costa Gomes. Tinha assumido a presidência (da República e da Junta de Salvação Nacional) um ano antes, após a demissão do general Spínola, não sendo, por isso, eleito. Até então, e desde o 25 de Abril, era o chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, com prerrogativas de primeiro-ministro. Foi o antecessor do general Ramalho Eanes, que seria eleito no ano seguinte. A alcunha de “rolha” foi-lhe colocada por se dizer que tinha a capacidade de se manter sempre à tona, mesmo nas mais complicadas situações, como foi o período pós-revolucionário em Portugal. A revolta de Vera Lagoa em relação a Costa Gomes deve-se à suposta cobertura que o Presidente da República dava aos militares mais esquerdistas e conotados com o PCP. Em agosto de 1975, pouco antes desta crónica, Costa Gomes tinha dado posse ao V Governo provisório, chefiado por Vasco Gonçalves e composto por militares próximos do PCP. Vera Lagoa acusava Costa Gomes de ter “consentido” a esse Governo legislar “em maratona”, apesar do seu carácter provisório. Com este texto, Vera Lagoa tornou-se a primeira jornalista em Portugal a ser processada por um Presidente da República.

O Senhor Gomes de Chaves 

“(…) Porquê, outra vez, Costa Gomes? Porque Costa Gomes além de incomodar Chaves, incomoda o País e incomoda-me, sobretudo, a mim. (…)

Costa Gomes não gostou que “lhe faltassem ao respeito”. Curioso. Não faltou Costa Gomes ao respeito do País no dia em que, em Belém, recebeu a “cintura industrial” de Lisboa, com um sorriso comovido, de braços no ar, chamando-lhes “camaradas”? (…) Não é falta de respeito pelo País? Então é falta de respeito por si próprio. Eu, por exemplo, que não respeito Costa Gomes, respeito-me muitíssimo a mim própria. (…) o senhor não tem vergonha de ter mantido quase dois anos os “pides” sem julgamento, na cadeia, depois de ter recebido “pelos serviços prestados” um crachat de ouro da Pide? O senhor não tem vergonha de, tendo pertencido à Legião, ter consentido que fossem presos e afastados dos seus lugares, homens cujo crime foi o de terem há longos anos pertencido à mesma organização? (…) O senhor não foi eleito pelo povo (…) O senhor está nesse cargo devido a um golpe de Estado.

O senhor chama-se apenas Costa Gomes, tem demitido e mandado prender os seus amigos, tem-nos achincalhado no Mundo inteiro, consentiu que o Gonçalvismo destruísse Portugal e, acima de tudo, tem um defeito muito grande, que não lhe perdoo. Sabe o que é? O senhor é muito feio”.

Esta será, talvez, a crónica mais célebre de Vera Lagoa. Foi publicada em fevereiro de 1976 no segundo número do jornal O Diabo e, com ela, Vera Lagoa voltaria a ser processada por Costa Gomes por “abuso de liberdade de imprensa”. O jornal acabaria mesmo por ser suspenso durante quase um ano após a publicação deste texto. Nele, Vera Lagoa volta a insurgir-se contra Costa Gomes (que era natural de Chaves) e à suposta proteção que o Presidente dava aos comunistas. A referência à “cintura industrial de Lisboa” remete para 16 de novembro de 1975, quando teve lugar uma manifestação de trabalhadores, convocada pelo Secretariado das Comissões de Trabalhadores, com o apoio da Intersindical, da Comissão Revolucionária de Apoio à Reforma Agrária, do PCP, da Liga Comunista Internacionalista e do Movimento Democrático Português, entre outros. Estavam contra o VI Governo Provisório e a favor do poder popular e da defesa da reforma agrária. Vera Lagoa faz várias acusações a Costa Gomes, como ter recebido “o crachat de ouro da Pide” ou ter pertencido à Legião Portuguesa no tempo do Estado Novo, ou estar no cargo devido a um “golpe de estado”, por não ter sido eleito. O conjunto de acusações (incluindo a de ser “muito feio”) voltou a levar Vera Lagoa a tribunal. O advogado de Vera Lagoa era Daniel Proença de Carvalho. Em sua defesa, alegou que “a cidadã Maria Armanda Falcão não pactuara com o fascismo; não exercera qualquer cargo público; não pertencera à PIDE ou à Legião, nem fora condecorada ou distinguida por essas instituições”. Por outro lado, o advogado assinalou que “o cidadão Francisco da Costa Gomes, ao invés, fora membro do Governo de Salazar; desempenhara o cargo de Chefe do Estado Maior das forças coloniais que se batiam em Angola; era o Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas quando Tomás exercia o cargo de Presidente da República e Marcelo Caetano o de primeiro-ministro. Recebera o crachá de oiro da PIDE; elogiara publicamente, em discursos publicados, as tropas da DGS e o diretor desta sinistra organização em Angola. Não se pode dizer que o seu passado fosse propriamente o de um antifascista”. No final, Vera Lagoa foi absolvida.

Vade retro Melo Antunes

“É preciso arrasar os que traíram, os que sujaram a Revolução, os ambiciosos, os pulhas, os que querem entregar o nosso País a ditaduras de Leste ou de onde quer que venham. É preciso destruir os que provocam esta instabilidade, esta insegurança, este sentimento de angústia que a maior parte dos portugueses continua a sentir, um ano após o 25 de Novembro. (…) E, a propósito do omnipotente CR, que se passa?

Quem domina, quem controla e manipula essa empolada excrescência de um frustrado totalitarismo militar que floresceu, na era “gonçalvista”, de mãos dadas com o PC? Certamente que não é Ramalho Eanes, seu presidente. Dizem-me que será (e porque o consentem?) o major Antunes (filho). Segredam-me que é ele que enleia, intriga, pactua, combina, remexe. Mas, que diabo? Quem é Antunes? Um génio? Um lobisomem? (…) O que interessa é que Antunes, no seu ridículo intriguismo se convenceu – e convenceu muita gente – de que era um alho. Um alho porro a ameaçar as cabeças enlouquecidas por esta noite sanjoanina de trágica bebedeira, em que se transformou a Revolução de Abril.

Pois bem. Se Otelo, o palhaço, já apanhou 20 dias de prisão (abençoados!) por nada de importante, o que se espera para punir – e definitivamente – este Otelo gordinho e de óculos, muito menos carismático e muito mais prevaricador? Como? Demitindo-o. (…) Antes do mais, o homem é horroroso. Em todos os aspectos. Mesmo fisicamente. Comparado com ele, até o Costa Gomes parece a Sofia Loren! (…)”.

O alvo desta crónica, publicada em 1976, é o major Ernesto Melo Antunes, uma das principais figuras do Movimento dos Capitães e um dos autores do programa do Movimento das Forças Armadas. Até 1976, Melo Antunes tinha sido ministro em três dos seis governos provisórios. Tinha passado a integrar o Conselho da Revolução em 1975, e é na qualidade de Conselheiro que, a 26 de novembro de 1975, faz uma declaração célebre na qual defende uma “sociedade pluralista, em transição pacífica para o socialismo”, que deve passar por um “um projeto viável de esquerda” no qual seria importante a participação do PCP. Terá sido um dos motivos da revolta de Vera Lagoa, quem em crónicas posteriores continuaria a acusar o major de estar contra a “vitória democrática do 25 de Novembro”. Também esta crónica valeria um processo a Vera Lagoa. No julgamento, teve como testemunha Vitorino Nemésio, que afirmou que “o artigo em causa não belisca, nem de perto nem de longe, a honorabilidade do major Melo Antunes” e que Vera Lagoa “faz um tipo de jornalismo essencialmente polémico”.

Ora viva senhor presidente 

(…) Somos duas pessoas em voga. Falsa modéstia da minha parte. Da sua, já se sabe que a modéstia também não é o seu forte. Com o seu gosto pelo teatro, você já foi tudo. Já fez de herói. Já fez de parvo. Principalmente de parvo. E fica-lhe bem o papel. (…) Mas não é por isso que você é célebre. É-o, sim, pela sua atuação no 25 de Abril. E devíamos ficar por aqui. Mas os seus mestres (e você agora já deve saber quem são) serviram-se de si, ridicularizando-o embora, para conseguirem os seus fins. Querem transformar o país num circo. (…) Conhecendo a sua fragilidade de espírito (não fica ofendido, pois não?), mandaram-no a Cuba e você veio de lá mais cubano do que o Fidel. Foi daquela ocasião que você nos quis meter a todos no Campo Pequeno, lembra-se? (…) A marionette, perdão, você, foi depois a outros países e de lá veio sempre com ideias novas. (…) Chegou agora a altura em que digo que você viu recompensados os seus esforços em vida. Chegou a altura daqueles a quem você entregou as armas que pertenciam ao Exército Português lhe pagarem a dívida. Querem propô-lo para Presidente. (…) E você ficou todo contentinho, não ficou? Aceite, aceite. O povo que já sofreu tanto, também tem o direito de se divertir um bocado. E pode contar com o meu voto. Você é o homem certo para o lugar certo. Num circo exige-se a presença de um palhaço.”

O nome nunca é referido mas é a Otelo Saraiva de Carvalho que Vera Lagoa se refere nesta crónica. Aquele que foi um dos principais responsáveis pelo 25 de Abril proferiu uma das suas frases mais conhecidas e controversas durante o “verão quente” de 1975, quando era conselheiro do COPCON, o Comando Operacional do Continente, e conselheiro da revolução. Questionado sobre as perturbações que decorriam no norte do país, Otelo respondeu: ““Oxalá não tenhamos de meter os contra-revolucionários no Campo Pequeno antes que eles nos metam lá a nós!”. Foi também nessa altura, como lembra Vera Lagoa, que Otelo foi convidado a ir a Cuba onde conheceu Fidel Castro e, quando regressou, foi mais longe, afirmando que estava a torna-se “impossível fazer uma revolução socialista na totalidade pacífica”, tendo voltado a referir o Campo Pequeno. Vasco Lourenço diria que Otelo veio de Cuba “com o fogo revolucionário todo no rabo”. Otelo Saraiva de Carvalho foi candidato às primeiras eleições presidenciais livres após o Estado Novo, em 1976. Teve 16,46% dos votos. Ramalho Eanes, o candidato eleito, teve 61,59%.

Povo português, não tens vergonha? 

“Venho gritar ao povo português. Ao povo que tem sido português e que, a pouco e pouco, querem tornar soviético. Se esse povo não desperta, se esse povo aceitar sem revolta o futuro que lhe preparam, não faltará muito tempo para que o Gulag se instale entre nós. (…) Pois não leu o povo português o que se vai fazer em Portugal para comemorar  Revolução Soviética? (…) Se não leu, se não prestou atenção, o meu dever é contar-lhe. É contar-lhe que num país que está de luto, que está na miséria, que se cobre de vergonha, que tem milhares (só?) de desempregados, que tem milhares (só?) de desalojados, uma associação que se intitula de Amizade Portugal/ U.R.S.S. vai festejar, à escala nacional, uma Revolução que não nos diz respeito. (…) no dia 7 de Novembro, nem que eu seja a única a vestir-me de preto e a desfilar nas ruas da cidade (…) protestando contra a festa insultuosa para o povo a que pertenço.

EU NÃO SOU SOVIÉTICA: NADA TENHO A VER COM A REVOLUÇÃO RUSSA. NÃO QUERO ESSA REVOLUÇÃO NO MEU PAÍS (…).

A influência e a presença do Partido Comunista Português nas decisões e na vida política do país continuou a fazer-se sentir mesmo após o 25 de Novembro. Em 1977, foi criada uma Comissão Nacional com o objetivo de celebrar os 60 anos da Revolução Soviética de Outubro. Segundo a Associação URSS-Portugal, era composta por 200 personalidades, como “escritores, artistas, médicos, investigadores científicos, professores universitários, engenheiros, sindicalistas, camponeses, operários”, e durante duas semanas organizou eventos como exposições, festivais de cinema ou apresentações de livros. A importância dada à celebração revoltou Vera Lagoa, que, em reação, marcou uma marcha de protesto contra a “festa insultuosa”.

Não passarão 

(…) Em paz desfilámos. Parámos devido ao lamentável acidente provocado pelos assassinos do PC. Na hora em que escrevo não sei se a vítima está viva ou morta. Se morreu, foi o PC que a matou. Se ficar inválida, é o PC o responsável. SÃO ASSASSINOS! Gritámos isto bem alto na rua e grito-o bem alto neste jornal: SÃO ASSASSINOS! Eles sabiam que alguém estaria no local onde explodiram as bombas. E que esse alguém podia morrer. SÃO ASSASSINOS! (…) Não havia nenhum fascista na organização. Talvez houvesse entre a assistência. E depois? Em democracia não pode cada um pensar como quer? (…). “

A primeira manifestação organizada por Vera Lagoa, na sequência dos festejos da Revolução Soviética, aconteceu no Porto. A 1 de dezembro desse ano, 1977, repetiu-se em Lisboa, na Avenida da Liberdade. A data, dia da Restauração da Independência, foi escolhida por Vera Lagoa considerar que a independência do país estava “em perigo”. Os relatos de quem esteve presente falam em milhares de pessoas a descer a avenida. A imprensa da época, ainda dominada por pessoas próximas ao PCP, conotou a manifestação como “fascista”. Nos jornais, saíram fotografias de manifestantes de braço esticado. Na crónica, Vera Lagoa refere-se ainda ao incidente que marcou a manifestação. Um petardo colocado debaixo de um banco rebentou e matou um homem que assistia ao protesto. Vera Lagoa não hesitou em atribuir culpas aos comunistas, mas os verdadeiros responsáveis nunca foram identificados.